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Nara Vidal: “Penso na violência que é ficar com alguém sem querer, morar por gratidão e ter que ser faxineira, troféu ou parente.”

Foto: Getty Images
08 de março de 2024 às 10:33 Nara Vidal

Passeando pelo Instagram, dia desses, me apareceu, já não me lembro em que perfil, um vídeo sobre a "nova" lei espanhola que dava igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, para abrirem suas próprias contas bancárias e tirarem seus passaportes sem depender, no caso das mulheres, que um homem estivesse junto.

Um aspecto curioso no vídeo era a sua data. Eram pessoas adultas em 1974, em Espanha, nas ruas, dando suas opiniões. Eu não era adulta em 1974. Era recém-nascida num outubro do mesmo ano vinda de um homem e de uma mulher que eram adultos nesses tempos. Foi também no ano de 1974 que Portugal viveu a revolução dos cravos e que ficou na memória dos brasileiros, que lutavam contra a ditadura, como grande inspiração.

No vídeo curto um casal é contra a igualdade. Tanto ele quanto ela, ainda que só ela elabore sobre a questão, os lugares do homem e da mulher são distintos e a mulher deve respeitar o lugar do homem. Uma outra entrevistada diz que já vem tarde a tal lei. Ela acha que devemos ter igualdade de direitos e que seja sempre um caminho à frente, o das conquistas. Uma outra mulher diz que não deveria haver igualdade e que os jovens do seu tempo não pensam mais nas famílias (esse conceito que ficou por tempo demais emperrado num lugar só), que homem é homem e mulher é mulher. Há um homem que comenta que a mulher trabalha, mas um pouco envergonhado diz que, não fosse pela necessidade financeira, ela ficaria em casa. Quando escuto esses depoimentos de cidadãs e cidadãos, alguns dizendo que são contra a igualdade, me espanto. A justiça e a igualdade de direitos me parecem conceitos inquestionáveis, tanto em valor quanto em prática. São ideias democráticas, abrangentes e sobre direitos humanos.

Em 1981, eu tinha sete anos e fui enviada à casa de uma tia-avó para aprender a pintar panos de prato. Eu pintava patos, galinhas, gatinhos, todos doentes, deformados e com um toque qualquer de surrealismo. Eram horríveis, sofriam de angústia. Um dia, durante a aula de pintura, a tia-avó nos serviu um bolo de limão. Foi a primeira vez que provei um bolo de limão que passou a ser o meu preferido. Era um bolo excepcional. Pequenas lasquinhas dentro, já que também levava coco, e por fora tinha uma levíssima cobertura azedinha e doce na medida certa. Além de tudo, o bolo era lindíssimo. Depois de eu comer alguns pedaços, desobedecendo à mãe que implorava para que tivéssemos boas maneiras e nunca repetíssemos comida nas casas dos outros, a tia me disse que, se tivesse que dar aulas na escola da cidade, não teria tempo para fazer essas delícias. Minutos depois, veio uma mulher negra que era empregada da casa para juntar restos e lavar sobras. A frase ficou comigo. Não por espanto, naquele tempo, mas por não entender o que dizia a tia e nem a razão daquela frase descontextualizada dita a uma menina que estava mais interessada no quarto pedaço de bolo do que nos patinhos enfermos que pintava. Ouvindo o vídeo espanhol e as pessoas falando lá de 1974, penso na minha mãe que era uma mulher e mãe no tal ano. A mãe que trabalhou como professora desde os dezassete anos e que tinha orgulho de, vez ou outra, ganhar mais que o pai. Os dois tiveram um casamento bastante convencional, com valores tradicionais e praticamente inquestionáveis. Mas a mãe tinha lá umas luzes que brilhavam nela e que eu via. Talvez fosse rebeldia oprimida e que, no domingo de calor e solidão, virava melancolia ou resultava numa sesta exagerada que ia até às quatro da tarde. Uma vez, ela assistindo Malu Mulher, eu que brincava na sala, perguntei o que era a palavra "desquite". Com a minha sinestesia já aflorada, aquilo tinha gosto de cinza ou cinzeiro. De fato, era o queimar de uma tradição inútil, o casamento de fachada. Lembro da minha mãe me tentar explicar e não perder um episódio, tentando um debate qualquer com o meu pai, quando acabava o programa.

Quando eu vejo o vídeo espanhol, penso no número de mulheres que precisaram morar de favor em casas de homens, e que para morarem em paz tiveram que concordar com a ideia de supremacia masculina. Penso nas mulheres que tiveram que aprender a fazer bolo, comida boa, pintar patinhos saudáveis e alegres, tocar piano, bordar belíssimas rendas, costurar para a família, virarem exímias faxineiras porque era a moeda de troca que podiam oferecer ao homem que pagava o teto. Penso nos filhos que foram gerados sem amor, mas por gratidão, numa noite de sexo sem o gozo da mulher. Penso nas saias levantadas sem que elas quisessem. Penso na violência que é ficar com alguém sem querer, morar por gratidão e ter que ser faxineira, troféu ou parente. Penso nas mulheres que, tomadas por independência e desejo, saíram de suas casas, deixando filhos e marido, transformando-se imediatamente em vilãs e mães desnaturadas. A alternativa para isso também previa um sacrifício, o delas. Não defendo, só para deixar bem claro, maus tratos e negligência. Mas defendo, com fervor, a igualdade, a justiça de oportunidades e a democracia para todas pessoas. Defendo que todas nós possamos ter um teto próprio, trabalho remunerado creditado numa conta só nossa e que, virando a esquina, caso a gente queira, pinte patinhos lindos nadando no lagoa azul e asse o melhor bolo de limão do mundo. Tintas e ingredientes comprados por nós.

Quase cinquenta anos da entrevista na TV espanhola, quase cinquenta anos do 25 de Abril em Portugal e o conservadorismo não dá sinal de sumiço. Crescem sempre o populismo e sua serpente nas mesmas narrativas deturpadas em nome de Deus, da pátria e da família dentro dos corações cheios de tristeza e angústia como os meus patinhos, também, tão feios.

Desejo que, no domingo, em Portugal, a população rejeite a bandeira do preconceito e do atraso.

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