Maria Cândida Rocha Silva: Dar condições às mulheres para se governarem
O 25 de Abril marcou o início de um Portugal livre e contemporâneo. Mas do lado feminino a mudança foi ainda mais radical. Convidámos 20 mulheres de diferentes idades, profissões e visões da vida a pronunciarem-se sobre o que a Revolução trouxe de novo e de melhor para a condição feminina, como capítulos de uma história que se começou a escrever há 46 anos e que ainda tanto tem para contar. Ao longo deste mês de abril revisitamos os testemunhos publicados no artigo O Novo Mundo das Mulheres, na edição de maio de 2019.

"Eu tenho ideia de que as mulheres, neste momento, ainda têm alguma diferença dos homens porque elas sempre tiveram de dar provas e os homens não. Daqui a uns anos, essas provas vão deixar de ser necessárias, a diferença vai-se esbater. A mim, aflige-me muito a questão da violência doméstica que, sobretudo nas camadas mais baixas, é um suplício. Era preciso que estas coisas se tratassem de uma maneira diferente porque elas é que são as vítimas e são elas que têm de andar fugidas. Isto não faz sentido nenhum. A mulher é, fisicamente, um bocadinho mais frágil do que o homem e normalmente compensa com a força anímica, que é muito grande. Mas se ela tem essa preocupação de ser forte e de fazer das fraquezas forças, um ser frágil é que tem de ser protegido e não violentado. Isto é uma questão de mentalidades e isso custa muito a mudar.
Eu gostava que dessem condições às mulheres para elas se governarem. Eu acho péssima esta história das quotas e das leis que impingem mulheres. Não forcem as mulheres, dêem-lhes condições! O que era importante era que à mulher fossem garantidas condições para estar tranquila durante a hora do seu trabalho. Por exemplo, as creches do Estado fecham a meio da tarde e as mulheres estão a trabalhar e logo têm de interromper a jornada para ir buscar os filhos. Colocam-se numa situação de inferioridade em relação aos homens que não têm essas tarefas. Logo, não há igualdade de oportunidades. É importante que as mulheres tenham condições que permitam manter os filhos cuidados por profissionais, não tendo de ir a correr do trabalho buscá-los.

Era bom que as mulheres tivessem igualdade de oportunidades e possibilidades de mostrar do que são capazes porque têm tantas capacidades como os homens. À mulher deviam ser dadas todas as condições para ela decidir, bem como a igualdade de oportunidades."
Maria Cândida Rocha Silva, presidente do Conselho de Administração do Banco Carregosa
Maria José Morgado: Um 25 de Abril novo

"Ela estava no parque com os netos, a luz do fim de tarde coada pelo verde das árvores enchia a atmosfera de uma indescritível doçura misturada com o bruáá das brincadeiras inocentes. Era Abril, uma vez mais pensou no tempo contado pelos anos da filha e dos netos que faziam daquela distância um caminho para um 25 de Abril novo, onde os sonhos deram lugar às inquietações, onde a liberdade deu lugar a injustiças, onde as conquistas das mulheres deram lugar a desigualdades, onde a democracia também originou pobreza e corrupção, em vez da igualdade e justiça.
Pensou em tudo isso com a sensação amarga do falhanço das lutas da sua geração apesar de toda a exaltação dos tempos heróicos do passado, o que nos distancia do vazio das comemorações oficiais do estilo cravo-ao-peito, repetido e aborrecido. Porque é preciso compreender o mundo novo globalizado de hoje, onde o terrorismo, a corrupção, o cibercrime, a violência contra os mais fracos se transformaram em novos desafios ameaçadores do futuro dos nossos jovens e do mundo. Naquele fim de tarde mágico, o brilho carinhoso dos olhos das crianças ensinava-lhe o caminho."
Maria José Morgado, magistrada do Ministério Público

O essencial já está conquistado
"Com o 25 de Abril as mulheres sentiram a liberdade. E isso verificou-se na maneira como elas reagiram no próprio 25 de Abril. Quando o Movimento das Forças Armadas mandava toda a gente ficar em casa, as mulheres foram as primeiras a ir para a rua. Acompanharam as tropas durante aquele dia todo, trouxeram água, sandes, o que lhes pareceu necessário porque aqueles homens estiveram muitas horas sem comer. Depois as mulheres foram as primeiras que se chegaram à frente nas cidades, mas sobretudo nas vilas e nas aldeias do interior, apresentando as suas reivindicações. Isso foi muito importante porque as mulheres antes do 25 de Abril, mesmo as mais evoluídas, não ousavam falar em público. Eu lembro-me que no sindicato dos jornalistas eu era muito apreciada pela secretária da direção porque fui a primeira mulher a falar numa assembleia geral do sindicato. De repente, as mulheres soltaram-se e disseram o que precisavam, como escolas próximas para os filhos, caminhos para os poderem facilmente levar ou ir às compras. Assim como água canalizada, esgotos, eletricidade e isso mudou totalmente a vida neste país, beneficiando toda a gente, mas especialmente as mulheres. Em 1976 foram criadas consultas de planeamento familiar em todos os centros de saúde do país, o que foi importantíssimo porque uma das coisas de que as mulheres mais sofriam era o difícil acesso aos métodos contracetivos. Mesmo não tendo sido contemplada a liberdade de abortar legalmente e com acompanhamento médico, iniciou-se uma campanha e reuniram-se vários grupos de mulheres.
Quando começaram os trabalhos para a [Assembleia] Constituinte houve uma fase em que muitos direitos foram considerados e as mulheres não tiveram de lutar por eles, como o direito de poder ausentar-se do país ou abrir uma conta no banco, ambos sem o consentimento do marido. Na revisão do código civil, em 1976, consagraram-se ainda muitos mais direitos para a mulher dentro da família. A Constituição reconheceu a igualdade entre os géneros, o que permitiu às mulheres aceder a todas as profissões e algumas estavam vedadas, como a diplomacia e a magistratura. Houve um grande investimento no ensino, o que permitiu aumentar o número de mulheres que chegavam aos cursos superiores, o nível de vida também foi subindo e criou-se um salário mínimo. Por outro lado, acabou a guerra no Ultramar, os homens regressaram e isso foi bom para as famílias porque eram sobretudo casais jovens.

Nestes aspetos da sociedade, as mulheres só tiveram a ganhar. Há coisas que ainda faltam, mas o essencial já está conquistado. É um caminho que ainda se está a percorrer. A liberdade é o princípio e o fim de todas as coisas."
Maria Antónia Palla, jornalista e ex-chefe de redação da Máxima
O fim do chefe de família e dos filhos ilegítimos

"São dias inesquecíveis. Subitamente, naqueles primeiros meses do parlamento democraticamente eleito pelos portugueses, em 1977, era necessário dar cumprimento à norma constitucional que consagrava a igualdade das mulheres e dos homens. Acabar com toda uma herança da ditadura que nos discriminava e diminuía na lei, na sociedade e na família. Tínhamos ganho o direito de voto em plena igualdade e foi preciso, numa notável cooperação de todos os partidos do Parlamento, alterar todas as leis e códigos. De todo esse trabalho, que tanto me marcou, sublinharei dois factos que contribuíram decisivamente para obter a plena igualdade: o fim do chefe de família e o fim dos filhos ilegítimos. Foi em 1977 com a alteração do Código Civil que acabou o chefe de família e se consagrou o dever de cooperação e a igualdade de direitos na família.
A mulher era obrigada a ter a residência do marido e necessitava da sua autorização para exercer certas profissões, até aos anos 60, e o marido podia requerer o fim do contrato de trabalho da mulher. Só nesse ano foi reconhecida a igualdade da responsabilidade na educação dos filhos e se consagrou o direito da viúva à casa de família. E o seu direito de ser ouvida em tudo o que dizia respeito aos interesses dos filhos. Outra enorme mudança foi o fim dos filhos ilegítimos. Filhos unicamente reconhecidos pelas mães casadas ou solteiras com a possibilidade de indicarem no registo do filho o presumível pai e elas simplesmente mães. O impedimento legal da discriminação da mulher e a consagração da igualdade de direitos não significou de imediato a mudança de mentalidades. Mas foi um passo gigante nesse caminho.
Por mim, recordo com muito orgulho ter feito parte desse fascinante trabalho coordenado pela professora de Direito [Isabel] Magalhães Colaço com a participação de notáveis mulheres deputadas de todos os partidos no Parlamento que, independentemente das divergências ideológicas e políticas, se uniram nessa tarefa. Bons tempos!"

Zita Seabra, editora
A sorte de se ter vivido o 25 de Abril
"Onde estava no 25 de Abril? Lá! Às 7, o aviso: Está na rua! Eu ainda fui ao emprego que arranjara ao ser suspensa da Faculdade (‘subversiva’...), mas mandaram todos para casa. ‘Abaixo o Fascismo! Abaixo a guerra colonial!’ Do Cineclube Universitário saímos uns 50 para o Largo do Carmo. Depois dos chaimites com Marcello e Thomaz, subimos à PIDE-DGS. A multidão enchia a rua e gritava: ‘Assassinos!’ Eles ripostaram com as G3. Esgueirei-me entre as rajadas para um vão de escada, apanhando com gente em cima, de roldão. Pareceu uma eternidade até que deu para eu poder correr para a Brasileira. A Caxias, libertar os presos! Passava da meia-noite, no pinhal escuro vultos avançavam: o Tó Luís ainda conta como, do breu, lhe saltei ao pescoço... Ano após ano, revejo os Capitães de Abril, da Maria de Medeiros. Impossível esquecer a Cinemateca de Jacarta a abarrotar de indonésios que naquele 25 de Abril de 2002 aplaudiam e gritavam: ‘Maia! Maia! Maia!’ E a Joana sempre a dizer: ‘Oh, Mãe! Que sorte vocês terem vivido o 25 de Abril!’ Foi sorte incrível! E vivermos no Portugal livre que Abril nos abriu. Persistem injustiças e a corrupção tudo corrói, destilação neoliberal em ecossistema global. Um combate a travar com a determinação dos soldados de Abril: é Abril, por outros meios. 25 de Abril sempre!"
Ana Gomes, comentadora política e ex-eurodeputada
