Os homens têm medo das mulheres solteiras

"A mulher solteira encontrou o seu lugar", escrevia a revista TIME em agosto de 2000, numa edição dedicada, em parte, à série "O Sexo e a Cidade". 25 depois, a profecia confirma-se. Há cada vez mais mulheres que não querem casar. Adoram as suas vidas. Sentem-se realizadas. Fazem planos a longo prazo. Mas nada disso passa por uma vida a dois. O seu estado civil é outro: bem resolvidas. São um perigo para a sociedade patriarcal.

Carrie Bradshaw almoça num restaurante em Nova Iorque Foto: IMDB
19 de dezembro de 2025 às 12:29 Ana Murcho

"Vemos uma mulher solteira de 40 anos, que nunca teve filhos [e pensamos] - 'Pobre coitada, que pena, não é? Talvez um dia conheça o homem certo e isso mude...' Não, talvez ela conheça o homem errado e isso mude .Talvez ela conheça um homem que a torne menos feliz e saudável, e acabe por morrer mais cedo." Podia ser o slogan de uma campanha feminista, mas não. É um alerta, e foi dado em 2019 por Paul Dolan, professor de Ciências Comportamentais na London School of Economics, no decorrer de uma palestra sobre a felicidade, no Hay Festival (conhecido como "o Woodstock da mente"). "Temos alguns dados longitudinais que seguem as mesmas pessoas ao longo do tempo, mas vou prestar um péssimo serviço à  ciência e limitar-me a dizer: se for homem, é melhor casar-se; se for mulher, nem se dê ao trabalho."

As diferenças, garantia Dolan na altura, são abismais. Os homens beneficiam com o casamento porque "correm menos riscos, têm salários melhores e vivem mais tempo. Elas, por outro lado, têm de aturar isso tudo e morrem mais cedo do que se nunca tivessem casado. O subgrupo populacional mais saudável e feliz é o das mulheres que nunca se casaram nem tiveram filhos."

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O investigador inglês não está sozinho nestas conclusões. Em outubro de 2024, a revista Social Psychological and Personality Science publicou um estudo de Elaine Hoan e Geoff MacDonald, ambos do departamento de Psicologia da Universidade de Toronto, que revela que, de um modo geral, as mulheres solteiras sentem-se mais realizadas do que os homens solteiros; as respostas dos cerca de seis mil adultos envolvidos na pesquisa permitem deduzir que as mulheres solteiras estão "mais em paz com o estado da sua relação" - demonstrando, por isso, "menos vontade em encontrar um parceiro", ao contrário do que erradamente se presume -, têm "melhor autoestima", sabem (e apreciam) "estar sozinhas" e garantem estar "satisfeitas sexualmente". Os relacionamentos são menos benéficos para elas, dizem os números e o senso comum, porque as obriga a assumir uma parte maior (se não total) das tarefas domésticas e a negligenciar muitos dos seus interesses e necessidades - que podem ser coisas tão complexas como a vontade de progredir na carreira ou outras tão mundanas como a descoberta de novos hobbies. Uma vez mais, e contrariando as normas sociais que durante séculos nos impingiram o casamento heterossexual como a fuga para todos os males, são na verdade os homens solteiros "que têm mais a ganhar com uma união do que as mulheres solteiras", afirmaram os especialistas, citados pelo New York Post.

Apesar de ser notório que estes resultados ainda vão contra a narrativa vigente que vê a mulher solteira (com ou sem filhos) como uma espécie de parasita social que precisa de ajuda, os dados há muito que estão lançados. Nos anos 1990, as Spice Girls percorreram o planeta a espalhar a ideia de um certo girl power, que culminou num important­ssimo fenómeno cultural que ainda perdura, e que antecede os tempos das hashtags e dos grupos de Facebook. As mulheres estavam atentas: elas tinham ambições, já não queriam ser apenas a plus one. Em 1998, a estreia de O Sexo e a Cidade mudou para sempre o paradigma da representação feminina no pequeno ecrã, ao conceder o protagonismo a quatro personagens multidimensionais que em tudo fugiam ao padrão vigente até então. O impacto da série foi tal que, em agosto de 2000, a revista TIME chegava às bancas com uma capa na qual a perguntava “Who Needs a Husband?” (“Quem é que precisa de um marido?) era acompanhada de uma fotografia de Carrie, Miranda, Charlotte e Samantha. “Há cada vez mais mulheres que estão a decidir que o casamento não é inevitável, e que podem levar uma vida plena como solteiras. É uma escolha poderosa, mas para muitas não é fácil”, lia-se na reportagem sobre o tema. Depois de O Sexo e a Cidade, as discussões sobre relacionamentos (ou a falta deles) não voltariam a ter o mesmo tom. Era a altura ideal para finalmente dar in­cio ao debate que aguarda por moderação desde que Louisa May Alcott escreveu Mulherzinhas: porque é que, em pleno século XXI, ainda se confunde o estado civil de uma mulher com a sua identidade? Do cinema à literatura, na música e, pasme-se, até nos fait divers do dia a dia, são vários os casos em que a mulher solteira é descrita como uma aberração. Uma coitadinha. A ponto de ser preciso salvá-la, e assim alterar o final de uma história.

Entre os entusiastas de Mulherzinhas (que segue a história das quatro irmãs March - Meg, Jo, Beth e Amy - e detalha a sua transição da infância para a idade adulta), é sabido que Alcott não queria que Jo, a hero­ína idealista que sonhava ser escritora, terminasse casada. Acérrima defensora dos direitos das mulheres, a autora norte-americana recusou, ela própria, subir ao altar, e preferiu dedicar-se totalmente à escrita. Mas no século XIX, quando 93% das mulheres americanas estavam casadas, semelhante atitude não era considerada adequada. Por isso, o futuro de Jo, ainda que ficcional, era tão determinante. O livro, lançado em dois volumes (1868 e 1869), foi um sucesso entre público e cr­ítica. A pressão falou mais alto que a ideologia. Primeiro, foi o seu editor que recusou um final em que Jo ficasse sozinha. Depois foram os fãs. “A Jo deveria ter permanecido uma solteira literária, mas foram tantas as jovens entusiastas que me escreveram a implorar para que ela se casasse com o Laurie, ou com alguém, que não ousei recusar e, por perversidade, acabei por lhe arranjar um casamento engraçado.” Foi assim que Louisa May Alcott explicou a Elizabeth Powell, educadora e ativista social, o rumo da sua protagonista, numa carta postumamente publicada. Terí­amos de esperar até 2019, ano de estreia de Mulherzinhas, a adaptação cinematográfica da realizadora Greta Gerwig, para finalmente proporcionarmos a Jo March (aqui interpretada por Saoirse Ronan) o destino glorioso com que a sua criadora sempre sonhou.

Será bom, por esta altura, fazer um disclaimer. Este não pretende ser mais um panfleto na eterna cruzada de solteiros versus casados. Bem pelo contrário. Essa batalha sem nexo, misto de guerra das rosas e queridos inimigos, é responsável por boa parte do histórico antagonismo entre comprometidos e não comprometidos. Antagonismo esse que criou, entre outras coisas, sucessos planetários como Single Ladies (Put a Ring on It), a canção "empoderadora" de Beyoncé que lembrou biliões de mulheres solteiras que o importante, afinal, era o anel: "Se gostas dela, devias ter-lhe dado um anel." Mas não vamos por aí. É precisamente contra estes pequenos mal-entendidos que lutamos. Numa entrevista à revista Harper's Bazaar, a atriz Trace Ellis Ross relembrou como esta luta é importante.

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"Dizem-me: és o protótipo da mulher solteira. Preferia ser o protótipo da pessoa que vive segundo as suas próprias regras." Nada de novo. Os homens solteiros não sofrem - nunca sofreram - este tipo de escrutínio. A cultura anglo-saxónica tem vocábulos perfeitos para representar esta dualidade de critérios. Eles são bachelors (homens que nunca casaram), elas sao spinsters (solteironas); eles são "alegres e despreocupados", elas são "velhas miseráveis e infelizes". Eles têm futuro, elas estão condenadas. Representam um tipo de feminilidade fracassada, que não chegou a ser cumprida - de forma subtil, o uso de termos depreciativos como "solteironas" marginaliza e desvaloriza as mulheres. Essa estigmatização é estratégica e serve como "ferramenta para reforçar os papéis de género heteronormativos e limitar verses alternativas da feminilidade", escreve a investigadora Marie-Alix Thouaille na sua tese "The Single Woman Author on Film Screening Postfeminism", em que aponta as mulheres independentes e autónomas "como uma ameaça [...] que desafia a autoridade patriarcal". Não estar numa relação é visto como um estado transitório, não como um objetivo de longo prazo. "Em geral, ser solteira, embora aceitável dentro de certos limites temporais [...], parece continuar a ser socialmente constrangedor para as mulheres." Há, certamente, algo de errado com elas.

Claro que há. Os media habituaram-nos a pensar nas mulheres solteiras como seres aberrantes, cujas experiências são menosprezadas pela ironia ou pelo sarcasmo. No início do filme O Diário de Bridget Jones (2001), Bridget é "assombrada" pelo fantasma de Alex Forrest (personagem interpretada por Glenn Close em Atração Fatal) e ouve-se em voz-off: "Foi nesse momento em que, de repente, percebi que a menos que alguma coisa mudasse, eu iria ter uma vida na qual a minha principal relação seria com uma garrafa de vinho e acabaria por morrer gorda e sozinha, encontrada três semanas depois, parcialmente devorada por cães pastores alemães. Ou então estava prestes a transformar-me em Glenn Close em Atração Fatal." Esta admissão de vergonha, mascarada de ingenuidade e histerismo, é o fio pelo qual se cose esse estranho manto que cobre muitas mulheres solteiras, sejam elas trapalhonas (como Bridget) ou dominatrix (como Alex). Ainda assim, as mudanças continuam. Em Portugal, os Censos de 2021 mostram que ha 40,3% de mulheres solteiras (cerca de 2,2 milhões), números impressionantes se pensarmos que nem há um século, para elas, o acesso à escolaridade era bastante complicado. Portanto, bem vistas as coisas, se agora "elas são egoístas", que seja. É um egoísmo necessario, que chega com décadas de atraso - o mais correto seria chamar-lhe autopreservação. Tempos houve em que não podiam votar. Em que não podiam sair do país sem a autorização do marido. Em que não lhes era permitido abrir uma conta bancária. Em que não tinham direito, sequer, a concorrer ao mesmo posto de trabalho que um colega do sexo masculino. Agora que finalmente resgataram alguma independência e liberdade, "encontrar o homem certo" passou a estar no fim da lista de prioridades de muitas mulheres. É muito mais importante, por exemplo, conseguir mesa. Mesa para um(a). claro.

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