Colson Whitehead: “Eu escrevo para mim próprio. Não tenho fé que o mundo mude por causa dos meus livros”
Escreve sobre raça, crime e poder, às vezes com contexto político, noutras como pura ficção, e os seus romances são indissociáveis de Nova Iorque, onde nasceu e vive, e onde se passa a trilogia que está a terminar. Conversámos com o autor d’A Estrada Subterrânea e d’Os Rapazes de Nickel, vencedor de um Pulitzer, em Lisboa.
Foto: Mariline Alves30 de setembro de 2022 às 15:42 Rita Silva Avelar
Colson Whitehead espera-nos numa varanda luminosa dentro da FLAD, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, que fica dentro do edifício da Embaixada dos EUA, – é a sua terceira entrevista do dia. Diz que é quase impossível alguém perder-se em Lisboa, tal é a sua circularidade, e que foi este o destino da sua lua-de-mel em 2000. "Gosto de cidades grandes" diz-nos, olhando pela janela. Fala sobre a literatura, a sua, com uma certa distância afetiva, e mais que uma vez notamos que é uma pessoa descrente na mudança – e aqui falamos de ideias, crenças e mentalidades. Por outro lado, revela-se inteiramente dedicado à sua missão na Terra: escrever. Fecha-se em casa dias inteiros sem esforço, conta que não se importa de viver para os seus livros.
Nova Iorque é a sua cidade: nota-se um amor incondicional quando fala da infância vivida no Harlem, e mais tarde noutros bairros. Apresenta em Lisboa Ao Ritmo do Harlem [editado pela Alfaguara], o primeiro de uma trilogia dedicada ao anti-herói Ray Carney, um descendente de criminosos que tenta contrariar o seu destino num enredo de corrupção e pornografia, uma história passada nos anos 60, década em que o autor ainda nasceu (em 1969). Segregação racial, desigualdade e escravatura são temas recorrentes nos seus livros – Os Rapazes de Nickel é o retrato esmagador e angustiante dos crimes passados numa escola na Flórida, que levaram a maus tratos e mortes de centenas de estudantes negros – mas também lhe encontramos um fascínio curioso sobre crimes, mistério e poder.
Foto: Mariline Alves
Em criança, conta, era obcecado por livros de ficção científica. Vencedor do Prémio Pulitzer e de outros como o National Book Award ou o Carnegie Medal for Fiction, estudou em Harvard e passou por outras universidades como a de Columbia, Princeton ou Houston. Sobre as distinções que já recebeu diz, simplesmente: "É muito bom, mas no dia seguinte estamos de volta ao trabalho. Tenho sido afortunado, mas não quero tomar nada por garantido."
Uma infância em Nova Iorque deve ter sido repleta de estímulos. De que maneira entram os livros na sua vida?
Cresci em Nova Iorque, onde ainda vivo, por isso nem consigo imaginar-me a viver noutro lado. Definitivamente, isso ajudou a formar a minha personalidade e, no meu trabalho, a minha "ida" para Nova Iorque é recorrente. Enquanto a maioria dos miúdos adorava jogar basquetebol, o meu dia perfeito era estar no meu quarto a ler livros de banda desenhada ou a ver The Twilight Zone. Todos os anos a minha mãe comprava um livro de Stephen King, que percorria os quartos dos meus irmãos e eventualmente chegava ao meu. Aos 10 ou 12 anos, comecei a ler ficção científica, histórias de vampiros… As minhas irmãs compravam Uma Viagem no Tempo, ou os livros de Judy Blume, e eu lia também. Foi sempre uma casa com muitos livros.
É curioso que tenha começado a trabalhar no The Village Voice [primeiro periódico alternativo do país] escrevendo sobre livros, discos e filmes. Como é que lembra esses tempos?
Foi fantástico. The Village Voice era um jornal com uma larga secção dedicada às Artes, e escrevia-se sobre cinema numa semana, livros na seguinte… música numa outra. Durante o liceu, cresci a admirar muitas das pessoas que lá trabalhavam. Era um sonho meu arranjar lá um trabalho. Comecei por trabalhar na secção televisiva, saltando depois para os livros. Foi um excelente período para se trabalhar como jornalista. Estar no "edifício" era como ter sempre uma janela de oportunidades. Fiquei cada vez mais confiante como escritor.
Pensou em ser jornalista?
Eu gostava de escrever sobre cultura, mas, com o tempo, passei a preferir ficção.
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Foto: Mariline Alves
Foi uma experiência que lhe abriu os horizontes, para os temas que queria abordar e aborda hoje em literatura?
Abordava-se a cultura, de forma crítica, com o contexto político, com identidade. Agora toda a gente faz esse tipo de crítica à cultura, escrever de uma forma séria que leva em conta o lado social também. Escrevia-se sobre um novo disco, um novo filme, mas também sobre os contextos políticos do momento. É algo que hoje também está presente no meu trabalho literário.
Cresceu nos anos 70 e 80, como é que isso moldou a sua visão do mundo? E, claro, da América?
O mundo está igual: fodido e racista. Não acredito que as pessoas mudem assim tanto, que as culturas das nações mudem assim tanto, seja nos EUA ou em Portugal. Há pessoas à direita, outras à esquerda, fomos do Obama ao Trump. E os apoiantes de ambos são 50/50. Não vamos muito longe.
Lembra-se do momento exato em que sentiu na pele a discriminação racial? A presença das questões das minorias e da segregação racial? Cresce-se com ela sem nunca descolar?
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Desde o dia em que nasci. Sempre ouvi falar em segregação e em escravatura, não há nenhuma revelação, é a realidade americana.
Não acredita numa pequena mudança, com o movimento Black Lives Matter?
Um pouco, sim. Foi uma conversação, mas nada mudou, na realidade.
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Em Os Rapazes de Nickel, retrata um acontecimento dos anos 60 que lesou precisamente centenas de vidas de jovens negros. Pode falar-me dessa investigação? Era uma história à espera de ser escrita?
Corria o verão de 2014, e cruzei-me com uma reportagem num jornal sobre a venda do terreno onde era a escola, que implicava escavações num cemitério. Acabou por descobrir-se um segundo cemitério, com restos mortais, onde os estudantes eram mortos. As pessoas sabiam do abuso, mas não sabiam o quão mau era, isto acrescentou uma nova dimensão ao caso. Eu estava chocado por nunca ter ouvido falar na história. Foi um caso coberto na Flórida, mas fora disso não se ouviu falar, não a nível nacional. Pensei em contar a história dos sobreviventes negros, questionei-me sobre quais seriam as suas histórias. Estava possuído, com raiva por não ter sabido, se existiu um sítio assim, existiram mais. A história ficou comigo. Falei com jornalistas da Flórida, com as pessoas que fizeram as autópsias aos corpos, investiguei o histórico da escola, cheguei aos websites dos sobreviventes. Queria ser fiel ao que aconteceu, sobretudo para honrar as pessoas que passaram por aquilo.
É comum cruzar-se assim com uma potencial história para um livro?
Pode ser no Twitter, pode ser na rua… Com Ao Ritmo do Harlem, estava à procura de um filme para alugar naquela noite. Jornais, programas de televisão, reportagens… Depois, há qualquer coisa que me desperta para a história e penso: não seria cool segui-la?
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Como é que começa a escrever?
O argumento, o sítio, o ano, um evento que tenha acontecido – de verdade – na altura, quem é a personagem principal, qual é a sua profissão, passado. Depois passo para a narrativa, para os conflitos centrais, para as personagens secundárias.
Qual foi a história mais exigente?
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Todos o são de diferentes maneiras. Os Rapazes de Nickel e A Estrada Subterrânea foram muito exigentes. Depois do primeiro fiquei certamente deprimido. Escrever a história do Ray Carney [Ao Ritmo do Harlem], que é mais leve (ele ganha!) foi bom para contrariar esse mood. É bom pensar e planear um livro.
Onde costuma escrever?
Não vou a cafés, trabalho em casa entre fazer sestas e comer sanduiches. Às vezes escrevo em comboios, em aviões…
É um trabalho solitário?
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Eventualmente, mas o trabalho ficará feito (risos). É sempre o que eu penso. Tenho a minha família e os meus filhos.
Tendo vivido sempre em Nova Iorque, viveu o tempo da criatividade explosiva, principalmente nas artes, e viu as ruas de Nova Iorque mudarem, viveu o tempo de [Jean-Michel] Basquiat e de outros da sua geração. Como se lembra desses tempos?
Era muito novo para viver a cena artística, mas a cena musical era muito vital, comecei a ir a concertos em 1985, ouvia Sonic Youth, apanhei o início do grunge… Viver Nova Iorque nos anos 80 foi vibrante, e eu adorava a música dos anos 70. A cena CBGB [um famoso clube doa anos 70, em East Village, em Manhattan], e ouvia Ramones ou Talking Heads… Também assisti ao boom do hip-hop, muito mais novo. A música teve sempre um papel importante do meu crescimento.
Também assistiu, de certa maneira, à decadência associada ao consumo de drogas, e também às mortes pela SIDA. Viveu esses acontecimentos de perto?
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Sim, a epidemia do crack varreu Nova Iorque. Antes dos 80, a cidade entrou em ruptura financeira e existia muito crime. Então sim, assisti a uma Nova Iorque suja, perigosa, evoluímos muito desde esse momento.
Foto: Mariline Alves
Quais são os seus bairros favoritos da cidade?
É curioso, nunca costumo andar muito pelo Harlem, mas cresci lá em criança. Eu adoro vaguear pelas avenidas, andar por ruas onde nunca estive, perder-me. Gosto muito de descobrir localizações novas para os meus livros, isso aconteceu muito com este último livro.
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Com quem partilharia um jantar? Alguém que admire?
Eu ia responder Stanley Kubrick, mas talvez esse fosse um parvalhão – certo? (risos). Podia ser engraçado. Talvez o escritor Herman Melville… John Carpenter: perguntar-lhe acerca do filme Nova Iorque 1997, quem sabe. É a minha resposta final.
Quais são as suas leituras do momento?
Estou quase sempre a ler literatura sobre crimes, sobre histórias que se passam em Nova Iorque. Tenho sempre por perto os livros de Richard Stark, por exemplo, sobre os crimes do assassino Parker. Também gosto dos livros de Patricia Highsmith ou Chester Himes, um escritor dos anos 50 que foi uma influência para mim. Entre os mais recentes, Patrick Radden Keefe, que foi jornalista, tem escrito vários livros interessantes em não-ficção. Nos últimos anos não leio muito por prazer, mas sim para contextualizar o meu trabalho. Durante a pandemia estive demasiado distraído com o trabalho para ler por prazer.
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Está obcecado com alguma história, de momento?
Com a de Ray Carney, porque será uma trilogia que atravessa dos anos 60 aos 80, e porque estou completamente debruçado sobre Nova Iorque durante esses anos.
Em última instância, porque escreve?
Eu escrevo para mim próprio. Não tenho fé que o mundo vá mudar por causa dos meus livros. Seria ótimo, mas não acredito. Provavelmente as pessoas que deviam ler sobre segregação racial, não lêem livros sobre isso.