O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

Morreu a escritora e jornalista Leonor Xavier. Em 2019, dizia à Máxima: “Sou uma devoradora da vida”

Em 2010, o livro sobre a sua vida, Casas Contadas, mereceu o prémio Máxima de Literatura. Ao longo dos anos, foram inúmeras as entrevistas que fez para a Máxima, como jornalista exímia e visionária que era. Recordamo-la com este último texto, uma entrevista de Rita Lúcio Martins, em 2019.

Foto: Pedro Ferreira
13 de dezembro de 2021 às 14:26 Rita Lúcio Martins

A imparcialidade é um dos imperativos jornalísticos, mas importa admitir que, no momento em que fiz soar a campainha da casa de Leonor Xavier, deixei a pretensão à porta. Troquei a formalidade da entrevistadora pelo aconchego daquele abraço a que apetece sempre voltar e afundei-me no sofá para a ouvir falar. Respondeu a todas as perguntas como ela sabe, divagando pelas memórias, entre citações literárias, canções da bossa nova e episódios caricatos. Parou, retomou o fio à meada, atendeu telefonemas, tratou de questões práticas, falou das tertúlias de segunda-feira e dos almoços com amigas às quartas (sempre no mesmo restaurante chinês), do muito tempo que passa em casa a ler, a escrever, a arrumar. A mulher que tantas vezes se define como "a carta fora do baralho" é, na verdade, uma daquelas raras pessoas que tiveram a sorte e a sabedoria de viver tantas vidas numa só. Falou disso também. Da infância em Lisboa, da vida no Brasil (país para onde emigrou em 1975). Falou de livros, dos seus e dos escritos por outros (prepara-se para ler o novo romance de Ian Mc Ewan), inventariou algumas das peças expostas na sala e demorou-se nas molduras com as fotografias das pessoas que já deixaram de existir. Sempre sedutora, Leonor Xavier confessou que já não tem a resistência de outros tempos, mas que nem por um segundo perdeu a vivacidade. Ou a graça. Não fosse Leonor a mulher que a qualquer momento é capaz de nos surpreender com a pergunta mais inesperada (alguns diriam inapropriada). Não perdeu a curiosidade, nem a vontade de perguntar. Mas naquela manhã, depois de elogiar as botas vermelhas que eu calçara e de me oferecer um café, foi a vez da mulher e da escritora responderem.

Há Laranjeiras em Atenas é, entre muitas outras coisas, um livro de viagens no sentido mais literal, mas numa dimensão interior também. Porque é que diz que é um dos seus favoritos?

Porque eu sinto que neste livro talvez tenha chegado quase que à maturidade da minha escrita. Ainda que quando leio as coisas que escrevi, há muito tempo, lá encontre a matriz daquilo que havia de ser. Eu comecei a escrever desde muito cedo. Tenho diários desde os meus 13 anos. Ainda os guardo. Mas entre todos os livros que escrevi este é o único, até agora, que de vez em quando vou buscar para ler um ou outro fragmento. Dá-me gosto como objeto. Sinto que é um livro que os leitores podem explorar com gosto e curiosidade. É um livro muito minimalista com pedaços de coisas diferentes.

Na apresentação [deste novo livro] a sala foi pequena para tanta gente. Mas, para lá da quantidade, o que mais ressaltou foi a diversidade de pessoas. Que qualidade é essa, a de congregar pessoas tão diferentes?

Eu gosto muito de pessoas. No Rio de Janeiro, cidade onde vivi, chamavam-me "garimpeira de gente". É verdade que me interesso muito por pessoas e, como tive uma vida muito variada, isso fez com que as pessoas viessem naturalmente. Tal como eu tive oportunidade de dizer na apresentação do livro, houve sempre uma palavra, uma cumplicidade, uma situação, um acontecimento a ligar-me a todas as pessoas que lá estavam. Temos algo em comum, inscrevemo-nos na vida uns dos outros. A vida é uma rede de pessoas, é um bordado, é um tricot…

No entanto, não se considera uma pessoa consensual. Gosta de citar Alçada Baptista que dizia "Gosto de quem gosta de mim"…

Não, justamente porque quem tem tantas vidas, como eu tenho, tem vidas muitas vezes estanques. E quando elas se juntam, os parceiros ficam surpreendidos uns com os outros. Trata-se de criar uma união afetiva entre as pessoas…

Foto: Gonçalo F. Santos

Nasceu e cresceu em Lisboa. Foi educada para ser o quê?

Em primeiro lugar, eu fui educada com uma grande prudência política. O meu pai era de uma família de oposição ao regime e sabia que eu era muito "levada da breca". Por isso educou-me com rédea curtíssima. Tenho dois irmãos e eu sou a do meio, mas as regras eram iguais para todos: tínhamos de estar sentados direitos à mesa, respeitar as ordens das coisas, as horas certas. O objetivo era estudarmos e comportarmo-nos. Não havia tolerância. Havia deveres, obrigações e era suposto cumpri-las.

E afeto, havia?

Havia. O meu pai foi uma pessoa muito importante na minha formação. Ele era médico e foi diretor do Hospital dos Capuchos e aos fins de semana acompanhava-o ao hospital nas visitas às enfermarias (…). Acima de tudo deu-me uma educação de grande integridade e é por isso que eu e os meus irmãos temos os "carretos" certos na cabeça. No meu caso, se assim não fosse, podia ter dado uma total derrapagem na vida. O Carlos Drummond de Andrade tem um verso de que gosto muito: "Na perigosa curva dos 50, derrapei nesse amor." Eu acho que as curvas não chegam só aos 50... Nunca andei por contravenções tramadas de drogas ou excessos. Mas sim, eu sou uma devoradora da vida.

A sua educação conheceu fases muito diferentes…

Sim. Na escola francesa, onde comecei, aprendi a rezar e a ler em francês. Depois passei para o liceu [Rainha] Dona Leonor, onde era a mais pequena da turma. As outras meninas já tinham corpo de adolescentes. A seguir passei para o [liceu] Maria Amália [Vaz de Carvalho] e para o [liceu] D. João de Castro e, entretanto, fui de castigo porque arranjei um namorado, faltei a umas aulas e falsifiquei uma assinatura. Respondi torto em casa e três dias depois estava num colégio interno, onde fiz o sétimo ano e chumbei. Repeti o sétimo ano no Liceu Francês [Charles Lepierre]. Em 1972, o ano das greves, entrei na Faculdade de Letras. No final do curso, depois de sete anos de namoro, casei apaixonada [com o Professor Alberto Xavier] e tive três filhos. Fui uma mulher organizada, uma boa dona de casa. Em março de 1975 fomos para São Paulo, no Brasil, onde vivemos quatro anos, e depois seguimos para o Rio de Janeiro, onde fiquei quase 10 anos.

Os seus filhos eram pequenos nessa altura. É curioso que nunca a tenhamos ouvido falar sobre a maternidade…

É porque muitas das minhas amigas vivem a falar dos filhos e dos netos e eu acho que essa é uma conversa um bocado inflacionada. Mas no livro Casas Contadas [Asa, 2009] falo um pouco disso. Vivemos em cinco casas diferentes enquanto estivemos no Brasil. Cada mudança implicava uma mudança de escola, de amigos e exigia uma adaptação. O que posso dizer? Dois são advogados e uma é socióloga. São três filhos ótimos que partilham essa integridade de caráter. São bons cidadãos. Solidários. Muito próximos de mim. Têm estado presentes, mas cada um de nós tem a sua vida.

No Brasil fez um pouco de tudo, desde a venda de tupperwares ao jornalismo. A questão da identidade nunca foi uma inquietação?

Nunca. De repente eu estava numa cidade de 10 milhões de pessoas. A primeira coisa que fiz assim que encontrámos casa foi entrar no ónibus número 600 que fazia uma espécie de circular de quase duas horas e que passava por vários bairros. São Paulo é uma cidade grande demais, capaz de nos devorar. Aquilo que eu senti em todas as situações limite, seja dos excessos jubilosos, nas festas ou no trabalho, é que é importante ter uma estrutura fortíssima. Depois, em toda a minha vida houve sempre uma questão de fé. Quando penso nas situações de perigo que atravessei… Eu acho que sou quase uma miraculada. Mas em nenhum momento a minha identidade portuguesa se perdeu. Pelo contrário. Quanto maior é a distância, maior é a lucidez sobre o nosso país, sobre a nossa identidade e aquilo que nos caracteriza.

A mudança para o Brasil não mudou nada em si?

A grande mudança teve a ver com o facto de não ser "patrulhada". Aqui temos os vizinhos, os irmãos, os pais, os sogros e os amigos que comentam a roupa e o cabelo e que nos dizem o que fazer. Lá aprendi a liberdade individual e talvez por isso eu tenha hoje a liberdade de me dar com gente de todas as áreas. Eu tenho esse sentido de comunhão com as pessoas, essa curiosidade sobre elas. Pergunto-lhes como se chamam…

O divórcio teve alguma coisa que ver com essa sensação de patrulha?

Não, de todo. O divórcio para mim foi uma coerência. Eu vejo muito que o casamento pode ser um chapéu de chuva protetor para todas as contravenções possíveis. Penso nisso quando vejo mulheres que não trabalham e têm cartões de crédito à solta, mulheres que têm casos sendo casadas, mulheres que são maltratadas ou maltratam os maridos, quando vejo pessoas infelizes mas que escolhem ficar na segurança da instituição [do casamento]… No meu caso nunca houve gritaria e houve sempre respeito. Nenhum dos dois invadiu a vida privada do outro. Claro que foi difícil… Mas é o percurso normal de uma mulher. Isto para dizer que eu nunca me zanguei com as regras, mas tinha impulsos de liberdade. Quando conhecemos o nosso futuro marido na adolescência chega-se à idade adulta e passamos a ter orientações diferentes. Muitas vezes em situações de convívio talvez não me apetecesse estar com aquelas pessoas que pensavam o mundo de uma forma diferente... Na altura eu trabalhava num jornal que ficava no centro da cidade do Rio de Janeiro. Eu apanhava o ónibus todos os dias e andava no asfalto, no meio das multidões, e isso faz pensar na real condição das pessoas. Foi uma passagem importante para outro enfoque do mundo. Depois com o Raul [Solnado, com quem teve um relacionamento durante 15 anos] também conheci o mundo das pessoas criativas e que eu já conhecia muito enquanto jornalista. A nossa profissão [de jornalistas] faz com que conheçamos bem a natureza humana.

É uma observadora. Como é que manteve intacta a curiosidade?

Porque é isso que me interessa. Já o disse várias vezes: viajar, para mim, não é o como ir, como estar… Viajar, para mim, é o cenário das pessoas, os ambientes, as vidas. O [Padre] Tolentino e a Nélida [Piñon] citam em obras e contextos diferentes aquela ideia de que o pior pecado é o da distração. Eu, acima de tudo, sou curiosa. E quando se vive no Brasil há uma prática de autoproteção que nos impede de nos distrairmos das coisas. (…) Depois há outro fator que tem a ver com esta coisa de ser jornalista e de intermediar as coisas para contá-las aos outros.

Este livro foi construído a partir das notas pessoais que reuniu ao longo dos anos. Qual o papel da subjetividade?

A subjetividade está no embalo do texto. Nós, os jornalistas, estamos lá não estando. Por outro lado, a personalidade dos escritores revela-se muito na escrita. Importa distinguir entre o texto de jornal, o texto de estudo e o texto literário de que falamos. Eu escrevo muito na primeira pessoa do singular… Mas é preciso dizer que há diferentes tipos de subjetividade. E se o subjetivo é bom, o adjetivo é péssimo. Quando escrevemos temos de ter sensibilidade para a colocação de cada palavra. Eu escrevo, paro e depois retomo. É como dar um passo em frente e dois atrás…

O exercício da escrita tornou-a uma pessoa mais cautelosa?

Sou impulsiva e espontânea na minha fala direta com as pessoas, mas sou prudente na substância das coisas, nessa coisa da exposição pública. Há uma fronteira invisível na exposição (e isso foi algo que aprendi com o Raul) porque escrever é sempre expor-se.

Por outro lado parece mais livre do que nunca…

E sou. Mas a liberdade de escolha é essa. É claro que há regras de boa educação e é preciso saber distinguir as circunstâncias. Mas não me preocupo muito com as opiniões das outras pessoas. Eu tenho a liberdade de ser uma "velha", não é? A velhice é uma grande libertação porque a pessoa tem muitas dúvidas, mas também tem muitas seguranças e percebe que nenhuma das pequenas coisas tem importância. Tudo aquilo que aparentemente é importante não passa, afinal, de desimportâncias. É isso que eu sinto. A idade tem coisas muito chatas, mas depois também tem estas coisas de saudável egoísmo.

A idade também traz as inevitáveis ausências. Tornou-se mais nostálgica?

Eu tenho várias cruzes no meu livro de telefones. Não apago os nomes e os contactos das pessoas que morreram. Ponho uma cruz. Mas há duas coisas diferentes: uma são as saudades que podemos ter das pessoas, sentir a falta da presença delas. Outra é a nostalgia do passado e isso eu não tenho. O que eu sinto é que se morrer amanhã vou de barriga cheia. Acho que eu vivi tudo ou quase tudo o que é possível viver-se. As alegrias, as tristezas, os riscos, o medo, a adrenalina…

Ter estado doente mudou-a ou moldou-a de alguma forma? 

O meu corpo não estava bem sem que eu soubesse porquê. Depois de um verão em que eu tive febre várias vezes, fiz uma colonoscopia e [descobri que] tinha cancro. Então entrei neste túnel onde descobri várias coisas. Uma delas é que o mundo se divide entre os que têm saúde e os que não têm. Depois, o ser doente faz com que haja uma cumplicidade enorme entre as pessoas, descobre-se um discurso direto. Os conceitos fundamentais da vida, a morte, a alegria, a conceção do tempo… É tudo completamente diferente. Tem-se uma consciência da finitude que já não é abstrata. Há uma fragilidade mais explícita. (…) Quando se vai a um hospital, como o IPO, onde há pessoas maioritariamente pobres e muito doentes, sente-se que somos todos os mesmos na nossa condição humana. Se quisermos transpor esta ideia para a dimensão religiosa podemos dizer que a face humana de Cristo é a daquelas pessoas todas. É o que nós somos. Passamos, inconscientemente e independentemente da nossa vontade, a pertencer a um universo de pessoas que nos é desconhecido.

Nunca se deixa levar pela emoção?

Tenho um lado muito racional e muito prático que é o que me safa. Nos momentos difíceis da minha vida eu sou muito prática. Mas é claro que tudo isto nos faz pensar muito na condição. Se me perguntarem qual o impacto prático da doença... Bem, eu tenho estado a organizar papéis, a separar livros e aquelas coisas que juntamos ao longo de uma vida e que são inúteis para os outros… Temos um sentido do princípio, do meio ou do fim.

Pensa na forma como gostaria de ser lembrada?

Eu tenho a noção de que as pessoas morrem e acabou-se a memória delas. Por isso eu não tenho de todo a pretensão de ser lembrada. Acho que algumas pessoas vão ter saudades minhas, mas depois tudo se dilui. É tudo fugaz. No meio de tantas figuras públicas sinto-me um bocado portátil… E depois há várias etapas de vida. Eu já não me movo nos mesmos meios, nem faço os mesmos programas porque não tenho a mesma resistência. Uma coisa que queria imenso era sair na escola de samba [vestida] de baiana porque as alas das baianas são de mulheres mais velhas e funcionam por convite, e é algo muito prestigiante na cultura do Rio de Janeiro… Mas há tantas coisas que queríamos, não é?

Não é uma mulher de lamentos, nem de arrependimentos…

Não. Claro que há coisas que a gente se arrepende de ter dito... Mas há outra coisa que se aprende: a resignação. No Brasil ouve-se muito a expressão "Eu entreguei". Uma das coisas que explica a minha forma de estar é que vivi durante muito tempo com a morte colada à vida. No fundo, a vida é um milagre e a resignação faz parte dele. E, sim, isso traz uma certa pacificação.

Foto: Pedro Ferreira
As Mais Lidas