Histórias de Amor Moderno: “Demos um beijo apaixonado. Não há nada mais sexy do que um homem que respeita as mulheres"
“Sei que estou longe de ser a única a ter passado por certas situações. Infelizmente, tive de lidar o machismo e a sua toxicidade em várias das suas manifestações.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Tínhamos ido ver o Rosemary’s Baby, um dos pontos altos da programação do ciclo de clássicos do terror na Cinemateca. Não era propriamente uma saída a dois, fomos em grupo depois de sairmos das filmagens, mas também não foi só mais uma saída sem interesse romântico. Eu e o Marcos já mantínhamos um flirt em lume brando havia algum tempo. Várias pessoas já tinham notado a nossa proximidade morna e tímida. O realizador da curta-metragem que estávamos a filmar metia-se muitas vezes comigo, referindo-se ao Marcos como “o teu perchista favorito” [profissional que faz captura de som com uma perche].
Como acontece quase sempre quando nos juntamos em grupo, sobretudo se é para ver filmes ou séries, depois da sessão há uma espécie de um after em que se debate aquilo a que assistimos. Não é uma ocasião formal nem excessivamente pretensiosa, embora no meio audiovisual, e em especial no do cinema, a pretensão esteja sempre presente. Mesmo que não seja geral, há sempre um ou outro elemento que traz consigo ora o peso do mundo que lhe esmaga a arte, ora a visão vivenciada de mais uma vítima de um sistema indecifrável. Há quem traga ambas e até quem acrescente outros condimentos e ingredientes filosóficos, empíricos e emocionais à própria bagagem.
Tudo combinado, resulta que uma conversa que se queria banal acerca de um filme e aquilo que nele possa aprazer-nos acaba por resultar invariavelmente num debate mais ou menos intenso, mais ou menos profundo, acerca da ética e da estética de um determinado artista, antes de inevitavelmente resvalar para a análise forense da sua moralidade enquanto indivíduo, esgrimindo-se ali mesmo exemplos de conduta, uns acusatórios, outro abonatórios, a fim de se determinar a validade do objeto artístico a que acabámos de assistir. Essa validade pode ser obtida a partir de uma estranha equação que ainda não consegui decifrar, mas que em princípio contempla uma mistura de raridade artística, originalidade e rasgo - por muito subjetivos que sejam estes termos -, que depois deve equilibrar-se num registo exemplar enquanto cidadão ou, em alternativa e caso seja impossível a um artista manter-se moralmente impoluto (é quase sempre impossível), que as suas falhas de conduta sejam exóticas, portanto, que contenham potencial para serem confundidas com excentricidade.
Há sempre um ponto da conversa em que alguém propõe que se separe a arte do artista. De imediato, levantam-se vozes de apoio, defendendo que sim, que se separe, ao que logo respondem as outras vozes que não o permitem, porque a ética transparece por aqui e por ali e, enfim, são essências indissociáveis, a da arte e a do ser humano que o produz. As vozes podem mudar de lugar e de opinião em função do artista em apreço: tudo depende de quem gosta ou não da sua obra e até que ponto está disposto a fletir a alma e a espinha dorsal de maneira a fazer encaixar a sua posição de hoje quando a de ontem era a oposta. Inicia-se então a fase do “sim, mas repara”. É com esta frase que normalmente entramos numa infinita toca de coelho que nos leva pelos mais mirabolantes argumentos e contorcionismos, cheios de surpresa e parcos em lógica - por norma, dado o avançado da hora, já com uns copos a mais e, quiçá, mais alguma substância recreativa, caso alguém tenha conseguido arranjar.
Nessa noite, e enquanto se conversava sobre os méritos do filme de Roman Polanski - houve quem encontrasse ali uma sátira suave ao arrivismo; houve quem visse nas interpretações de Mia Farrow e John Cassavetes um exemplo de cumplicidade e contenção; e houve quem simplesmente considere curioso que os nomes do protagonista seja Roman Castavete, juntando o nome próprio de Polanski com um apelido demasiado semelhante ao de Cassavetes (e logo várias pessoas usaram o nome para consubstanciar a teoria da sátira suave) -, o Marcos, entre risos e alguma hesitação, perguntou “não acham que no caso do Polanski devíamos levar em conta o homem e a obra, em vez de os separarmos?”
Primeiro, houve silêncio. Depois, veio o tumulto. Que não, que a obra do Polanski era muito superior às acusações vís de que ele era vítima - disseram mesmo assim, “vítima” -, que a acusação de violação nunca tinha sido provada em tribunal, que o juiz tinha alterado a decisão antes da sentença definitiva. Todos argumentaram contra o Marcos, houve, pela primeira vez, que me lembre, unanimidade em torno de um realizador. E logo um que fora acusado de abuso sexual por uma modelo de apenas 13 anos.
O Marcos não se ficou. “Neste caso, não consigo dissociar a pessoa que abusou de um miúda, praticamente pré-adolescente, da sua obra, por mais genial que ela seja.” E deu substância ao seu argumento: que o Polanski tinha aceitado a acusação de sexo ilegal com menor e que, numa entrevista posterior, havia confessado que “toda a gente desejava fazê-lo com miúdas novas”, ele próprio, os juízes e, presume-se, todos os homens. O realizador da curta-metragem que estávamos a filmar foi contundente: “Com essa visão das coisas, nunca vais passar de perchista.” Todos se calaram. Eu peguei nas minhas coisas e saí, o Marcos veio logo atrás de mim.
Caminhámos com passo apressado e em silêncio talvez 50 metros. E então parámos e demos o beijo mais apaixonado de que me lembro. Não há nada mais sensual e atraente do que um homem que mostra respeito pelas mulheres e que sabe defender a sua posição. Isto torna-se especialmente sexy no nosso meio, onde nem todos sabem o que significa respeito e em que o feminismo é tantas vezes visto como uma modalidade vagamente na moda, protagonizada por atrizes que agitam bandeiras. O Marcos fez-me sentir bem, fez-me sentir reconfortada, apoiada, até porque eu já tivera aquela discussão - não apenas sobre Polanski, mas também sobre outros realizadores - e saí sempre a perder diante das reações opressivas dos machos-alfa presentes.
O meu passado tem passagens obscuras. Algumas delas, prefiro não revisitar. São más memórias, momentos que me ficaram gravados, mas que prefiro ignorar, fingir que não estão lá. E sei que estou longe de ser a única a ter passado por certas situações. Infelizmente, tive de lidar o machismo e a sua toxicidade em várias das suas manifestações. Cheguei a ter um namorado que abusou de mim quando já estávamos na iminência de nos separarmos. Não era perchista, claro. Era alguém bem instalado no meio, respeitado pelos pares. Mas só o era porque as pessoas teimaram em separar a obra do seu autor. Muitos sabiam do que ele era capaz - porque o que fez comigo, fez também com outras.
O Marcos é uma lufada de ar fresco. Não apenas na minha vida, mas de um modo geral, tendo em conta o estranho mundo que nos rodeia, aquilo em que se transformou, o estado a que chegou, deteriorando-se. Não sei o que vai acontecer entre nós, tudo está ainda muito no começo, mas acredito que tem tudo para correr bem.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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