Histórias de Amor Moderno: “Pegou num disco da Amália e, com ar de nojo, atirou-o ao chão. 'Ouves mesmo esta bosta esquerdalha?'”

“Foi apanhando discos e espalhando pelo chão do quarto, só dizia ‘lixo, lixo, lixo’, chamava-lhes ‘escumalha’, afirmava que aquilo era tudo ’gentalha da esquerda’.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Homem critica discos de Amália e outros artistas portugueses Foto: Netflix: "Glória"
21 de junho de 2025 às 08:00 Maria Olívia Sebastião

Naquela manhã, tudo mudou. Dormi em casa do Afonso, como muitas vezes acontecia. O habitual, quando passava a noite com o meu namorado de então, era acordar muito cedo para tentar evitar cruzar-me com os pais dele - sim, ele ainda vivia com os pais quando nós terminámos. Tanto quanto sei, ainda vive - mas não posso garantir, pois perdemos o contacto e, muito honestamente, deixei de querer saber o que acontece na vida dele. Eu tentava sobretudo evitar qualquer tipo de contacto com o pai - um homem baixo, entroncado, carrancudo, sempre a fumar, sempre a reclamar.

O pai do Afonso tinha um discurso muito rudimentar. Uma conversa com ele, nas raras ocasiões em que a família se sentava toda à mesma para tomar uma refeição - a família toda eram: o Afonso, o pai, a mãe e a avó materna, que vivia com eles a troco da sua parca pensão de viuvez, além da reforma magríssima -, desembocava invariavelmente em declarações intempestivas acerca do que “eles andam a fazer com este país”.

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Quando o senhor Alfredo dizia “eles”, referia-se a uma entidade abstrata e obscura, uma espécie de grupo conspirativo que tomara as rédeas “deste país”, de uma maneira sem dúvida ilegítima. Para o pai do Afonso, eram “uns comunistas” que tinham “dado cabo do nosso império”. Era sem dúvida um saudosista. “Andei eu em África a lutar para isto”, dizia amiúde. Não sei quanto tempo lutou em África, nem onde. Evitei da maneira possível o desenvolver de certas conversas, e não me arrependo. Fugia do homem sempre que podia.

Naquela manhã, quando me levantei e tentei não fazer barulho, para não correr o risco de acordar alguém, peguei na minha roupa, que tinha deixado dobrada em cima da escrivaninha do Afonso. Era um móvel dos tempos de infância onde ainda tinha colados cromos de Pokemons e onde, aos poucos, foi acrescentando outros autocolantes de bandas, normalmente de black ou death metal, e stickers de diferentes simbologias, que demorei algum tempo a decifrar e a compreender.

Ao pegar na roupa, derrubei qualquer coisa, um objeto que caiu no chão com estridência. O Afonso acordou com o barulho. Quando apanhei o objeto, fiquei sem reação. Uma soqueira. Boquiaberta, perguntei-lhe o que era aquilo - como é evidente, eu sabia o que era aquilo, o objeto em si; o que eu queria eram esclarecimentos adicionais acerca da situação. “Não é meu, é de um amigo que me pediu para guardar.” Mas que amigo? Mas que história é essa? Mas quem é que guarda uma soqueira que não é sua? Bombardeei-o com perguntas. Esquivou-se a responder tanto quanto pôde. Terminou com um frio e seco “ó Ana, eu ainda nem acordei como deve ser, não me chateies”. Deixei-o em paz. Fui à minha vida. “Ok, Afonso. Falamos depois.”

Das vezes seguintes que estivemos juntos, encontrámo-nos em minha casa. O Afonso parecia querer evitar que eu voltasse ao seu quarto. Por mim, tudo bem. Não me agradava estar na presença do pai dele, por isso, tanto melhor: ficávamos em minha casa - pelo menos, até dar. A minha mãe não nos concedia grandes liberdades, sobretudo sabendo que o Afonso era bastante mais velho do que eu - tínhamos 11 anos de diferença: ele tinha 32, eu tinha 21.

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Da mesma forma que evitava receber-me em casa, o Afonso foi sempre evitando o assunto da soqueira. Eu não insisti muito com ele. Fiz-lhe a pergunta que se impunha, quis clarificar a situação, perceber o que se passara ao certo. Uma vez mais, o Afonso preferiu não responder com clareza, embrulhava-se em meias respostas, em desculpas mal engendradas, em frases incompletas. Em suma, não queria dizer o que se tinha passado, pelo que decidi respeitar esse seu segredo. Até porque uma resposta evitada contém, em si, uma imensidão de respostas. Só temos de as ir identificando nos restantes sinais que as compõem, nos demais indícios que acabarão por denunciá-las.

Num desses fins de tarde em minha casa, o Afonso decidiu dar uma vista de olhos pelos meus discos. Eu sabia que a minha pequena coleção de vinil e CDs não lhe iria parecer, de todo, interessante. Eu praticamente só ouvia música portuguesa; ele era um fervoroso adepto das múltiplas variantes do metal escandinavo. Pegou num disco antigo da Amália, contemplou-o, virou-o, frente e verso, tirou-o da bolsa e, com ar de nojo, atirou-o ao chão. “Ouves mesmo esta bosta?”, perguntou. Como assim? A Amália? Isso são maneiras de falar da Amália?, reagi eu. “Essa comuna? Financiadora do Partido Comunista? Não me digas que ouves porcarias dessas, música da esquerdalha?”

Eu fiquei incrédula com aquela conversa, não estava a perceber o que se passava ali. Não conseguia responder, tal era o meu espanto. Mas o Afonso continuou, foi apanhando discos e espalhando pelo chão do quarto, só dizia “lixo, lixo, lixo”, chamava-lhes “escumalha”, afirmava que aquilo era tudo “comunas”, “gentalha da esquerda”, tudo a eito, sem fazer grandes distinções. Xutos & Pontapés, Pedro Abrunhosa, Jorge Palma, Sérgio Godinho, até os Ornatos Violeta, o Tiago Bettencourt e os GNR. Só poupou três ou quatro bandas. “Heróis do Mar, vá lá, qualquer coisa que se aproveita. Afinal, não ouves só esquerdistas.” Fora esses, só não desconsiderou os Afonsinhos do Condado - penso que por causa do nome - e Os Golpes, aquela banda da “vá lá, senhora”, nem eu sei porquê.

“Pega nas tuas coisas e sai.” Não lhe admitia que viesse a minha casa desfazer da música que gosto. Ainda por cima, com acusações completamente estúpidas. Como se eu alguma vez escolhesse os meus artistas por causa das ideologias. Na pior das hipóteses, podia evitar alguns por não gostar da mensagem que passam, mas seriam muito raros os casos. Ele foi-se embora, muito chateado.

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Achei que nunca mais voltaríamos a falar. Fiquei muito zangada com ele, tudo aquilo fora inaceitável e descabido. E ele, tenho a certeza que se sentira humilhado quando o pus na rua. Porém, passados alguns dias o Afonso ligou-me. Pediu desculpa, disse que se tinha excedido. Eu disse-lhe que ele andava estranho. Aceitou o que eu disse e acrescentou que se sentia “numa fase de mudança”. Acabámos por nos acertar e marcámos encontro para o dia seguinte.

Ficámos em casa dele. Reparei que tinha mais autocolantes novos na pequena escrivaninha. A soqueira também lá estava, pousada, mas não escondida. Na cadeira, estava pendurado um kimono. “O que é isto?” A pergunta significava, como era habitual, “podes explicar, por favor?” “É do jiu-jitsu”, respondeu. Percebi que muita coisa tinha mudado, mas preferi não discutir. Precisava de pensar.

Acontece que não tive tempo para pensar, sequer. No dia seguinte, a meio da noite, o Afonso tocou à minha porta. Vinha em choque. Tinha gotas de sangue na camisa, um lábio aberto e uma mão esfolada e amassada, com nódoas negras e arranhões, dois dedos negros. “O que aconteceu?” Não explicou. “Amanhã falamos”, respondeu. “Só te queria ver, precisava de te ver.” Pareceu-me frágil. Claramente, tinha andado à pancada. O mais provável . Talvez tivesse participado num ritual iniciático - vinha muito transtornado, afetado, desconcertado, confuso. Traumatizado. Não sei. Estou só a especular. Só sei que tudo nele havia mudado. O jiu-jitsu, o discurso, a simbologia que agora sei que era de extrema-direita, a maneira como claramente me escondia coisas: tudo apontava para um caminho nada saudável por que o Afonso enveredara.

Como prometido, falámos pela manhã. Achei que me ia pedir desculpa por tudo, que ia dizer-me que estava arrependido, que a noite anterior o fizera definitivamente mudar de ideias. Mas não era isso que ele tinha para me dizer. “Não podemos continuar juntos”, disse ele. Depois acrescentou uma série de coisas, que não se identificava comigo, não se revia nas minhas ideias. Mencionou, uma vez mais, as músicas que eu ouvia, acusou-me de me comportar como “um terrorista antifa” e ainda me disse “és uma feminista extremista”. Nesse ponto, ri-me. E ele, com um ar muito sério e uma expressão severa, ainda acrescentou que pessoas como eu punham no mundo.

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Fiquei estupefacta. Fui-me embora sem sequer lhe responder. Enquanto me afastava, as lágrimas caíam-me e, ao mesmo tempo, eu sorria de incredulidade. Acelerei o passo e, quando o choro ameaçava tornar-se mais intenso, desatei a rir-me à gargalhada, nem sei bem porquê. Talvez tenha sido o meu instinto de autodefesa ou a minha necessidade inata de autopreservação. O certo é que resultou, pois num ápice tudo se tornou claro e o presente doloroso tornou-se passado risível.

O Afonso que eu conheci inicialmente não era assim. Ou, se era, escondia-o muito bem. Cresceu num subúrbio de Lisboa, mas dentro da classe média, sem luxos nem dificuldades. Quando nos conhecemos, pareceu-me um rapaz normal, apenas mais velho e ensimesmado, alguém voltado para o pensamento. Mas querido, preocupado, consciente. O tempo acabou por revelar um outro Afonso. Não sei de onde lhe veio a raiva e a frustração. Não sei se foram as pessoas que entretanto conheceu que o levaram até àquele ponto. Só sei que ficar com ele teria sido um erro tremendo. Felizmente, afastámo-nos a tempo.

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