João Salaviza, cineasta: “O cinema encanta-nos porque se aproxima da linguagem do sonho.”
Filmado no meio da floresta brasileira, o filme “A Flor do Buriti” conta o quotidiano e a resistência do povo indígena sul-americano. O elenco foi premiado com o “Prix d’Ensemble” no Festival de Cannes. Conversa a 4 vozes com o casal de realizadores e os protagonistas. Para a Máxima evocam as suas vidas na comunidade indígena Krahô.
João Salaviza, cineasta: “O cinema encanta-nos porque se aproxima da linguagem do sonho.”
01 de abril de 2024 às 14:52 Tiago Manaia
A Cinemateca em Lisboa pode ser uma ilha, os encontros passam obrigatoriamente por uma conversa sobre cinema. Uma ilha onde a cidade se rege a outro ritmo e as narrativas chegam de todos os lugares com décadas diferentes inscritas na tela.
João Salaviza sorri com os olhos, pede desculpa pelo atraso na azáfama de um dia em que deu várias entrevistas. Prepara-se para conhecer o Ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, "Ele viu A Flor do Buriti em Cannes", diz João, enquanto saúda várias pessoas da sua produtora portuguesa. Com o Festival de Cannes tem uma relação forte, foi na meca do cinema internacional que recebeu a Palma de Ouro para a sua primeira curta-metragem, Arena (2009). Nunca Portugal tinha sentido tanto orgulho de uma obra que se focava num personagem à margem, num bairro difícil de Lisboa. João começou assim a filmar a sua cidade natal, em vários filmes que serão evocados ao longo desta entrevista. Apaixonou-se mais tarde por aquela que se tornaria sua companheira e mãe da sua filha, Renée Nader Messora. Está ao seu lado, observa o espaço do nosso encontro com curiosidade, há um pequeno cocktail que se prepara no pátio interior da Cinemateca. Vivem parte do ano na comunidade da aldeia Pedra Branca, na região Tocantins, no Brasil. Há mais de dez anos que começaram a viver com o povo indígena Krahô, que agora filmam num misto de documentário e ficção. A Flor do Buriti percorre três épocas da História do povo indígena, mergulha o espectador num quotidiano onde a natureza interage com o humano e alimenta os rituais e a espiritualidade. O filme tanto nos leva para o massacre de 1940 feito aos Krahô (por fazendeiros das regiões vizinha), como relata a atualidade mais recente em que os povos indígenas se deslocaram até Brasília para manifestar contra as políticas de Bolsonaro ("ele não"), e os direitos à terra dos povos indígenas no Brasil.
Ao lado de João Salaviza estão os dois protagonistas deste filme, Hyjnõ Krahô e Cruwakwyj Krahô. Vieram até Lisboa para a estreia desta noite, num misto de português de Portugal e do Brasil, os sotaques complementam-se. O que dizem os Krahô conta. Esta noite a Cinemateca ouve-os.
Ao longo do filme a palavra que ouvimos mais é medo. Surge muitas vezes nas conversas da comunidade Krahô. Há outra expressão que também surge muito, é usada pela comunidade para designar o homem branco, chamam-no de "cupe".O medo é algo que parece ter invadido as sociedades ocidentais e muitas vezes é um sentimento provocado por discursos que são exteriores a sentimentos das populações. Porque surge tanto este sentimento?
João Salaviza: vamos quebrar o protocolo e passar a palavra a eles. (João e Renée traduzem a pergunta que acaba de ser feita aos dois protagonistas do filme.)
Hyjnõ Krahô: Bom de que tenho medo? Da nossa terra ser invadida, não é? Tenho medo que a gente, e que os invasores peguem a nossa madeira e que carreguem os filhotes dos animais. Esse é o nosso medo, e a gente está a enfrentá-lo. E também... Eu tive medo no primeiro momento em que estive em frente da câmara (risos). Era difícil, e nós comentávamos isso, 'eu vou ficar em frente da câmara, eu estou com medo'. Diziam-nos: 'Não precisa de ter medo a câmara, não vai te comer'. Então esse são medos nossos... Da nossa comunidade... E temos também medo de perder a nossa cultura, a nossa história e mesmo a nossa própria língua. Temos esse medo de perder essa história nossa.
Luzia Cruwakwyj Krahô: Da minha parte... O medo está dentro de mim. Até para viajar para cá (Lisboa) eu tive medo. Ter de andar de avião e voar. Mas como o H?jnõ falou, eu tinha medo de enfrentar a câmara, nunca tinha ficado frente a uma.... Eu nem imaginava. ... E depois ao ver a minha imagem foi muito impressionante. (pausa) Não se acaba com o medo, mas enfrentá-lo, no futuro, pode mostrar tudo o que a gente suportou até aqui. O medo pode acabar dentro de nós se não desistirmos.
Foto: DR
O filme começa com uma cena de parto na comunidade. Na cena em que a mulher está a dar à luz e chama pela avó, pede-lhe ajuda. A ideia de confiar nas pessoas que estão acima de nós está presente. Como é vista a maternidade na comunidade? Como é a experiência de ter um bebé confiando sobretudo na sabedoria dos outros? Sem assistência médica.
Luzia Cruwakwyj Krahô: Na vida real eu passei por isso mesmo, por esse processo de ganhar o bebé. Temos os anciões que cuidam de nós. Porque ali não há hospitais, farmácias ou médicos. Não há pessoas da cidade, mas nós confiamos no remédio do cerrado (bioma). Vivemos ali, por isso o remédio está ali. À volta das nossas casas. O que precisamos mais é das pessoas mais velhas, elas acompanham o nosso processo de ganhar bebé. O remédio está ali...
Foto: DR
Nas cidades ocidentais sofremos muito de insónias talvez por termos demasiada informação. A certa altura, no filme, há uma criança que é pintada pelo xamã para que as suas insónias se acalmem. Esse detalhe do filme ligou a vida daquela comunidade à minha realidade em Lisboa. Porque temos insónias?
João Salaviza: Podem ser os nossos espíritos que estão atormentados.
Renée Messora: O espírito está fraco, está solto do corpo e aí ficas perturbado e não consegues dormir direito. Nesse momento é preciso falar com o xamã para que seja feita uma mediação e tentar perceber o que está rolando com o seu espírito.
Hyjnõ Krahô: O processo do Xamã é muito o de colocar transparente [H?jnõ é xamã, quer dizer perto da essência de cada um]. Nós temos uma visão bem igual. Eu posso estar a olhar para você e ver que o seu espírito não está com você. Ou está sozinho ou talvez esteja com outro espírito. Ou um parente quer usar você. Para fazer esse tratamento eu tenho de usar um remédio do cerrado para que ele puxe esse espírito para você. Através dessa planta eu consigo puxar o espírito do outro parente que está com o seu espírito. Então o processo é difícil, porque a gente sofre. Talvez o seu espírito não se queira libertar do espírito do seu parente, como acontece à criança do filme ...
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Renée Messora: Os espíritos dos antepassados que já morreram podem ficar a chamar os vivos. E o teu espírito pode enganar-se e ir. Então o xamã tem de convencer o espírito do antepassado a liberar esse outro espírito...É toda uma mediação que acontece nesse mundo para que esse espírito possa voltar para perto do teu corpo. Há várias situações que podem fazer com que o espírito se afaste do corpo. Quando uma pessoa está doente é porque essa distância está a aumentar (entre o corpo e o espírito), e tem sempre de diminuir. O trabalho dos Xamã é o de cercar esse espírito para ele não se afastar demais, senão ele pode não voltar.
João Salaviza: Falavas das insónias, isso é um exemplo, mas há muitos outros, como as nossas premissas cognitivas e as nossas ontologias, os nossos termos são totalmente destabilizados pelos Krahô quando conversamos sobre imensas coisas. Na questão da espiritualidade nós temos no ocidente uma divisão muito marcada entre consciente e subconsciente, temos milhares de áreas científicas a refletir sobre isso e para os Krahô isso não existe. Quando dormimos, o nosso espírito sai e ele não é uma coisa metafísica ou do fantástico. O espírito ele existe, está aí. E ele é muito quotidiano, não é uma coisa como nos filmes de terror. A primeira coisa que te perguntam todos os dias de manhã é: o que sonhaste? E o sonho condiciona as decisões da comunidade, preocupações. O Davi Kopenawa escreveu no livro A Queda do Céu uma frase muito bonita, 'vocês os brancos dormem muito e só sonham com vocês mesmos'. Nós vamos para a psicanálise falar dos nossos sonhos... dizemos, 'o meu pai ou a minha mãe' e não saímos desta redoma. Para os Krahô, o sonho é o desejo dos outros, o sonho é a outra pessoa a pensar em nós. É o espírito de alguém a aproximar-se. Portanto há um mundo social mesmo de espírito e de pessoas, que depois envolve animais disfarçados de pessoas. É muito rico e presente no quotidiano. Não tens de ir para uma caverna, fala-se sobre os sonhos. Nós na Europa perdemos isso há vários séculos. Já foi assim. Na Grécia foi assim... Os gregos seguiam coisas em função dos sonhos.
Foto: DR
Os filmes falam de sonhos, ou falavam?
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João Salaviza: Os filmes falam de sonhos. Falam ainda. O cinema encanta-nos porque ele se aproxima da linguagem do sonho.
Foto: Getty Images
Tu sempre procuraste no teu cinema a realidade das pessoas que estavam à margem, pensando nas tuas primeiras curtas-metragens. A realidade nunca impediu que o cinema pudesse evocar uma ideia de sonho?
João Salaviza: Nós montamos os sonhos como no cinema. Os sonhos não são lineares e nós durante o dia vamo-nos lembrando de fragmentos dos sonhos. Os filmes também são assim, são fragmentos. A linguagem da montagem de cinema segue a lógica do mundo onírico.
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Ao longo do filme impressionou-me a ausência de olhares diretos para a câmara, sei que não eram atores que filmavam, mas sim pessoas da comunidade indígena...toda a parte com as crianças que filmam é impressionante, sobretudo a força que existe nessas imagens quase documentais. Como conseguiram por exemplo envolver aquelas crianças?
João Salaviza: Foi a intimidade.
Renée Messora: Estamos a filmar pessoas que conhecemos muito bem. Aquela criançada a gente viu crescer ou nascer.
João Salaviza: Eu acho que não há grande mistério. É o tempo compartilhado e filmar pessoas que nos são próximas. E poder ter tempo para o fazer, para errar bem e ir construindo. Perceber que ninguém faz nada no filme que não faça sentido. Claro que o filme é uma construção, e no caso das crianças é muito interessante porque é mesmo representativo de como a lógica da vida se funde na lógica do cinema. Nós temos uma filha de 6 anos, ela começou a ir para a aldeia com 6 meses e teve este tempo todo connosco. Para os Krahô, um casal de trinta anos como nós, não ter filhos é uma coisa que não faz muito sentido, e, portanto, o mundo das crianças estava-nos um bocadinho vedado por elas. Elas não tinham muito interesse em aproximar-se de nós. E de repente a nossa filha tinha três anos, na altura das filmagens, e foi fazendo o seu círculo de amigos, começou a ir ao rio tomar os seus banhos, e aprendeu a nadar na aldeia. De repente nós começamos a andar com os miúdos, quando eles se afastavam nos íamos com eles, porque apesar de tudo a nossa criança "branquela" não sabia andar no cerrado como um Krahô. São essas crianças que acabámos por filmar de uma maneira muito lúdica, e durante períodos muito pequenos de tempo. Estes afetos têm muito a ver com as coisas da vida, para lá do cinema.
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Foto: DR
O cinema necessita realmente dessa procura de verdade e de intimidade? No Rafa (2012) ou até no Arena (2009) estavas muito próximo do registo do documentário. Sentíamos que havia uma proximidade muito grande com os teus atores nessa altura.
João Salaviza: Mesmo com os atores eu queria que fossem eles. Acho que tem muito a ver com as pessoas que a gente filma. Estão ali precisamente para destabilizar ou detonar o guião. E trazer a sua vida.
Estava a pensar na nostalgia presente no filme. Os Krahô parecem sentir alguma nostalgia do passado, e a nostalgia é uma ideia que tem sido muito evocada na nossa sociedade ocidental, às vezes para trazer coisas do passado que são mais autoritárias. A nostalgia dos Krahô é mais livre. Como pensaram tratar este aspeto?
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João Salaviza: No caso deles a nostalgia é uma ligação ao passado e à tal ideia de ancestralidade, mas como uma coisa que se renova e que é dinâmica, não está cristalizada e projeta-se para o futuro. Há ali uma linhagem que é trabalhada, mas não acho que seja de uma maneira nostálgica e paralisante como nós. De alguma forma há uma relação de inimizade com os mortos, principalmente logo a seguir à morte, isso está no nosso filme anterior Chuva é Cantoria na Aldeia os Mortos (2018). O morto tem de ir embora. Os Krahô são muito mais focados nas crianças e no futuro do que no passado. Embora haja uma consciência histórica que está na mitologia e está também na historiografia feita por antropólogos.
Renée Messora: A ideia da ancestralidade tem a ver com a possibilidade de futuro. Eles entendem que é preciso preencherem-se da língua, dos ritos, das cosmologias, e da mitologia, para poder enfrentar o que vem por aí. É como uma ideia de sobrevivência que está em tudo. O Krahô dá o nome dos seus antepassados às novas gerações que chegam, e é uma forma de traçar essa linha na História. Eu sinto que a nostalgia deles é outra coisa, vem de outro lugar e relaciona-se com outras forças.
Foto: DR
Vocês descobriram juntos o filme no Festival de Cannes? Como foi?
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Hyjnõ Krahô: Nossa para mim foi uma felicidade. (risos) Eu nunca tinha participado em algo assim, para mim aquilo é outro mundo. Em Cannes eu encontrei o espírito do cupe (do branco), foi uma surpresa nesse sentido. Eu tinha visto o filme numa tela pequena, mas em Cannes a tela era maior, a gente ficou no meio da sala, e a tela parecia ainda maior.
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Foi esmagador?
Hyjnõ Krahô: Não, eu não fiquei com medo. Eu fiquei mais aberto até. Para mim é uma aprendizagem e uma troca.
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Luzia Cruwakwyj Krahô: Dentro de mim mesma foi uma surpresa, poder dizer "cheguei a Cannes" (risos) até comer foi difícil para mim. A comida era diferente, e vi coisas que nunca vi na minha vida, mas provei a comida do cupe (do branco) e além da comida conheci os amigos do João e da Renée.
H?jnõ Krahô: E nós também nunca tivemos muita segurança. E em Cannes a gente tinha muitos seguranças. (risos).
Foto: DR
Podemos usar a Cinemateca de Lisboa como metáfora? Estamos a conversar aqui, numa cidade onde os lisboetas já não conseguem ter dinheiro para pagar as rendas e viver, tornou-se um drama quotidiano. E estamos a falar num sítio onde são mostrados filmes do século passado. O cinema funciona aqui como um farol capaz de nos iluminar com uma luz de esperança? O cinema deve ser isso?
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João Salaviza: O cinema deve ser um espaço de encontro e de formação e intensificação de comunidade. Não só no momento de vermos os filmes, mas também no momento de fazermos os filmes. É o que nós tentamos fazer, tentar fugir do processo de alienação em que se transformaram muitos dos filmes. Fazem-se como há cem anos atrás. Muitas vezes sem nenhum questionamento crítico, com as mesmas hierarquias e as mesmas separações. Existe esta ideia de que há dois cérebros. Um que é o produtor sendo ele o tipo do dinheiro, e o realizador que é o tipo das ideias. Existem depois as outras pessoas que estão ali a servir e não pensam (pausa). Obviamente não é tudo assim, Portugal e o Brasil até são sítios onde surgem muitas outras formas de filmar ou problematizar as formas de fazer filmes. Acho incrível que este nosso filme esteja no Festival de Cannes na mesma tela onde está o filme do Scorsese... Esta língua falada por 4 mil pessoas* estar ali lado a lado de um filme feito com milhões, acho incrível e é preciso ocupar estes espaços. E também acho incrível que este filme esteja nesta Cinemateca que é um espaço de preservação, mas também de reconstrução de memória.
Foto: DR
De resistência?
João Salaviza: Sim, ainda mais com essa questão das cidades que se estão a transformar noutra coisa, num processo que é muito violento sobre um território. Mas também saber que o filme está a circular nas aldeias (indígenas) em telemóveis, por Whatsapp, em universidades, em escolas indígenas. Isto é muito rico.
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Renée Messora: Mas eu acho que ainda é pouco. Esse cinema que a gente acredita e faz, é só uma forma. Quando você vai para o Brasil e vê filmes realizados por realizadores indígenas, cada comunidade tem a sua forma, é um cinema coletivo que está a pôr em causa tudo o que a gente aprendeu sobre cinema até hoje. Esse circuito está a crescer muito e tem de crescer mais. Olhar para esse cinema é também entender um pouco das pessoas que estão nas florestas e estão a proteger esses biomas todos, e o planeta. Essas pessoas estão a falar. Ecologia é um termo nosso, eles não falam disso, eles vivem-no. Temos muitas pistas de como a gente pode mudar esse buraco (ecológico) onde nos metemos.
*falam línguas de um mesmo conjunto dialetal pertencente à família linguística jê.
A Flor do Buriti de João Salaviza e Renée Nader Messora está em exibição nos cinemas de todo o país. Câmera-Corpo Mostra de Cinema Indígena na Culturgest a 4 e 5 de abril.