Livro 'A Gorda' premiado em França
O romance de Isabela Figueiredo, traduzido por João Viegas, acaba de vencer o prémio Laure Bataillon 2024 para melhor tradução.
"Não tenho memória do 25 de Abril, como quem estava em Portugal. Vivia em Lourenço Marques, Maputo à data. As memórias que tenho dessa época estão descritas no livro Caderno de Memórias Coloniais. O 25 de Abril, para mim, é a descolonização e o retorno. Portanto, o meu ponto de vista do 25 de Abril tem de ser sempre a partir das suas causas e das consequências históricas e sociológicas. Não lhe posso dizer que nesse dia eu estava a estudar para um teste porque, rigorosamente, não me lembro do que eu fiz nesse dia, nem onde estava. Não sabíamos de nada sobre o que estava a acontecer na Metrópole. Penso que só ouvi conversas sobre o assunto no outro dia, mas não dei grande importância. Nos anos 70 havia conflitos armados gravíssimos pelo mundo inteiro. Portugal estava muito longe. Portanto, o 25 de Abril, para mim, com os olhos da altura, é a descolonização. Com os olhos de hoje, o 25 de Abril foi a consequência direta da expansão, do domínio ultramarino, da ditadura, da ausência de liberdade de expressão, da promiscuidade entre Estado e religião, da manutenção da pobreza, da ignorância e da guerra colonial. Inaugurou uma nova era que se refletiu num movimento de retração económica e de convulsão política e social que marcou o caminho que temos vindo a traçar enquanto nação. Portugal reagiu à mudança de regime e à descolonização atirando-se para a frente, definindo a sua identidade nacional e o seu posicionamento na Europa e no Mundo. Foi a primeira vez, em séculos, que tivemos de parar para pensar quem éramos e o que queríamos ser, sós, sem dispersão territorial e imperial. Foi decisivo para nos situarmos enquanto povo, relativamente ao nosso valor, autonomia e capacidade de decisão. Estamos ainda a fazer o nosso caminho que tem de melhorar no que respeita ao acesso à saúde e à justiça. Temos de erradicar uma herança de nepotismo e de corrupção que o regime anterior nos deixou, mas a porta que nos foi aberta pelo 25 de Abril permanece impossível de fechar."
Isabela Figueiredo, escritora
A vida das mulheres era uma semi-vida
"Hoje, olhando para trás, além de tudo o que havia a conquistar de liberdade (e que foi a grande conquista em Portugal, o mais belo que me aconteceu até hoje), aquilo que para mim é mais evidente respeitante às mulheres é que não tinham direitos absolutamente nenhuns. Na realidade, na altura, nem o homem nem a mulher não tinham os direitos plenos. Estávamos no fascismo. De vez em quando é preciso lembrar que a mulher, na altura, nem sequer tinha direito a decidir oficialmente sobre o ‘destino’ dos seus filhos. A mulher não tinha direito a votar se não tivesse um curso superior.
Quando o 25 de Abril acontece, além do maravilhamento que foi ver e construir um país em liberdade, passados uns meses as mulheres começaram a ver que, na verdade, era preciso fazer mais no que a ela diz respeito. E aí nasce um movimento feminista chamado Movimento de Libertação das Mulheres, do qual fui fundadora com a Maria Isabel Barreno. Na altura do 25 de Abril, eu, a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa estávamos em tribunal por termos escrito o livro Novas Cartas Portuguesas e só não fomos presas, exactamente, porque o 25 de Abril aconteceu semanas antes do juiz ter dado a sentença, felizmente para nós. Semanas antes, o Marcello Caetano (Presidente do Conselho, na época) no programa televisivo chamado Conversas em Família disse: ‘Há três mulheres neste momento em tribunal que não têm direito a serem portuguesas.’ Perante isto entende-se o que nos ia acontecer. A vida da maioria das mulheres era, na verdade, uma semi-vida. O 25 de Abril mudou tudo."
Maria Teresa Horta, escritora e jornalista
Para que nunca tenham de viver com medo
"Lembro-me bem. Antes do 25 de Abril havia crianças descalças, de pés gretados pelo frio. A pobreza era endémica, as mulheres eram criadas dos homens, a mortalidade infantil altíssima e o pensamento livre um crime punível com prisão e tortura. Simone de Beauvoir passou por cá e escreveu nas suas memórias que a famosa ‘melancolia’ dos portugueses era fome pura. A garota de onze anos que eu era estava num quarto de hospital, enfaixada e proibida de se levantar da cama, na sequência de uma apendicite com peritonite, quando a enfermeira entrou clamando que havia uma revolução na rua. Perguntei se era dos bons ou dos maus, ninguém sabia responder-me. Quando consegui arrastar-me clandestinamente para a janela vi tanques de guerra cobertos de homens com cravos nas mãos. As mulheres corriam para os homens fardados, oferecendo-lhes leite, laranjas – e mais flores. Nessa noite soube que o Hugo dos Santos era um dos criadores daquele dia luminoso e justo, e percebi que aquela era a vitória do bem sobre o mal. O Hugo, infelizmente já desaparecido, que foi um segundo pai para mim, era um dos bons. ‘Foi para ti, para a tua geração, que fizemos o 25 de Abril’, disse-me depois o Hugo. ‘Para que vocês nunca tenham de viver com medo.’ Prometi-lhe honrar essa dádiva. Sempre que alguma sombra de medo se aproxima, com o seu cortejo de cobardias, subserviências e traições, penso nesse grupo de jovens que entregaram a sua vida à causa da liberdade e a sombra desaparece."
Inês Pedrosa, escritora
25 de Abril, o que mudou
"‘O meu papel de mulher estava de tal maneira definido na nossa maneira de viver que não me parecia anormal precisar da autorização do Alberto para conseguir o meu passaporte porque eu não tencionava viajar sem ele e não me preocupava pedir-lhe licença para sair do país. Da mesma maneira que não me tinha questionado por ser proibido usar calças na faculdade, não queria saber por que razão as mulheres não podiam ser diplomatas ou juízas e porque às casadas era interdita a profissão de hospedeira da TAP. Não dei importância à exigência de prova de curso secundário ou superior para poder votar, achando natural pedir a assinatura ao meu marido quando abri a conta de banco. Admito a minha mãe. Tinha eu 18 anos quando me levou às profundezas do Banco Nacional Ultamarino para me tornar titular de um cofre. Para eu ali guardar os meus papéis, as minhas coisas, disse. Antes que casasse, explicou.’* Era assim. Veio o 25 de Abril. Tudo mudou. Tudo se esqueceu."
Leonor Xavier, escritora e jornalista
*Excerto retirado por Leonor Xavier do seu livro Casas Contadas (editora Asa, página 101).
O cravo no berço
"O meu filho tinha um mês. Nunca dormiu bem, ainda hoje não dorme. A 25 de Abril eu tinha, portanto, um mês de sonos em atraso. O sono sempre havia sido importante, reparador, para mim. O telefone de casa tocou por volta das sete horas. A minha sogra dizia-nos que tinha havido uma revolução. Ensonada, perguntei feita por quem. Quando ela respondeu pelos militares, voltei para a cama e consegui dormir um pouco mais.
Pelas nove horas telefonou o meu pai. Eufórico. Achei estranho, como podia um homem de esquerda que detestava os militares que apoiavam o regime estar contente? Que não era um golpe da direita militar, explicava ele, era sim um movimento de jovens militares antirregime! Ficámos tão eufóricos quanto ele. E, como toda a gente, colámo-nos à rádio, à espera de notícias. É difícil agora imaginar um mundo sem Google, sem telemóveis, sem CNN, sem televisão a funcionar 24 horas por dia… Mas essa era a realidade como a conhecíamos naquela época.
Os amigos começaram a telefonar também. Todos falavam de ir para a rua, de ir ‘ver a Revolução’, as tropas a ocupar pacificamente a cidade, como se ia sabendo que estava a acontecer… Com pena, decidi não deixar o meu bebé, até porque estava a amamentar. Umas horas depois, o meu pai entrou em nossa casa, aberto num enorme sorriso: na mão trazia um cravo vermelho. De forma decidida, dirigiu-se ao quarto onde estava o neto e pôs-lhe no berço, qual bandeira, o cravo. Também ainda não era o tempo das selfies, mas não falhei aquela foto em que uma nova vida e uma nova era política sorriem, lado a lado."
Maria Elisa Domingues, jornalista