Histórias de Amor Moderno: “Quando me agarrou e me enfiou na casa de banho, confesso que nem sabia o que estava a fazer”
“Coitadinhos dos homens e do seu pesado fardo fálico, sempre pronto a penetrar inadvertidamente corpos que não conseguem defender-se.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno
Histórias de Amor Moderno: “Quando me agarrou e me enfiou na casa de banho, confesso que nem sabia o que estava a fazer”Onde é que começa o abuso? Desculpem. Esta pergunta, feita assim, sem contexto, sem preparação e sem resposta pronta, pode parecer disparatada. Acordamos um dia, meio trôpegas, meio zonzas, sem saber onde estamos, e pensamos “será que foi?” E se foi, foi mesmo o quê, ao certo? Definir “abuso” é uma tarefa sobretudo jurídica. Há que ser claro nos contornos, nos eventos, na cronologia, na prestação psicológica, emocional, moral e, por fim, física do outro. O corpo – o nosso –, algures no espaço e no tempo, à mercê de alguém que se apodera dele. Mas de que modo, por que razão e em que contexto? Com que intenção, com que grau de permissão e de incentivo? Com licença de quem – se de alguém?
É complexo. Pelo menos, na teoria. Na prática, mesmo quando a zona é juridicamente cinzenta, a questão é simples e a preto e branco: eu acordei dorida, suja, a sentir-me usada, sem memória dos eventos nem da cronologia. Dirigi-me ao centro de saúde e disse “gostava de fazer análises”. Não me fizeram muitas perguntas. A enfermeira foi compreensiva. Quando a empatia funciona e a humanidade é acionada, pode surgir sororidade de um pacto de silêncio, como se ela dissesse “sei muito bem o que te fizeram a noite passada”. Tinha sémen dentro de mim. E tinha de esperar pelos resultados complementares de despistagem. Havia também sémen fora de mim, mas agarrado à pele, em diferentes sítios do corpo. Como eu disse: suja.
Saímos juntas, éramos cinco, todas raparigas. Todas livres, empoderadas, donas de si mesmas, emancipadas. Todas essas coisas que as mulheres deviam poder ser em paz e sossego, como se fossem coisas normais: as mulheres a serem seres humanos plenos, com os seus desejos e objetivos, fazendo da diversão entre amigas o uso simples de um direito consagrado e legislado internacionalmente: o de existir sem ser diminuida de modo algum.
Era a Feira de Santo André e, como é tradição na minha terra, assam-se castanhas e chouriços, prova-se vinho, fazem-se brindes. Há quem faça fogueiras na rua. Não vou à minha terra tantas vezes quanto gostaria, e muitas menos do que os meus pais desejam e pelas quais praticamente suplicam. Mas reuni quatro amigas, uma delas também da minha terra, outras três do escritório onde trabalho e de quem me tornei amiga. “Vamos provar vinhos e petiscos”, foi o desafio que lhes fiz. Passaríamos um fim de semana no limiar da irresponsabilidade, a desfrutar daquilo a que temos direito, tanto quanto todos os outros têm. Caramba, passamos um ano inteiro a trabalhar, a reinventar soluções para os outros, a dar-lhes vidas melhores, a lutar por desconhecidos. Merecemos um bocadinho de diversão e de paz de espírito.
Tudo começou lindamente, fizemos uma ronda pela vila, de tasca em tasca, de café em café. Provámos petiscos deliciosos – eu matei saudades dos meus tempos de infância e de adolescência, regressei aos sabores e aromas de então; as minhas amigas de fora descobriram um novo mundo de prazeres dionisíacos. Os vinhos novos deram-nos embalo. Chegadas à hora de almoço, nenhuma de nós estava sóbria. Mas o dia seria longo e entraria pela noite dentro.
Um rapaz da terra, mais novo do que eu, que conheço mal, foi-se juntando a nós. Aliás, foram vários os rapazes que o fizeram ou tentaram ao longo do dia. Juntavam-se, bebiam connosco, brindavam connosco. Alguns, faziam-no por diversão pura, porque íamos ficando mais bêbedas e bem-dispostas, além de não fazermos parte da população habitual da vila. Outros, eram claramente mais matreiros, tinham intenções mais ambiciosas. Era o caso desse rapaz, o Ricardo, que muito rapidamente se tornou quase íntimo de todas nós e, em especial, de mim mesma.
As suas tiradas inconvenientes iam sendo amenizadas pelo álcool, as abordagens abusivas toleradas pela nossa euforia, os toques indesejados disfarçados pelos corpos meio trôpegos. Quando me agarrou e me enfiou na casa de banho, confesso que nem sabia o que estava a fazer. Não me lembro de mais nada. Sei que acordei num quarto que desconhecia. Sozinha. Nem Ricardo nem amigas por perto. Cá dentro, um ardor insuportável e um estômago às voltas.
Dirão que me pus a jeito. As mulheres crescem a ouvir conversas desse género, vivem e convivem a vida toda com essa responsabilidade acrescida: comportarmo-nos cheias de disciplina e decência porque, infelizmente, os homens podem perder o controlo e depois, já se sabe, tropeçam na masculinidade, agarram-nos por trás com força e, sem querer, acabam dentro de nós. Mas a culpa é nossa, por mais que o sexo seja deles. Nós é que bebemos demais, nós é que tínhamos o decote e a mini-saia, nós é que não estávamos em condições.
Eles, pobres homens, inimputáveis em matéria de comportamento social e sexual, precisam que as mulheres se comportem por eles – e, mesmo assim, nunca fiando, porque pode haver um descuido, um impulso, uma tentação, e pumba, não resistem, lá estão eles a enfiar-nos os dedos onde não podem, onde não queremos, onde nunca consentimos. Coitadinhos dos homens e do seu pesado fardo fálico, sempre pronto a penetrar inadvertidamente corpos que não conseguem defender-se, esquivar-se. E é por isso que não nos podemos pôr a jeito, não podemos beber uns copos, não podemos sair sozinhas, caminhar sozinhas, entrar num bar sozinhas.
Não, não fiz queixa. Eu sei que devia ter feito. Mas e a seguir, acontecia o quê? Depois de o Ricardo me ter despido, e mal, e de se ter metido dentro de mim e de me ter usado o corpo sabe-se lá de que maneiras, ainda iria ter de me expor: diante de peritos, diante de polícias, diante de advogados, diante de juízes. Explicar-lhes que bebi até ao limite da inconsciência. Explicar-lhes que, mesmo estando eu nesse estado, aquele rapaz achou que eu seria apetecível ou que eu quereria ter relações com ele, ainda que não conseguisse verbalizá-lo, porque simplesmente nem conseguia falar. Explicar-lhes que isso é abuso, que é grave, que é o meu corpo e que eu estar na minha vida, a divertir-me como bem entender, não significa dar licença a quem quer que seja. E se alguém me fizer alguma coisa, essa pessoa tem de ser responsabilizada por isso.
E, no fim, ouvir advogados a esgrimirem argumentos, a questionarem a minha seriedade, a pedirem-me listas de ex-companheiros, “com quantas pessoas já se envolveu?”, “tem relações casuais com frequência?”, “é dependente do álcool?”, enfim, testando-me até ao limite da minha resistência, enquanto aquele que abusou de mim aguarda em silêncio por um desfecho em que alguém dirá que facilitei, que fui descuidada, que devia ter cautela. E que agora a vida dele pode ser estragada porque cometeu um erro – um erro inevitável, uma vez que eu, o seu pedaço de carne, fiquei à sua mercê. Coitadinho do Ricardo, um rapaz bom, decente, cumpridor da lei. Exceto quando abusou de mim. A culpa deve ser minha.
Não, não vou fazer queixa. Mas vou esperar pelas análises. E vou guardar na minha memória o episódio e no meu estômago o rancor devido a quem faz uma coisa destas. Poderá haver sangue. Dizem que a última coisa a morrer é a esperança, mas é mentira: a cabeça é que é a última coisa que se perde quando não há mais nada a perder.
Histórias de Amor Moderno: “Lá em casa, tínhamos uma vida normal, só que, de vez em quando, o meu pai batia na minha mãe.”
“Fui obrigada a escolher entre deixar a minha mãe sozinha com o meu pai ou permanecer em casa, sabendo que eventualmente eu podia sucumbir.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno: “Lá em casa, tínhamos uma vida normal, só que, de vez em quando, o meu pai batia na minha mãe.”
“Fui obrigada a escolher entre deixar a minha mãe sozinha com o meu pai ou permanecer em casa, sabendo que eventualmente eu podia sucumbir.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno: “Para que fique bem claro: nós não comprámos carro algum a qualquer indivíduo chamado Elon”
“Politicamente, somos distintos. Concordamos em discordar em muitos assuntos e creio mesmo que nunca votámos no mesmo partido numa eleição. E isso nunca foi um problema.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.