Ana Roš tornou-se chef acidentalmente e hoje coloca a cozinha do seu país no mapa gastronómico mundial. De passagem na capital por ocasião do festival Peixe em Lisboa, a Máxima aproveitou para dois dedos de conversa.
Foto: Pedro Catarino12 de abril de 2018 às 18:00 Aline Fernandez
De visita a Lisboa, para participar na 11.ª edição do festival Peixe em Lisboa, a Máxima teve a oportunidade de se sentar com a chef eslovena Ana Roš. Entre as muitas distinções que já recebeu, Ana foi eleita a Melhor Chef Feminina do Mundo em 2017 pelo júri da revista britânica Restaurant, que também elege, anualmente, os célebres melhores restaurantes do mundo. O Hiša Franko, restaurante-hotel em Kobarid que comanda ao lado do seu companheiro Valter Kramar, figura na posição 69 deste mesmo ranking.
"Senti-me orgulhosa", confessa em relação ao momento em que recebeu o seu prémio. "Fiquei orgulhosa porque é o sector que vota: são chefs, são colegas de trabalho, jornalistas, formadores de opinião, bloggers… pessoas que realmente sabem o que estão a dizer. Então acho que todos se deveriam sentir muito orgulhosos com estas coisas. Melhor Chef Feminina do Mundo é uma condecoração que é dada apenas uma vez na vida, não se pode repetir, mas a verdade é que a vida muda. Quer dizer, ficamos mais no centro das atenções, as pessoas querem-nos mais, precisam mais de nós. Há uma atenção redobrada por parte da imprensa também, então não se pode dizer que o mundo ao seu redor, e você também, não mudam com isso", confessa Ana.
Há um episódio dedicado à Roš na segunda temporada da série Chef's Table, da Netflix. Ana confirma as alterações que vieram após o documentário. "Mudou. Se antes havia mais atenção da Europa e regional (ao restaurante), além da Eslovénia, da Escandinávia, Áustria, Alemanha, Suíça e França, hoje é totalmente diferente, a atenção vem dos quatro cantos do mundo, passamos a ter clientes internacionais à mesa. A Netflix tem esse efeito, especialmente alguns episódios que são mais distintos dos outros, que movem com os corações das pessoas, vamos dizer. Eu não pensei nisso antes, mas com a Netflix percebemos que as pessoas estão a viajar (para a Eslovénia), porque o restaurante é o destino, mas isso não é novo no mercado da restauração. Se notarmos a dinâmica de restaurantes como o Noma (em Copenhaga, Dinamarca) ou a Osteria Francescana, em Modena (na Itália), as pessoas viajam para certos destinos por causa do restaurante."
Se a pequena povoação de Kobarid chamou a atenção do mundo, o facto é que a chef tornou-se uma verdadeira embaixadora do seu país. "Eu fui condecorada por um presidente, eu fui condecorada pelo primeiro-ministro, o Conselho de Turismo da Eslovénia nomeou-me a embaixadora oficial de turismo e por aí fora… É tudo verdade, mas eu digo sempre que é importante trabalhar sobre essas premissas para mudar algo para melhor, sabe, porque o efeito Netflix vai durar muito tempo, porque a Netflix está sempre lá; mas, por outro lado, eu acho que realmente depende das instituições continuar a fazer esse trabalho e continuar a pôr a Eslovénia no centro das atenções. Isso é algo que eu não posso fazer para sempre para toda a nação", lembra.
O trabalho de Roš dá prioridade aos produtores locais e destaca as trutas marmoreadas e salmonadas do Rio Soca, de entre seis variedades de peixes, e também mariscos da costa adriática. O restaurante-hotel tornou-se uma forma de subsistência económica para pequenos pescadores, agricultores, vinicultores e produtores de queijo, por exemplo.
"Eu não queria cozinhar"
Ana Roš estava a estudar Relações Internacionais em Gorizia, onde conheceu Valter Kramar. Os seus sogros eram donos Hiša Franko, que, na altura, era um restaurante simples, uma gostilna – nome dado aos espaços descontraídos e informais na Eslovénia. Inicialmente, Ana fez serviço de sala, mas quando sobrou apenas uma pessoa e nenhum chef na cozinha, foi preciso reorganizarem-se.
"Ao contrário da maioria do chefs que conheço, nunca sonhei ser cozinheira. Foi-me imposta [a profissão], de certa forma não havia outra solução. Mesmo quando comecei a namorar com o meu marido levantava-se a questão se deveríamos tomar conta do restaurante. Então lá assumi o controlo, mas acredito que ninguém, jamais, sonharia que eu iria para a cozinha. Não havia opção, tive de o fazer", conta.
A intenção de se tornar uma diplomata mudou, apesar de não ter qualquer experiência na área da restauração. Hoje, quase duas décadas volvidas, o Hiša Franko é um restaurante de alta cozinha e internacionalmente reconhecido, com Ana como uma chef premiada e Valter, maître e sommelier reconhecido. "Tenho um caráter forte, mas paixão por muitas coisas. Então se eu faço alguma coisa, tento sempre pôr o meu coração, todos os meus pensamentos e paixão naquilo", disse.
Localizado na parte ocidental da Eslovénia, junto à fronteira com Itália, o restaurante fica a duas horas e meia de carro da capital, Ljubljana, a uma hora de Trieste, no nordeste italiano, e a uma hora e meia de Veneza. A apenas 30 km da Áustria, com os Alpes atrás e o Mediterrâneo mesmo em frente, o Hiša Franko ocupa uma posição ideal para Ana explorar o melhor do que estas regiões têm a oferecer.
O restaurante não é só o local onde a chef trabalha mas também é a casa onde vive com Valter e os seus dois filhos, Svit Kramar Roš, de 15 anos, e Eva Klara Roš Kramar, de 13. "Vivemos e trabalhamos aqui 24 horas por dia, em conjunto com convidados que vêm, ficam connosco e comem no restaurante. Isto significa que tem de haver muito coração e amor em tudo aquilo que fazemos. Penso que isto transparece em toda a experiência do Hiša Franko. Há uma atmosfera especial no local, e quem o visita sente-se em casa, num espaço intimista e pessoal. Sou muito ligada à minha família e acho que os convidados conseguem sentir isso."
"Para mim, a cozinha é um lugar criativo. Há sempre uma evolução a acontecer e a carta muda constantemente. Não muda diariamente, mas eu diria que semanalmente nós mudamos até dois pratos, o que significa que ao longo do ano vai sendo alterada com bastante frequência. Por isso não temos pratos de assinatura e acho que nunca vamos ter. Há diferentes razões para tal: uma é porque precisamos de seguir a natureza e o que ela está a oferecer; a outra é, como mencionei atrás, como todos nós amadurecemos, há uma evolução pessoal e, com ela, uma evolução criativa. Do outro lado há produtos que realmente adoro e que tendo a deixar na carta, como a língua de boi e truta, e, é claro, plantas brancas e espargos são produtos que são parte constante do nosso menu."
E, caso se pergunte qual é a comida preferida da chef, ela confessa: "Depende mesmo do meu humor, não é sempre o mesmo, mas sou obcecada por vegetais, realmente adoro-os. E cada vez mais estou a comer sopas. Eu gosto da beleza da diversidade das sopas. Quer dizer, não estou a falar de sopas aborrecidas, mas sopas podem ser muito nutritivas, por causa do líquido que se consome de uma forma saudável, a maneira de comer mais devagar e, se a sopa for boa, pode dar energia para o dia todo. Mas, de vez em quando, também adoro uma boa pizza, não se esqueça que moro na fronteira italiana, onde a pizza é uma obra de arte. O mesmo se passa com hambúrgueres, se for ao McDonald's ou Burger King, então o hambúrguer é um fast food, mas se você for a um lugar onde se faça um hambúrguer realmente bom, então não é fast food", confessa. "Sou uma grande apreciadora de vinho. Já se sair com amigos, peço um gin e água tónica."
"Se fosse casar, casaria em Lisboa", confessou, "porque realmente amo a cidade. É sempre surpreendente (esta foi a quinta visita da chef à capital portuguesa). Lisboa dá-lhe uma sensação que não se sabe exatamente onde está, seja na Europa, seja no meio do mar ou nalgum lugar na América do Sul ou, talvez, em África, poderia ser qualquer lugar", afirma.
Sobre a cozinha portuguesa, já possui opinião. "Eu acho que é uma das melhores do mundo", afirma, "vibro com todas as dimensões e inclinações do bacalhau. Experimentei uma sopa de bacalhau linda ontem. Vocês comem uma comida muito interessante e saudável e, claro, os frutos do mar são brilhantes".
"A Eslovénia sempre teve muito foco na igualdade de género. Não acontece porque há uma pressão da imprensa ou qualquer coisa, acho que sempre foi um processo natural. Somos uma terra de mulheres fortes." Atualmente, no Hiša Franko, há um pouco mais de mulheres que homens a trabalhar na cozinha. "Este equilíbrio é bom", afirma. Em sua casa, a educação é a mesma. "Ela (minha filha) tem o melhor exemplo dentro de casa, mas também tem um bom exemplo na minha mãe. Ela foi jornalista, agora está aposentada, e é uma mulher muito inteligente. Diria que, em muitos aspetos, ela é mais forte que o meu pai. Algumas vezes não é tanto sobre ensinar, mas ser um bom exemplo para as nossas crianças", conclui.
O que não podemos perder na Eslovénia
"Faça uma viagem de carro de Ljubljana, passe pelo Vršic Pass (vale de montanhas) até o Soca Valley e desça para a região dos vinhos, porque acho que nessa viagem tem-se a capital, lagos fantásticos, provavelmente o vale europeu mais bonito e termina numa região em que é possível observar o mar, o que é especialmente espetacular na temporada em que há cerejas. Assim, acho que é possível compreender em apenas um dia porque é que a Eslovénia é tão única e porque é que, cada vez mais, as pessoas afirmam que é um lugar a conhecer. Moro nas montanhas e descubro cada vez mais a beleza daquele lugar."
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Ana Roš no restaurante Belcanto, do chef José Avillez, onde realizaram um jantar especial a quatro mãos, no dia 11 de Abril
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Ana Roš conversa com David Jesus na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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Ana Roš conversa com David Jesus na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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Ana Roš e David Jesus na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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Ana Roš na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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Ana Roš na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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Ana Roš a provar um de seus molhos na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
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José Avillez e Ana Roš no restaurante Belcanto, onde realizaram um jantar especial a quatro mãos, no dia 11 de Abril
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José Avillez e Ana Roš com as equipas do Belcanto e Hiša Franko na cozinha do restaurante Belcanto, no dia 11 de Abril
Foto: Peixe em Lisboa10 de 10
Ana Roš durante a sua apresentação na 11.ª edição do festival Peixe em Lisboa, no dia 10 de Abril