Histórias de Amor Moderno: “O povo não autorizava que uma brasileira ousasse brincar com o padroeiro lisboeta”
“Jacira encontrou maneira de viajar para Portugal e tentar cá a sua sorte. Viria primeiro, Jair viajaria quando ela estivesse instalada, com tudo encaminhado para que ele pudesse chegar e começar logo a trabalhar.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foi a gritaria na rua que me alertou. Não que fosse estranho haver gritaria naquela rua, naquele bairro, um bairro popular de Lisboa, um dos mais antigos da cidade, composto de ruas estreitas e empedradas, becos retorcidos e esquinas sujas e obscuras. Um bairro, na altura, ainda feito de gente pobre que ali nasceu, cresceu e foi envelhecendo, e que agora está a ser empurrada dali para fora, num movimento social com nome pomposo e importado do estrangeiro, “gentrificação”, é assim que lhe chamam, ao fenómeno que consiste em tirar de um sítio uma população substituindo-a por outra mais endinheirada, mais moderna, mais sofisticada, mas muito menos enraizada ou conhecedora das pedras daquela calçada.
Pois bem, à época destes eventos, ainda a gentrificação ia a meio, os pobres originais iam sendo susbtituídos aos poucos por outros pobres, vindos de outros sítios, mas a moda das casas pequenas e chiques para vender a expatriados ricos com vistos Gold e dos apartamentos T0 e T1 para alugar aos turistas ainda não tinha pegado de estaca.
Nessa tarde, a gritaria na rua era diferente daquilo que costumava ser. Por norma, as pessoas do bairro gritavam quando discutiam, insultando-se, ameaçando-se, e começavam por ser dois ou três indivíduos, homens ou mulheres - no bairro, nunca se fez distinção -, aos quais se juntavam mais dois ou três elementos, tomando partidos, sublinhando insultos, reforçando ameaças e, em princípio, apartando as entidades em conflito que, assim, raramente chegavam a vias de facto, optando antes por se afastar barafustando com recurso a vernáculo sonoro e robusto.
Só que, dessa vez, ouvia-se uma multidão, uma turba furiosa como uma horda de vândalos pronta para atacar e devastar. As ameaças eram sérias, eram muitas e eram assustadoras: “Tira isso daí”, “vira isso ao contrário”, “vou-te matar”, “vou-te pendurar a ti pelo pescoço”, “vai gozar para a tua terra”, coisas do género. Apercebendo-me de que podia ser sério, assomei à janela. Sempre que ouvia gritaria, tentava chegar-me à janela para me inteirar da situação, que costumava ter desfechos cómicos. Mas, dessa vez, quando pus a cabeça de fora, fi-lo com genuíno receio de que pudesse acontecer uma tragédia. A turba prometia linchamento. As pessoas, todas elas moradoras do bairro, enraizadas até à fundura das pedras da calçada, espumavam de raiva. Protestavam diante da varanda de Jacira, uma vizinha brasileira que se mudara para aquela casa havia pouco mais de um ano. O motivo era fútil: Jacira tinha pendurado um quadro de pernas para o ar. Nesse quadro, figurava uma pintura com o Santo António. E o povo de Alfama não autorizava que uma brasileira chegasse ao bairro e, precisamente durante as festividades em sua honra, ousasse brincar com a figura do padroeiro lisboeta.
As pessoas cuspiam, insultavam, gritavam. Jacira e uma amiga, à varanda, não sabiam se haviam de rir ou de fugir. A início, não terão percebido que o assunto era sério e que aquela pequena multidão muito furiosa exigia mesmo que o quadro fosse posto a direito - e, de caminho, que Jacira e a amiga, também brasileira, fossem lá para a terra delas, gozar com o que é delas, entre outras sugestões dentro do género.
Jacira tentava falar e explicar. Disse que, na terra dela, algures no estado da Bahia, se usava virar o casamenteiro ao contrário, de cabeça para baixo, para dar sorte ao amor. Tentou dizer, entre sorrisos tímidos, que só queria encontrar um homem que a amasse, que há anos que não tinha ninguém, e que decidiu, então, pedir ao Santo António que intercedesse em seu favor. Debalde. Ninguém lhe deu ouvidos. “Põe o quadro a direito”, seguido dos mais previsíveis insultos - não sei se alguma vez assistiram a portugueses irados quando insultam mulheres brasileiras, mas posso garantir que é medonho. Jacira acabou por se render. Retirou o quadro, pediu desculpas, fechou a porta da varanda. Fechou-se em casa.
No dia seguinte, feriado, o dia da grande ressaca lisboeta - há quem diga que o 13 de junho não existe concretamente, é apenas uma ponte no calendário entre os dias 12 e 14 -, fui bater à porta de Jacira. Desconfiada, perguntou quem era. “É a Joana, a vizinha da frente”, respondi. Quis saber o que é que eu queria. Talvez tivesse receio que também eu viesse importuná-la a propósito do quadro do Santo António. “Esteja descansada, Jacira. Só vim saber se está bem.” Abriu-me a porta, mandou-me entrar, que me sentasse, perguntou se queria tomar um suco. Aceitei.
Jacira desfez-se em lágrimas de origens várias. O seu choro era uma forma de desabafo e de descompressão pela situação do dia anterior, mas aquelas eram também lágrimas de solidão, de saudade, de distância. Jacira viera da Bahia ia fazer seis anos. Desde que chegara a Lisboa, tinha mudado de casa sete vezes. Ali, naquela rua, pensava ter, por fim, encontrado um sítio sossegado para morar e para viver, num bairro verdadeiro com pessoas verdadeiras, um dos últimos redutos da cidade que Lisboa fora outrora. Afinal, estava enganada. Jacira não tinha lugar em sítio algum.
Disse-lhe que não, que não fizesse julgamentos rápidos, que as pessoas são sensíveis a certos temas. Mas depois dei por mim a tentar encontrar justificação para o injustificável, o que me desconcertou, pelo que me calei. Após uma pausa sensível, retomei a conversa, mas não o assunto. “A Jacira nunca teve namorado desde que está em Lisboa?”
Voltaram as lágrimas àquela brasileira da Bahia, habitualmente tão cheia de vida, cheia de alegria, vivaça, despachada. Jacira é uma mulher modestamente bonita. Tem traços com muita graça, uns olhos castanhos muito grandes e escuros, um cabelo de caracóis pequeninos. É muito morena. Não é o esplendor da elegância, mas também não se pode dizer que seja gorda. É robusta, magra não é, de facto. Mas gorda também não é. É uma mulher inteira. Deve estar perto dos quarenta anos, é pouca mais nova do que eu, portanto, mas ainda na mesma geração. “Não me deito com nenhum homem desde que o meu Jair ficou para trás.”
Perguntei-lhe quem era essa Jair. Onde estava, o que fazia, se ainda era vivo. A baiana aproveitou para me contar a sua história. Lá em Feira de Santana, a sua cidade-natal, namorava esse brasileiro gostoso, esse homenzão chamado Jair. Ele trabalhava nas obras, ela atendia num quiosque onde vendiam acarajé e caruru. Ganhavam pouco, não conseguiam pagar casa, moravam junto com a irmã de Jair e o marido dela, mais os dois filhos do casal, num anexo precário com dois quartos e uma cozinha raquítica. “Não dava mais.”
Jacira encontrou maneira de viajar para Portugal e tentar cá a sua sorte. Sabia fazer muita coisa, podia cozinhar e podia limpar. Viria primeiro, Jair viajaria quando ela estivesse instalada, com tudo encaminhado para que ele pudesse chegar e começar logo a trabalhar. Só que o processo não foi tão rápido como esperava. Passou um mês, depois outro, às tantas passou meio ano, e nada de oportunidades para o seu amor. Até que Jair começou a atrasar-se a responder às mensagens, deixou praticamente de atender as chamadas. Esquecia-se do que Jacira lhe pedia, distraía-se das poucas vezes que falavam, tinha pressa para desligar. Depois, um dia, não respondeu mais. “Sumiu.” Jacira tentou falar com Yolanda, a irmã de Jair, mas ela nunca deu resposta. “Até hoje, nunca mais eu soube dele.”
Jacira diz que não procurou homem a sério. No coração, ainda trazia a esperança ingénua de que Jair um dia ligasse ou mandasse mensagem. “Só que agora, depois desses anos todos, já não dá mais, né amiga?” É. E foi por isso que Jacira, com o sorriso e a alegria das mulheres que carregam dentro a sua amargura sem nunca a revelar, decidiu brincar com o quadro do Santo António. “Lá em Feira de Santana, a gente vira o Santo de pés pró alto e pede ‘ah, meu santinho, arranja um amor pra mim, vai’, e foi só isso que eu fiz.” Mas o povo devoto ao Santo não aceita essas tradições levianas que vêm de fora - Santo António é de Lisboa, logo as regras são as dos lisboetas.
Despedi-me de Jacira, agradeci-lhe pelo suco, que era uma delícia. Pedi-lhe desculpa pela vizinhança, garanti-lhe que não éramos todos assim. Convidei-a para tomar um chá um dia destes, garantiu-me que aceitaria. Recuperara o sorriso alegre e magoado que a caracteriza. À saída reparei no quadro do Santo António, pendurado ao fundo do corredor. De pernas para o ar.

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