Luísa Costa Gomes: "Sempre gostei muito de pintar, mas preteri esta arte em favor da escrita."
Conhecemo-la como autora de ficção, teatro e biografia, mas Luísa Costa Gomes dá-nos agora a ver, numa exposição em Lisboa, o seu trabalho como pintora. Depois de ter publicado dois livros em 2024, prepara também um libreto para uma ópera sobre Camões.
Foto: Miguel Baltazar13 de janeiro de 2025 às 07:00 Maria João Martins
"Para mim, o processo de fazer coisas é vivido sempre com muito amor e muita intensidade", diz-nos Luísa Costa Gomes sobre a multiplicidade de registos e linguagens a que se tem dedicado ao longo de um dos mais interessantes e singulares percursos literários portugueses.
Depois de ter escrito um dos melhores livros de 2024,Visitar Amigos (Publicações Dom Quixote), a escritora dá-se a ver na condição de pintora, na exposição A Outra Coisa,que pode ser vista até 8 de fevereiro na Galeria Monumental, em Lisboa (Campo Mártires da Pátria, 101). Uma exposição que a própria começa por definir como um acaso da sorte:"Aproximei-me há alguns anos da Galeria Monumental, quando pus lá uns desenhitos na exposição anual que eles dedicam aos pequenos formatos. Ainda vendi uma coisa ou outra, o que me deu algum encorajamento, mas a minha maior surpresa foi o convite que os galeristas me endereçaram para apresentar uma exposição individual."
Mas se, como Luísa acredita, a sorte (ou a falta dela) decide muita coisa nas nossas vidas, o seu interesse e dedicação à Pintura não são caprichos de diletante nemum fascínio recente: "Sempre gostei muito de pintar, mas preteri esta arte em favor da escrita. É verdade que comecei muito cedo a desenhar, mas rapidamente chegava ao limite da minha capacidade de aguentar a frustração."
Em 2019, a escritora já expusera alguns trabalhos na Fábrica de Braço de Prata e o confinamento, ditado pela pandemia, levou-a, nos anos imediatos, a trabalhar muito intensamente, também em pintura. "Foi um momento muito formativo para mim", recorda. "Num mundo cheio de imagens, com grande qualidade técnica, pintar é muito mais contigente e arbitrário do que escrever. Devo dizer que há pintores que são muito consensuais entre os críticos, sem que eu compreenda esse apelo."
Entre as referências de Luísa destaca-se, neste momento, o francês Pierre Bonnard, mas, noutros momentos, já viveu autênticas paixões estéticas por Vermeer e Chagal. Em comum com o trabalho literário, há o trabalho de investigação de que ela verdadeiramente desfruta: "Gosto muito de dizer que é o pincel que pinta e quando isso acontece é que realmente acontece a pintura. Aqui, a investigação acontece durante o próprio ato de pintar. Na literatura, a investigação é prévia à escrita."
Um processo tão absorvente que Luísa o descreve assim na folha de sala da exposição: "Mas enquanto não detecta a figura, o olho inquieta-se. Busca, fareja e, no jardim, compõe caramanchões e das manchas faz magnólias, bancos à espera de mulheres que neles se reclinem, encontra banheiras sem baigneuses, camas sem dormeuses, clareiras sem danseuses. Provavelmente estarão, mas obnubiladas pela luz, escondidas bem à vista, nessa memória abismada em Bonnard. E penso em Bonnard como espectadora das suas luzes, numa homenagem o seu tanto gauche e carnavalesca. Será possível agir sobre o papel sem reconhecer a história dessa mesma acção? Será possível ver sem construir o contexto da visão?"
O título da exposição tem um duplo sentido. Por um lado, como nos diz, remete sempre "para outra coisa que o nosso olhar procura perante qualquer quadro. Não me parece que haja uma arte totalmente abstrata, na medida em que tudo simboliza alguma coisa, até as cores. O nosso cérebro está sempre a configurar alguma coisa." Por outro, a pintura é a outra coisa na vida de Luísa Costa Gomes, escritora de reconhecidos méritos na ficção, na biografia e no teatro, com vários prémios ganhos, entre os quais, a título de curiosidade, o prémio Máxima de Literatura, em 1994.
As diferenças entre as várias linguagens existem, reconhece, mas as fronteiras são permeáveis. Em 2024, como vimos, Luísa publicou um livro de contos, muito aplaudido pelo público e pelo crítica (enfim, a pouca crítica que ainda temos) com o livro de contosVisitar Amigos. Um género pelo qual tem uma particular preferência, apesar da ideia, errada a seu ver, de que não se vende. "Este conjunto de contos é quase uma exposição, feita de vários quadros."
A aparente simplicidade do formato é, como frisa, enganadora: "Recordo, por exemplo, um dos meus contos - As Cinzas de Pirandello - que demorou anos a ser concluído. Fiz muita investigação, preciso disso muito, mesmo que, em determinado momento, se possa mesmo tornar um bocadinho obsessivo."
O gosto por este género literário levou-a a dirigir durante vários anos a revista Ficções,que publicou largas dezenas de autores nacionais e estrangeiros: "Há muito a ideia de que não se vendem contos, mas basta ir a Inglaterra ou aos Estados Unidos para ver que não é assim. Muitos grandes autores internacionais dedicaram-se ao conto quase em exclusividade."
Foto: DR
Embora muito consciente da formatação de autores e leitores que a indústria da edição está a aplicar à literatura, no modo como decide o que se publica ou não, Luísa Costa Gomes não desiste. No final de 2024, lançou um livro de pendor biográfico sobre os primeiros anos de Sacadura Cabral (O Aviador na Marinha - 1881-1915), que foi, afinal, muito mais do que o companheiro deGago Coutinho na viagem de travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922. Uma figura a que a escritora já dedicara a peçaO Céu de Sacadura,apresentada em março de 1998, no Teatro Nacional Dona Maria II:"É uma figura muito injustiçada, até porque morreu muito novo, e era também por temperamento um homem muito reservado e misterioso."
Esse mistério interpelou a escritora. Quem foi, de facto, Artur de Sacadura Cabral, que desapareceu, aos 43 anos, no mar do Norte, num acidente aéreo? "Era nitidamente um solitário. Eu queria muito estudar o papel dele nas colónias de África, no princípio do século XX, quando foi integrado em várias missões científicas que eram qualquer coisa de homérico, ao nível do esforço e do espírito de sacrifício. As peregrinações a pé que estes homens, portugueses acompanhados por carregadores africanos, faziam durante dias inteiros, com pouco dinheiro e poucos meios, à portuguesa, afinal, não deixa de me impressionar."
Neste momento, Luísa está a escrever o libreto de uma ópera sobre Camões, com música de Luís Tinoco, a integrar no programa de comemorações dos 500 anos do poeta. Um género a que regressa com gosto, depois de, em 1991, ter escrito o libreto deO Corvo Branco,óperade Philip Glass, encomendada pela então Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Esta é uma frase do romance “Perto do Coração Selvagem”, o primeiro que a autora escreveu, quando tinha apenas 23 anos, e que foi aclamado como obra-prima. Para quem ainda não conhece a escrita moderna, disruptiva e audaz de Lispector, a Companhia da Letras publica agora a sua obra completa.