A gentileza dos estranhos: são bem educados ou bem amados?

Foto: O Fabuloso Destino de Amélie / IMDB
12 de março de 2024 às 07:00 Patrícia Barnabé

Bem sei que o mês dos namorados já acabou e os dias de hoje estão para poucos romances e grandes sonhos, por isso nunca se sente como tão urgente o apelo do poeta Daniel Filipe para "inventar o amor com carácter de urgência". Todo o amor, do óbvio ao universal. Para que possamos partilhar este planeta dentro do possível, já que somos cada vez mais, e obrigados a viver todos juntos, às vezes amontoados, tão diferentes e tão iguais, num lugar finito, de recursos e de espaço. A vida e as sociedades cada vez mais plurais, estão a obrigar-nos a uma bonita base de entendimento humano, o mesmo que inventou a maravilhosa ética, o aborrecido politicamente correto ou wokismo, como se usa dizer hoje, e o dispensável moralismo para nos ajudarem a saber exatamente onde estamos. Onde deve acabar a nossa liberdade e começar o respeito pelo outro. Ignorar é a nova forma de desrespeito. Diria mesmo que é o mandar à merda dos cobardes.

Não temos de ser todos amigos, mas a elegância de caráter não se coaduna com certos pequenos desprezos a que passámos a ser votados todos os dias. Deselegâncias várias. Já nem falo do novo mal educado que não responde a mensagens por sistema, mas daquele mal educado social corrente. Neste fim de semana, tive o prazer de conhecer um caixa de supermercado da nova geração que já nem diz boa tarde à clientela. De auricular, falou com o além o tempo inteiro, enquanto passava as minhas compras, e só me honrou com o seu olhar porque teve de indagar sobre a forma de pagamento. Qualquer dia, nem isso. Por isso, hoje, eu que sou uma pessoa de pessoas, que escolhe sempre as portagens com gente porque prefiro sempre humanos a máquinas, já prefiro as caixas automáticas.

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Recordou-me logo os motoristas em Nova Iorque, há umas décadas, que nos tratavam como sacos de farinha. Só interessa que pague. E claro que já chegou cá o fenómeno, a globalização torna tudo igual, em particular o que é mais vulgar. Nascida num país onde ainda se troca, ao acaso e naturalmente, impressões com estranhos, é muito desconcertante partilhar o espaço com um mono. Desengane-se quem acha que isto são manias sul da Europa, acabo de aterrar da Escócia e lá os condutores dos autocarros desejam-te um bom dia e na rua as pessoas ajudam-te sem pedires. Diz mais sobre a sobranceria de cada um do que qualquer outro indício, porque aos estranhos não é preciso agradar, eles não nos dão nada de volta.

Aflige-me a constante ausência do outro, toca muito facilmente a desconsideração, para não dizer que é uma evidente definição da mesma. Aquelas pessoas devem querer estar, claramente, noutro lado, menos ali; ou sozinhas no sofá, em vez de perto de outros. O que parece ter bom remédio: vão para outro lado ou fiquem em casa. Agora se escolhem viver em cidades amontoadas em cima das outras, ou profissões que lidam com pessoas, vão desculpar-me. Não ignorar é o princípio do não atropelo, da civilização. É um básico que aprendi logo na primária, quando entrei para o colégio. "Responde quando alguém dirige a palavra." Básico. O outro não tem culpa das nossas neuras, muito menos das nossas merdas. O mínimo que se pede é presença, mesmo que não de espírito. Ou então, como diz o Bob Dylan: "Be groovy or leave, man!"

Uma vez o motor do Uber onde eu viajava para a Sé, ardeu. O rapaz saiu disparado e nem para mim olhou, como se não me estivesse a transportar, e eu a pagar, como se fosse um saco de supermercado esquecido no banco de trás. Quando percebi o que se passava, fiquei perplexa e perguntei-lhe, ele nem olhou para mim e disse, num inglês indecifrável, para eu continuar a pé. Estava em plena Baixa, dois portugueses de uma loja de souvenirs observaram o episódio e abraçaram-me com o seu olhar compreensivo: "Menina, isto está cada vez pior." Porque só se pedia o mínimo, ninguém falou em nobreza. Uma vez, aqui no bairro, um casal que falava alemão resolveu comprar a padaria inteira, parece que iam dar uma festa, mas nem repararam na fila que aguardava e ficaria sem pão. Fiquei sem palavras, como fico sempre perante a maldade ou a estupidez evidentes. Um dos rapazes por detrás do balcão, que já me conhece, acalmou a minha perplexidade com um pão de espelta. E os outros, que não eram conhecidos de ninguém? Ainda assim, é a informalidade da velha Lisboa que nos mantém alegres, e a razão porque a maioria dos estrangeiros quer mudar-se para cá: "Paris perdeu a alma", disseram-me mil vezes já. Pois, é melhor não ir por aí.

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Sempre adorei humor negro, ironia e o descambar do cinismo, acho-os um sinal de que estamos a ver os lados todos de uma questão, despersonalizando-nos dela. Mais, estamos a sobreviver: as pessoas mais sensíveis, as que mais se preocupam, não se defendem com lamúrias, mas com ironia. É o que resta quando tudo se perde. Mas é muito mal entendida, principalmente para quem nunca a praticou em casa ou não gosta de jogos de palavras. Por isso, nunca entenderei a frieza e o desapego, ao menos o desinteresse é mais honesto. Mas respeito a ausência, ou até quem se deixe engolir pelo trabalho, porque detestaria que estivessem comigo só para marcar o ponto. Sempre respeitei os amigos que desaparecem porque consideram que têm mais o que fazer, têm esse direito, ainda que fico triste porque percebo que é provável que eu goste mais deles do que eles de mim. Mas também tenho daqueles, os bons, que nunca desaparecem e são estacas contra todas as intempéries. Por isso são os que permanecem depois de todas as euforias e maleitas.

É preciso inventar o amor com caráter de urgência. Lembro-me quando os millenials começaram a usar o sarcasmo como defesa por perceberem que são a primeira geração que será mais pobre do que a anterior, num mundo até aí generoso para com os mais jovens porque acredita neles como no futuro. Pelo menos desde os anos 60 do século XX, dantes eram carne para canhão. Ainda que se continue a idolatrar a juventude até ao ponto da irracionalidade, nunca foi tão difícil a emancipação como é hoje. Numa época em que já quase nos esquecemos do sacrifício, aí está ele para nos humanizar. E o que é que fazemos? Deixamos de dizer bom dia quando entramos no elevador.

Também os romances, o tal amor óbvio, parecem mais fugazes e frugais e inconsequentes. Sempre foram jogos de poder e status, nada inocentes como os romances e as comédias românticas, que nos enganaram toda uma vida. Mas antes isso, que se topa às léguas, do que o amor descartável. Nunca me inscrevi numa app de encontros, mas não seria para quem tem a mania do apego e do compromisso. Não sei como é que as pessoas fazem para: 1) escolher de quem se gosta de acordo com certos padrões, como sempre fizeram a maioria das pessoas, (principalmente as raparigas que têm quase sempre um plano); 2) sacarem pessoas por fotografia, como num catálogo de acompanhantes de luxo. Nada contra, acho divertido, mas é meio tristonho, quase desesperado.

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O sr António, meu vizinho, que já se atira para os 70, dizia-me há uns dias, "ai menina, agora a palavra não vale nada e dantes nós éramos a nossa palavra." Não acredito no dantes é que era bom, nada disso, mas também não acredito que tudo o que é novo é melhor. Em matéria do humano, a tendência é piorar, basta ver como se vive nas maiores cidades do mundo. E nem a eminência de hecatombe que a pandemia anunciou nos fez pessoas mais generosas e atentas ao outro. Muito pelo contrário.

O pior de tudo é, de ano para ano, vermos os números da violência no namoro subirem e exibirem a fragilidade do amor nestes tempos de guerra e de cólera: assustador. Segundo um estudo, deste ano, da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, que observou 6152 jovens entre os 11 e os 21 anos de escolas de todo o país, e saiu neste passado 14 de fevereiro, "há uma naturalização de alguns comportamentos de violência no namoro". Estes comportamentos têm séculos, principalmente apontados às raparigas, quase sempre as mais mal amadas (uma minoria que ousa pedir um pouco mais está lixada, e esmagada, pelo coro da subalternização herdada em casa).

Continuamos pouco cuidadas pelos rapazes, como é evidente, mas apesar do mundo parecer evoluir na sua tecnologia de ponta, eis não quando chega o ressentimento normativo a querer que volte tudo para trás. Quem sabe voltemos a andar de burro, pobres dos burros, porque sempre foi tradição. A tradição a que nos deveríamos agarrar, com unhas e dentes, é a da empatia, do respeito pelo outro, está para lá das mentalidades, da classe social, da nacionalidade, da idade - dizem tudo do humano que somos. Por isso, quando observo a frieza dos outros, faço como o poeta, desta vez o Carlos Drummond de Andrade, e perante o abandono, o desleixo e a baixa reciprocidade, "ergo-me em arco sobre os abismos".

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