As mulheres de António-Pedro Vasconcelos: recordações de um realizador “extraordinário”
As atrizes Fernanda Serrano, Ana Zanatti e Maria do Céu Guerra evocam memórias dos tempos que passaram a trabalhar sob a alçada de António-Pedro Vasconcelos. Aqui fica uma imagem de um homem “lutador” e “muito talentoso”.
Foto: @fernandaserranooficial07 de março de 2024 às 16:56 Joana Rodrigues Stumpo
António-Pedro Vasconcelos foi muito mais do que um dos grandes realizadores portugueses. A carreira, que iniciou no final dos anos 60, foi recheada de experiências que consolidaram o seu papel na indústria cinematográfica. Foi crítico de Literatura e Cinema, tendo mesmo assumido o cargo de chefe de redação d’O Cinéfilo, escreveu uma coluna para a revista Visão e chegou a apresentar o programa Cineclube na RTP2. Enquanto realizador, afirmou-se como um dos destaques do Cinema Novo português a partir dos anos 70. Com O Lugar do Morto, de 1984, arrecadou quatro prémios nacionais, um espanhol e outro russo. Jamie (1999) valeu-lhe o reconhecimento dos grandes festivais lá fora, tendo sido distinguido com dois prémios em Cannes e o prémio do júri de San Sebastián. Realizou, também, alguns sucessos de bilheterias nacionais, como A Bela e o Paparazzo (2010), Os gatos não têm vertigens (2014) e Parque Mayer (2018).
Mas António-Pedro Vasconcelos fica registado na memória coletiva dos portugueses como muito mais do que alguém que contribuiu para a Cultura nacional. Pelas vozes das atrizes Ana Zanatti, Fernanda Serrano e Maria do Céu Guerra, fica traçado um perfil de um autor que foi também um modelo a seguir.
Foi há exatamente 30 anos que Ana Zanatti trabalhou com António-Pedro Vasconcelos, no que foi uma produção distinguida com 11 prémios nacionais e internacionais. Para a atriz, O Lugar do Morto "foi o filme que deu a volta para uma nova linha do APV". Uma longa-metragem que inaugurou uma nova linguagem do realizador e, acima de tudo, veio prenunciar o que viria a ser uma das carreiras mais notórias no Cinema português. "Foi de facto um realizador importante no nosso país", diz Ana Zanatti à Máxima. "Fui vendo os filmes dele, alguns em estilos diferentes e quase todos achei interessantes".
Enquanto atriz, trabalhar sob a alçada de António-Pedro Vasconcelos "era estimulante e pacífico ao mesmo tempo". Recorda uma pessoa que "sabia expor bem as suas ideias" e que se distingue de tantos outros realizadores por uma simples razão: "respeitava a parte criativa dos atores e sentia-se - algo que não se sentia em todos os realizadores e encenadores - que gostava dos atores e das pessoas". Ana Zanatti lamenta que se perca não só um distinguido criativo, mas "uma pessoa importante ligada à Cultura, um lutador e uma pessoa que defendia com unhas e dentes as suas causas, os seus sonhos. Uma pessoa que acredita, que teve sempre ao longo do tempo causas com as quais se encarniçou, pelas quais batalhou, para fazer valer aquilo que ele achava ser a sua razão. Era um lutador e não se deixava abater, por muito adversas que se mostrassem as situações."
A atriz estreou-se no Cinema guiada pela mão de António-Pedro Vasconcelos. Já lá vão 25 anos desde que interpretou Marta neste primeiro filme, que deixou altas expectativas do que um realizador pode e deve ser. "Um primeiro trabalho na tela grande, em Cinema, com um nome tão representativo para o Cinema português, como o APV… Percebi que era alguém com um trato que às vezes é raro em pessoas com esta história e longevidade profissional", conta Fernanda Serrano à Máxima. De Jaime, a atriz diz guardar apenas boas recordações: "foi um filme que teve uma repercussão muito significativa, muito positiva, ainda hoje é dos filmes portugueses mais falados, um filme de que todos os portugueses se recordam. Trouxe-me muita coisa boa". Mais do que um modelo profissional a seguir, a atriz recorda António-Pedro Vasconcelos como um homem persistente por quem é fácil sentir admiração. "Era uma pessoa de ideais, defendia-os até ao limite. Eu gosto de pessoas assim, com pelo na venta, sangue na guelra. Não é à toa que deixou o legado emocional e afetivo que deixou, porque nos tocou a todos e nos deixou esse exemplo." Mas é mesmo enquanto uma referência na indústria do Cinema português que muitos o recordarão. Para Fernanda Serrano, fica a imagem de um realizador que "gostava de ser ativo em todas as frentes e partes", envolvido ao longo do processo de produção com sensatez e ponderação, algo que "demonstra inteligência e perspicácia no exercício da profissão".
Atriz há mais de 60 anos, passou pelo Teatro, Televisão e Cinema. Foi nesta última categoria que se cruzou com António-Pedro Vasconcelos para integrar o elenco de Os Gatos não têm Vertigens. "Uma experiência demasiado tardia", lamenta Maria do Céu Guerra. Se tivesse acontecido mais cedo, "com certeza teríamos trabalhado muito mais, porque foi uma experiência extraordinária, foi o papel em Cinema que mais gostei de fazer". Das filmagens da longa-metragem, guarda memórias de um homem "muito talentoso. Até foi autor de uma das cantigas mais bonitas do filme, cantada pela Ana Moura. Escreveu o poema porque o autor estava atrasado, portanto ele disse ‘pus-me à secretária e fiz eu o poema’ e saiu uma coisa linda." Aliada ao talento, tinha uma enorme dedicação e flexibilidade que "há poucos realizadores que têm", conta a atriz. "Lembro-me que conversámos imenso sobre a personagem Rosa d’Os Gatos não têm Vertigens", porque era alguém que "gostava de falar dos papéis com os atores, de estar sentado a discutir porque é assim ou assado, mas também a ouvir o que tens para dizer sobre o trabalho". Ainda que o papel de realizador permitisse exercer alguma autoridade, Maria do Céu Guerra diz que "a perspetiva dele nunca era impositiva, era sempre uma coisa dialogada, partilhada". Para a atriz, fica a memória de um homem dotado de "inteligência, cultura, sensibilidade, com gosto e conhecimento profundo do que era o Cinema, uma empatia e um amor pelos outros. Existe-se pouco assim hoje."