Patrícia Reis sobre Maria Teresa Horta. "Somos mulheres do improviso, gostamos de conversar, odiamos a obrigatoriedade"
Acaba de sair "A desobediente", biografia de Maria Teresa Horta, a jornalista, escritora, poetisa e feminista que é de todas nós, as que lutam, sempre e nos mais pequenos detalhes, para que a vida das meninas seja mais justa e livre. Patrícia Reis conta-nos a sua história a partir de uma bela amizade.

As jovens que trabalharam na fundação das revistas femininas, ou especializadas de Moda, em Portugal, cresceram com Maria Teresa Horta. A chefe de redação da revista Mulheres, jornalista de cultura no Diário de Notícias, mas também a escritora e poetisa livre que guiou uma geração de jovens feministas, escribas e politizadas, nascidas na geração de 70. A também escritora Patrícia Reis, que passou pelas redações da Marie Claire e da Elle, não foi bem o caso, mas mergulhou nesta biografia enlevada por uma profunda identificação, amizade e admiração.
Patrícia Reis é feita de matéria semelhante, sem medo das palavras e das regras, e resolveu alternar os seus romances com biografias de mulheres coragem, que se destacaram num país profundamente patriarcal. Depois de Simone de Oliveira, e de Maria Antónia Palla que, como Maria Teresa Horta, foi das primeiras jornalistas feministas portuguesas, basilar na história da revista Máxima; resolve agora contar-nos a história de amor e de vida desta poetisa imensa, a mesma que esta foi deixando escapar nos seus poemas sensoriais ou n'As Luzes de Leonor, a biografia que assinou sobre a Marquesa de Alorna, sua antepassada.

Maria Teresa Horta é a única sobrevivente das conhecidas "três Marias", o triângulo de intrépidas escritoras, (que desenhou com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa), que assinou as Novas Cartas Portuguesas, o manifesto feminista que ecoou mundo fora e escandalizou a ditadura portuguesa, resultando num dos mais mediáticos processos em tribunal – cuja sentença, nem por acaso, ficara marcada para 25 de abril de 1974... A chegar aos 87 anos, Maria Teresa promete continuar a inspirar as novas gerações de meninas, como uma Patti Smith no seu radicalismo pacifista e poético. Por isso, este livro nunca pareceu tão importante e urgente, num mundo que parece resvalar para as sombras do passado. Leitura obrigatória.
Qual é a tua primeira memória da Maria Teresa Horta, lembras-te?
A primeira memória da Maria Teresa é antiga: ela a discorrer sobre um livro no programa Acontece, de Carlos Pinto Coelho. Depois, textos escritos por ela, entrevistas. Fomos apresentadas na primeira ou segunda edição do evento literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, há 24 ou 25 anos, por Inês Pedrosa. A empatia foi imediata. Claro que eu sabia quem ela era, a poetisa, a coautora das Novas Cartas, a chefe de redação da revista Mulheres. Tinha-lhe admiração e respeito, daí à amizade verdadeira foi um instante.

A pergunta inevitável: porquê esta biografia e porquê agora?
Proporcionou-se assim. Em 2019, numa conversa com Rui Couceiro, editor da Contraponto, abordámos a possibilidade de fazer uma biografia para a coleção e a Teresa era a figura evidente. Tinha terminado a dissertação de mestrado sobre ela, no âmbito do mestrado em Ciência das Religiões. Tinha mergulhado a fundo na obra da Teresa, privava com ela – como continua a acontecer – diariamente. Era uma escolha evidente e, para mais, os 50 anos do 25 de Abril aproximavam-se e, com eles, os 50 anos do fim do processo judicial contra as autoras das Novas Cartas.


Será que ela te inspirou, de uma forma até indireta, a seguir o jornalismo feminino?
Não creio que possa dizer que me tenha inspirado a seguir o jornalismo, porque quando a conheci eu já era jornalista há uns anos, comecei nas redações em 1988. Sabia quem era a Teresa e admirava a sua escrita. Admirava as opções editoriais da revista Mulheres e, mais tarde, gostava de ler com vagar e concentração as propostas que a Teresa deixava no dossier que tinha sob a sua alçada na revista Marie Claire, dirigida então por Inês Pedrosa, e cuja redação eu integrava.
O biógrafo tem normalmente um pequeno fascínio pelo biografado, e a biografia será sempre um olhar, neste caso o teu, por isso quando referes que a objetividade nem sempre te foi fácil neste livro, recorda-me o jornalismo (quando fazes uma entrevista e esforças-te para que não se perceba que admiras o teu entrevistado). Como driblaste isso?

Não driblei a geografia afetiva que me une à Teresa. Desde o primeiro momento que soube que teria de expor a nossa amizade, denunciar a minha falta de imparcialidade. A Teresa é uma pessoa muito importante na minha vida. O equilíbrio entre o que podia escrever e o que deveria calar e reter apenas para mim foi complicado de estabelecer, mas diria que consegui fazê-lo. A minha admiração pela Teresa mantém-se intacta, é uma mulher com um percurso ímpar, um exemplo a seguir, na literatura, no jornalismo, na intervenção constante em prol das mulheres.
Gravaste para cima de cem horas de conversa, vocês criaram algum tipo de hábito regular, ou disciplina, de conversa, ou foi sendo feita sem grandes regras? E bebiam chá na sala da Maria Teresa, rodeadas dos seus livros e revistas?
Nunca tivemos regras ou disciplina, aliás acho que isso não se coaduna connosco. Somos mulheres do improviso, gostamos de estar juntas, de conversar, odiamos a obrigatoriedade seja do que for. Não temos grande apetência para o convívio com a autoridade, com a regra. Portanto, a construção da biografia foi um processo feito ao sabor do momento, dos dias ou das horas, da nossa vontade. Passámos muitas horas juntas, na sala a que chama o quarto de Virginia Woolf, e muitas horas ao telemóvel. Falámos – e assim continuamos a fazer – todos os dias. Umas vezes para a biografia, outras para nós próprias, como alimento exclusivo da nossa amizade.

Há algum "ensinamento" ou lema de vida que guardes destas conversas?
Um propósito: vive o mais livremente possível, vive com intensidade e não vergues, não comprometas os teus valores, os teus princípios, nunca te cales.
E alguma estória, dentro da sua grande e longa vida, que te tivesse impressionado de alguma forma? Qual e porquê?

A vida da Teresa é rica em detalhes que nos surpreendem. É rica em dádiva e sofrimento. Em histórias que revelam o contexto histórico, devolvendo-nos um olhar sobre o país, o mundo, a sociedade e os costumes. Muitas vezes fui surpreendida. O episódio que mais me comoveu é aquele que relata a ideia da Teresa de que proteger a mãe é crucial e, por isso, para a manter só sua, engole uma carta que lhe escreveu. Não vou adiantar mais pormenores porque, como se diz, não posso fazer spoiler.

A determinada altura, no prefácio, dizes que a mística de Maria Teresa Horta é "a sua constante viagem ao passado, à infância." A mulher-menina é muito presente nela, mas como descreverias essa mística?
A Teresa tem o dobro da sensibilidade das outras pessoas. É uma esponja do mundo, das energias dos outros. Essa condição permite-lhe radiografar os outros com uma precisão quase de vidente, como se o futuro lhe fosse evidente. A partir deste pressuposto, como é fácil de imaginar, cria-se uma mística própria porque a sua cosmovisão é singular, é dela.
Esta biografia surge depois das que assinaste anteriormente, de Maria Antónia Palla e Simone de Oliveira? Há alguma sequência, ou ligação, entre elas? Queres contar a vida de mulheres fortes e inspiradoras e alternar com os romances?
São mulheres fortes, livres, desobedientes, capazes de enfrentar as adversidades com a coragem de quem sabe que a razão está do seu lado. Ou talvez seja um pouco mais do que isso: são mulheres, as três, convictas de que o seu percurso, pese o sofrimento e obstáculos, é diferenciado. Não há uma sequência consciente, aconteceu-me biografar estas mulheres e, além de muito gratificante, tem sido um verdadeiro privilégio. Creio que fechei um ciclo de trabalho que, sendo moroso e árduo, é algo de que me orgulho.
Maria Teresa Horta é uma mulher que, como escreveste, reivindica a liberdade, por isso, esteve sempre a equilibrar, dentro de si, creio, uma vontade combativa e indómita, de onde vem a desobediência, com uma natureza frágil, carente, suave e super adaptativa, que toca mais o "eterno feminino", (que nem Maria Velho da Costa nem Maria Isabel Barreno partilhavam, eram muito mais "duras"). Concordas?
Teresa é uma mulher livre, diferenciada, forte e com uma voz própria, incapaz de fazer cedências ou compromissos de silêncio que a impeçam de dizer o que sente sobre qualquer matéria. Foi imensamente prejudicada por ser assim, por não alinhar com o convencional. É, também, uma mulher cuja fragilidade não nos escapa, porque é carente, porque se sente sempre a menina que foi abandonada pela mãe, pela avó. Há uma dualidade na Teresa que a define: a Teresa forte e pronta para o combate e a Teresa mergulhada numa tristeza infinita.
Dizes existirem várias Teresas em Maria Teresa Horta: qual é a mais fascinante para ti, e a que consideras mais fora da caixa num país como Portugal e num tempo conturbado de jovem democracia?
A Teresa é, como dito, um conjunto de Teresas. A poetisa, a jornalista, a mãe, a amiga, a feminista, a mulher. Todas são uma e uma são todas. A mais fascinante, para mim, é a Teresinha, aquela que se vê pendurada pela janela por uma mãe que sofre de depressão pós-parto, a que quer salvar a irmã, que anseia por conseguir entender como as letras se conjugam e formam palavras. A Teresinha é o chão fundador daquela que virá a ser Maria Teresa Horta e está espelhada em toda a sua obra.
O feminismo deve-lhe muito, e a algumas jornalistas, como tu, que sempre trazem esta causa fundamental ao peito. Como olhas para o retrocesso civilizacional que estamos a viver, com o recrudescer do conservadorismo, e os números do assédio, da violência doméstica, e no namoro, preocupantes, já para não falar do resto do mundo?...
Não é possível olhar para o mundo sem sentir um aperto no coração, uma preocupação crescente com o estado a que chegámos e o que nos pode ainda vir a acontecer. Celebramos 50 anos de uma democracia que, afinal, nos recorda que é um tecido frágil, capaz de ser traído. O papel das mulheres na sociedade portuguesa, no mundo, é sempre um jogo de obstáculos e de conquistas. É sempre um caminho que se faz caminhando. Como feminista – e eu acredito que ser feminista não tem género, os homens à minha volta são, felizmente, tão feministas quanto eu – é ainda essencial. Temos muito que conquistar e precisamos ainda de salvaguardar realidades que são tanto de origem familiar quanto profissional. As mulheres continuam a morrer às mãos dos maridos, namorados, companheiros. Continuam a ganhar menos que os homens – em Portugal, a disparidade salarial faz com que as mulheres trabalhem uma média de 43 horas a mais por ano gratuitamente -, a ter menos hipóteses de progressão de carreira. As mulheres portuguesas trabalham em casa mais do que os homens, assumem-se como cuidadoras dos menores e dos mais velhos. Quando me dizem que o tempo do feminismo acabou, gostaria de conseguir concordar, mas, pelo contrário, sou obrigada a responder que o tempo do feminismo não tem fim à vista e precisa que todos estejamos atentos e conscientes do que acontece na vida das mulheres e das meninas. Porque o que continua a acontecer, a realidade, não é bom. Para ninguém.
