A Carina abriu uma greta da cortina, chamou-me, psiu, e fez uma careta que pretendeu ser engraçada, mas eu hesitei: vou, não vou? Respondo, não respondo? Senti uma espécie de torpor mental. Lembrei-me “deve ser acídia”. Recordo-me de ter lido que, em tempos, antes de terem feito uma reforma à lista dos pecados mortais, a acídia era um deles. Um xaile negro cobriu-me o espírito, senti a cabeça aquecer e tudo em redor parar como se ficasse mole, uma papa de coisas que não se mexem.
“Filipa? Então?” A Carina ficou impaciente e deu-me pressa. “Anda cá, amiga. O que é que se passa contigo?” Devia ter-lhe dito que era acídia e que já passava. Mas duvido muito que a Carina fizesse a mais pálida ideia do que acídia significa, do que é, do peso histórico que tem. E, além disso, não era verdade. Era só a parte visível da verdade. Para lhe responder com justiça teríamos de aprofundar um pouco. “Filipa, mas tu sentes-te bem? Tu nem pareces tu.”
A Carina conhecia-me bem. Éramos amigas há 12 anos, tinha feito naquele mês de dezembro. Sei-o porque nos conhecemos no jantar de Natal da empresa onde os nossos maridos trabalhavam juntos. A empresa, que pretendia manter um espírito familiar e unido, além de bastante elitista, permitia, nessa altura, que os funcionários levassem o seu “significant other”. Era assim, precisamente, que anunciavam essa abertura de espírito no convite, por escrito.
Não consigo imaginar um gesto mais corporate-minded do que chamar significant other à pessoa que escolhemos para nos acompanhar. Contudo, ao mesmo tempo, também eu cedo aos anglicismos e, neste caso concreto, não encontro expressão melhor nem mais adequada do que significant other. O mais próximo que temos, cara-metade, é demasiado longínquo; todas as outras designações pecam por excesso de especificidade. Portanto, uso a mesma expressão que me apetece criticar: significant others, era isso que nós éramos nesse jantar, eu e a Carina. E mais ninguém da empresa levou significantes consigo, só mesmo os nossos maridos.
O João, meu marido, e o Cláudio, marido da Carina, não eram particularmente próximos. Aliás, a diferença de idades - o Cláudio era da minha idade, ou seja, 11 anos mais velho do que o João - colocava-os em categorias diferentes dentro da hierarquia da firma. Só que o facto de ambos - e só eles, mais ninguém - terem optado por levar significant others com eles fez com que acabássemos sentados à mesma mesa, perto uns dos outros e com vontade de fazer conversa. O ponto de partida foi fácil: então, mais ninguém trouxe companhia, aparentemente. O que, inicialmente parecia desconfortável para mim (e, imagino eu, também para a Carina e para os homens), tornou-se subitamente num ponto de contacto, numa cumplicidade espontânea. Não estávamos sós, estávamos juntos. Éramos semelhantes. Pensávamos igual. Eles valorizavam as mulheres que tinham e nós sentíamos-nos valorizadas por eles e orgulhosas dos homens que havíamos escolhido.
A amizade entre todos tornou-se forte. Estarmos juntos passou a ser uma constante. Jantávamos muitas vezes, fazíamos planos, fazíamos viagens, passávamos férias. Nós não tínhamos filhos e eles também não. Eu nunca fui especialmente dada à minha família; a família do João resumia-se à mãe dele e a uns parentes mais ou menos dispersos com quem ele mal falava. A Carina, sim, mantinha as ligações de sangue intactas e em dia, mas tinha vindo de uma terra que fica sabe-se lá onde, se eu tivesse de apontá-la no mapa não seria capaz de acertar nem no distrito, pelo que a relação familiar era sobretudo à distância. Sobrava o Cláudio, com quem a família cortara laços quando se divorciou da primeira mulher (nunca perguntei porquê nem o que sucedera, não me diz respeito - mas não vou negar que sinto curiosidade).
Então, foi num ápice que nos tornámos uma espécie de pós-família, um grupo de pessoas cujas vidas se iam desenrolando em conjunto, como que em parceria. Os homens foram desenvolvendo uma relação positivamente masculina. A diferença de idades impedia que se comportassem como compinchas palermas e tóxicos. Desenvolveram uma relação de irmão mais velho com irmão mais novo. Havia ali uma hierarquia ditada pela idade, pela experiência de vida. A jovialidade charmosa do João contrastava com a maturidade serena do Cláudio, mas não se contrapunham: dir-se-ia que se complementavam, que se acrescentavam.
Eu e a Carina não tínhamos sequer obstáculos com a idade: nascidas com um ano de diferença, partilhávamos as mesmas memórias e vivências semelhantes. E mais uma série de coisas que, aos poucos, fomos descobrindo. Perdemos rapidamente o pudor ao pé uma da outra - muito por culpa da Carina, que não tinha propriamente superego no que toca a comportamentos sociais e ao estar em público. Vimo-nos nuas muito mais rapidamente do que eu poderia alguma vez esperar - muito mais vezes do que eu alguma vez desejaria, em todo o caso. Não, não existiu entre nós qualquer tipo de atração, muito menos relação física. Estávamos juntas como se fôssemos colegas de escola que frequentassem o balneário. Sim, comparámos maminhas, apreciámos curvas, firmezas e celulites. E analisámos, com atenção e detalhe, outros recantos e contornos uma à outra, mas num sentido puramente estético e/ou científico.
Apenas revelo isto para que percebam de que forma e a que ponto éramos íntimas. Ao longo daqueles 12 anos fomos sabendo tudo o que havia para saber sobre a outra. Houve revelações, confissões, más interpretações, confidências, incoerências e a descoberta de coincidências. Muitas. A certo ponto, demais.
Uma dessas coincidências, descobri-a já a nossa amizade era longa, duradoura, profunda e muito desinibida. Fiquei a saber que a Carina e o João se tinham conhecido muito antes de nos termos conhecido todos. E isto, em si, não tem mal algum, não existe qualquer problema ou motivo para desconfiar. O que não bate lá muito certo é nunca nenhum deles ter mencionado o facto ao longo de 12 anos de amizade. E eu só descobri por acidente: soube que tinha uma amiga em comum com a Carina. E, certa vez, falámos, eu e essa amiga, sobre isso mesmo. E ela contou-me que tinha conhecido a Carina precisamente através do João. Que uma vez, há muito tempo, os encontrou num evento, no Porto. Enquanto eu escutava a história ia acenando que sim, mas a minha expressão não devia conseguir esconder a minha surpresa, porque essa amiga, a dado momento, me perguntou “não sabias?” Não. Não sabia.
Uma mulher incomodada pode tornar-se incómoda; uma mulher desconfiada pode perder a cabeça. Agora, uma mulher com a pulga atrás da orelha consegue transformar-se numa verdadeira ninja dos serviços secretos: silenciosa, astuta, eficiente e potencialmente mortífera. Na minha cabeça, só existia uma missão, que tencionava cumprir usando o método do samurai: eu ia descobrir tudo.
Comecei por fazer aquilo que detesto, que abomino: mexer no telefone do João. Abri-lhe as redes sociais, claro, e procurei. Não procurei muito, senti vergonha, entretanto. Mas não encontrei nada, em todo o caso. O embaraço fez-me recuar alguns passos, mas logo me concentrei e repeti para mim o mantra, “vai, és um samurai”. Respirei fundo e continuei. Sempre silenciosa, sempre discreta, deslizando pelas curvas e esquinas sombrias da vida do meu marido de há 16 anos, observando recantos com minúcia, relendo detalhes em busca do pedacinho errado, da palavra mal escrita, do quadro torto na parede, da escova de dentes fora do sítio. Nada. Ou eles eram muito bons, ou eu estava só a ser paranóica.
Entretanto, e por muito que me custasse, não podia deixar de ver a Carina, dizer-lhe que não podia, inventar desculpas. Iria dar demasiado nas vistas; ela, esperta, iria perceber logo que alguma coisa não estava bem. Só que, mesmo tentando controlar o meu comportamento, manter a minha compostura, fui sendo traída pelos meus sentimentos à flor da pele. Tornei-me inconscientemente truculenta com a Carina, fui ficando mais silenciosa e observadora, como se constantemente a avaliasse, a julgasse - e a espiasse.
Eu acho que ela foi notando, mas nem por isso cedeu. Continuámos a fazer tudo como se nada fosse, a levar a nossa vida de amiguinhas. Havia um pensamento que me incomodava particularmente: eu até compreenderia se o meu marido me quisesse trocar por uma mulher mais nova, ou seja da idade dele ou mais nova ainda. Mas a Carina? Quase tão velha como eu? Caramba.
Os dias, as semanas e os meses foram passando. O meu comportamento foi ficando mais paranóico porque eu própria estava a ficar paranóica, de facto. Eu tinha a certeza de que havia ali qualquer coisa, só não sabia o quê. Ou, melhor: eu sabia o quê: só não sabia como, nem quando, nem porquê. E não havia maneira de descobrir. Ela não vacilava, não cedia. E não encontrava qualquer pista ou deslize. Em casa, com o João, o resultado era idêntico. E ele parecia tão descontraído em relação a tudo que dei por mim a duvidar de mim própria, da minha intuição e de toda a estranheza do caso.
“És uma ninja, és uma agente secreta.” Face à escassez de resultados, os meus mantras mudavam todos os dias. Depois de muito experimentar e falhar, repeti para mim a ideia de Samuel Beckett: vou tentar e vou falhar, mas se vou falhar outra vez, vou falhar melhor. Pensei numa estratégia e cheguei à conclusão de que, se tudo antes falhara, usaria uma técnica da CIA: criar caos, esperar pelo colapso.
“Filipa, mas tu sentes-te bem? Tu nem pareces tu.” A Carina continuava a chamar-me do outro lado da cortina, tinha desistido de me mostrar o que quer que fosse que estava a experimentar naquele provador de onde me chamava com psius. Não sei o que era nem me interessa hoje, como não me interessou nesse dia. Mas ela mostrou preocupação comigo. “Vá lá, amiga, diz-me o que é que se passa contigo.”
Senti que era o momento certo para desferir o golpe. Avancei. “Ó Carina, por favor, não sejas falsa comigo. Sabes perfeitamente porque é que eu estou assim.” A expressão dela congelou-se-lhe no rosto. O olhar ficou vazio e, ao mesmo tempo, expectante. “Sim, Carina. Eu sei de tudo.” Abriu a boca e os olhos, balbuciou qualquer coisa, tentou explicar ou desculpar-se ou desmentir, já nem sei. Até que, quase a ficar sem ar, perguntou: “Mas como é que tu descobriste?” Eu sorri e disse “a-ha! Eu sabia!”