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"A prepotência e o abuso sobre a mulher (...) têm como finalidade controlar o que esta pode fazer, nomeadamente com o seu corpo"

Em França, a Constituição passa a consagrar o direito da mulher à IVG. Nos EUA, no estado do Alabama, passou recentemente uma lei que transforma embriões para fertilização in vitro em pessoas. Em Portugal, há quem pense no retrocesso sobre o aborto e pretenda reverter o que o progresso conquistou. O controlo do corpo feminino é uma perniciosa manifestação de poder.

Foto: Getty Images
08 de março de 2024 às 07:00 Máxima

De tão repetida, a constatação tornou-se um lugar comum: vivemos tempos estranhos. No mesmo planeta, no mesmo hemisfério, na mesma era geológica, na mesma época da História, políticos da mesma idade e de culturas semelhantes comportam-se de maneiras completamente distintas, por vezes opostas. Por exemplo, os avanços e retrocessos no que respeita à interrupção voluntária da gravidez e ao estatuto legal do feto - e até do embrião! - divergem de estado para estado. Se França tem sido notícia por consagrar a prática do aborto como direito constitucional da mulher, no extremo oposto temos, nos Estados Unidos da América, o Alabama a legislar que um embrião - o estágio inicial do desenvolvimento de um organismo humano - passa a ter estatuto jurídico semelhante ao de outro cidadão, o que pode trazer graves problemas a mulheres e a equipas médicas. Há quem veja nestas divergências uma demonstração de saúde democrática. Contudo, quando fazemos zoom observamos que uma destas tendências não é lá muito democrática. Pelo contrário, é uma demonstração de prepotência.

Como sucede sempre que surge uma crise, num dos extremos do espetro político-ideológico emerge o conservadorismo mais primário. Num tempo em que as crises no mundo ocidental são tantas - climática, migratória, económica, habitacional, bélica - que fica difícil definir de que crise falamos, era mais ou menos expectável que o fenómeno se repetisse, como aconteceu outras vezes ao longo da história. Esse conservadorismo extremo tem uma característica distintiva que o identifica claramente: começa por se manifestar pretendendo controlar os indivíduos - e a demonstração desse poder começa frequentemente pelo controlo do corpo feminino, o que pode ter inúmeras explicações e até remeter para tempos primitivos, para eras longínquas em que o corpo da mulher era propriedade do homem (ou será que essas eras não são assim tão longínquas?).

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Os estudos e documentos que atestam a fragilidade dos direitos e do estatuto - social, civil, legal - da mulher em caso de instabilidade ou de conflito, ou da ressaca de um conflito, são vários e têm origens fiáveis, das Nações Unidas à Amnistia Internacional ou à AWID (Associação pelos Direitos das Mulheres e o Desenvolvimento). Todos apontam invariavelmente para as mulheres como alvo preferencial de uma sociedade sem regras nem ordem - a prepotência sobre o corpo feminino é tanto o resultado da falta de ordem, num primeiro instante, como o fruto da busca pela imposição de uma regra, numa altura posterior. Em contextos extremos, como aqueles da guerra e do pós-guerra, estamos a falar dos mais hediondos crimes, como o assassinato e a violação. Em situações menos catastróficas, em que a ebulição social não resulta exatamente de um conflito armado, mas antes de um ou de vários tipos de crise que abalam as fundações e as convenções sociais - as tais de onde resultam os extremos conservadores -, a prepotência e o abuso sobre a mulher têm outros contornos. Por norma, vêm sob a forma de lei e têm como finalidade controlar o que a mulher pode ou não pode fazer - nomeadamente com o seu corpo.

As razões para esta tendência de uma sociedade conservadora ou em convulsão pretender controlar o corpo da mulher são obscuras, mas essa tendência existe e os exemplos não faltam: podemos olhar para os dias de hoje e encontrar analogias em tempos remotos - num instante, estamos a falar de bruxas e de fogueiras. Um olhar breve para o mapa mundi dos Reproductive Rights sobre as leis do aborto mostra uma clara diferença entre os hemisférios Norte e Sul. No Norte, o direito à IVG é consagrado na lei de praticamente todos os países, com exceção de alguns regimes islâmicos (Afeganistão, sem surpresa, mas também Irão, Iraque, Síria, Líbano, Egito e Líbia, entre outros), de Myanmar, Laos, Bangladesh e Butão. O que surpreende é encontrar, entre este leque de países, a Polónia, o Japão e o Reino Unido. E ainda os Estados Unidos da América e o México, cujas leis sobre o aborto variam de estado para estado, mas onde a tendência para a limitação dos direitos da mulher, principalmente nos EUA, tem vindo a crescer. Quanto ao hemisfério Sul, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Moçambique, Argentina e Uruguai são as honrosas exceções aos estados onde a lei maioritariamente proíbe a interrupção voluntária da gravidez.

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Não é difícil perceber-se o padrão. Os países menos desenvolvidos ou em desenvolvimento fazem do controlo do aborto uma manifestação de poder. O mesmo acontece nos países desenvolvidos onde se tem assistido àquilo a que se passou a chamar "retrocesso civilizacional", normalmente associado ao crescimento da extrema-direita populista, ao ponto de esta chegar ao poder. São fenómenos correlacionados, o crescimento do populismo, o retrocesso civilizacional e a limitação dos direitos femininos, de entre os quais a IVG é obviamente a principal bandeira e expressão de direito individual.

É nas regiões onde mais despontam, por exemplo, os movimentos direcionados à contestação do conhecimento científico - teorias de conspiração como o terraplanismo, entre outras - que mais fortemente se faz sentir o aumento dos apoiantes a políticos populistas de extrema-direita. E é também nesse ambiente sociopolítico que proliferam os movimentos que pretendem retirar às mulheres direitos fundamentais anteriormente consagrados na lei. Nos Estados Unidos, depois de vários estados pretenderem retroceder na legislação sobre a IVG, dá-se agora o extraordinário caso de um estado considerar embriões congelados como crianças - o Supremo Tribunal do Alabama fê-lo na última semana de fevereiro, conferindo aos embriões o estatuto de pessoa. Não sendo uma forma de controlo direto sobre o corpo feminino, trata-se claramente de um precedente legal gravíssimo que fica aberto para o futuro. Se o Supremo Tribunal considera pessoas embriões congelados destinados à fertilização in vitro, o que acontecerá a uma mulher que pretenda abortar? A conta não é difícil de fazer: estaremos a falar de homicídio.

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Nem tudo são notícias do retrocesso. Neste caso, fica a ideia que a mesma civilização possui a incrível capacidade de andar a diferentes velocidades. Em França, país onde, num passado recente, a extrema-direita tem vindo a galgar terreno no panorama político através do Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen - anteriormente conhecido como Frente Nacional e dirigido, com assinalável sucesso, pelo pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, durante os primeiros anos de atividade -, a Constituição passou a consagrar o direito da mulher à IVG. Não é apenas uma lei, nem uma alteração a um estatuto jurídico: é uma espécie de mandamento protegido pela lei fundamental de um país. De hoje em diante, qualquer partido populista que pretenda retroceder na matéria do direito da mulher ao aborto, em França, terá de lidar com uma situação tão complicada, tão complexa e tão difícil como uma alteração constitucional. Não se tratando de um cenário impossível - a história mostra-nos que não existem impossíveis no percurso das civilizações -, será, no mínimo, uma tarefa hercúlea. O que significa que terá, pelo menos, um efeito dissuasor para políticos populistas cujas preocupações deviam passar mais pela organização e prosperidade do estado e menos pelo controlo do corpo feminino.

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Por cá, e perante a falta de leis fundamentais dissuasoras desse tipo de políticos com as prioridades baralhadas, temos lidado com o discurso sinuoso de Paulo Núncio. O vice-presidente do CDS-PP que já foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nos governos de Pedro Passos Coelho, conseguiu algum destaque mediático no decorrer desta campanha eleitoral em que o seu partido concorre pela AD, coligado com PSD e PPM. Se, por um lado, foi uma maneira ruidosa de Núncio tirar da sombra o seu partido, e sair ele próprio para os escaparates mediáticos, já os motivos que o trouxeram à ribalta são de valor duvidoso, para não dizer pior. Num debate promovido pela Federação Portugal pela Vida, Paulo Núncio declarou que a única maneira de reverter a lei do aborto - aprovada em 2007, depois de realizado um referendo sobre a matéria no mesmo ano - seria através de um novo referendo, mas fazendo menção de que essa revisão deveria ser feita logo que possível e de maneira a limitar o acesso das mulheres à IVG. Em termos práticos, as declarações até podem ser inofensivas. Todavia, o sintoma é maligno, porque já se sabe o que significa este tipo de discurso e o que representa esse desejo incontido de controlar, pela lei, o corpo da mulher.

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