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Histórias de Amor Moderno: “Começámos a chocar pela mais improvável das razões: os partidos em que votávamos”

“No contexto certo, com uma educação como a que eu tive, a política torna-se crença.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / O Diário da Nossa Paixão (2004)
16 de março de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

"Não se ama alguém que não ouve a mesma canção", canta o Rui Veloso. Eu nem sequer gosto do Rui Veloso, mas há nessa frase uma lição preciosa. Certas incompatibilidades entre pessoas apaixonadas são inultrapassáveis. Vejo, ao meu redor, amigas e familiares que decidiram ignorar essas faltas de sintonia como se elas fossem só uma circunstância que podemos superar passando-lhe por cima ou não lhe dando importância. Por vezes, isso ocorre em nome de um casamento, da estabilidade familiar, da solidez de um projeto a dois, sei lá, ou para assegurar a paz e a serenidade dos filhos. Haverá explicações, várias, talvez até muitas. Mas o resultado final é invariavelmente a infelicidade de uma ou mesmo de ambas as partes. Digo infelicidade para não dizer miséria. Mas a infelicidade é miserável.

Vou lembrar-me sempre da resposta do meu pai quando lhe disse que namorava com o Bernardo. "Bernardo?", resmungou ele, "esses nomes pomposos não me inspiram confiança". O meu pai chama-se Joaquim, já agora. Hoje em dia, também o nome Joaquim foi reabilitado pelas "novas tendências conservadoras e elitistas" que ele tanto despreza. Há muitos miúdos chamados Joaquim. Mas eu não lho digo. Entre amigos, ele é o Quim. Os mais próximos e mais antigos chamam-lhe carinhosamente Quinito, "era o que a tua avó me chamava", gosta sempre de sublinhar, como se temesse que nos esquecêssemos que este Joaquim não é um Joaquim pós-moderno, burguês ou aburguesado. Longe disso. Este Joaquim é o Quim, indivíduo do povo, da labuta e da luta. "Enquanto estas duas se mexerem", diz isto e ergue as mãos, que contempla e exibe, "hei de trabalhar, ninguém mais me sustenta".

Da primeira vez que o Bernardo jantou lá em casa, tudo se organizou com a normalidade dos jantares quotidianos. A minha mãe caprichou no prato, mas a mesa foi posta como sempre era posta, acrescentando-se simplesmente um lugar ao lado do meu. O Bernardo levou o evento mais a sério, revestiu-o de solenidade. Vestiu uma camisa e um blazer. Acredito que tivesse posto gravata caso eu não o tivesse advertido para a informalidade da casa e da minha família, ainda mais naquela altura, em que o meu irmão já não vivia lá e tínhamos ficado reduzidos a três. Uma coisa é ter maneiras, outra é fazer cerimónia. Na casa do Quim nunca houve cá cerimónias.

O meu pai gosta de fazer o seu jogo. Gosta de testar limites e de observar placidamente os participantes. Parece que tira conclusões que guarda para si, num extenso relatório que, mais tarde, há de apresentar às partes interessadas e envolvidas, normalmente como arma de arremesso cujo potencial de destruição é imprevisível - mas que será implacável. O meu pai é boa pessoa, mas tem uma espécie de lado obscuro de onde extrai gozo a partir da contemplação dos outros enquanto eles se despedaçam. "Estes bandidos destes liberais", protestou, indignado, quando passava uma notícia qualquer acerca dos impostos. "Estes é que são os verdadeiros chupistas." O Bernardo pigarreou, limpou os cantos da boca. Ficou desconfortável. O serão avançou, o meu pai protestou mais contra aquilo a que chama "tendências modernaças desses sabujos capitalistas" e o Bernardo, no seu desconforto, começou a levar a peito e a responder. O problema é que os argumentos do Bernardo eram tão sentimentais e pouco racionais como os do meu pai. Com vantagem para o meu pai, porque esse, pelo menos, sabia que os estava a usar com um único propósito: melindrar o outro.

O rescaldo dessa noite não foi fácil. E a memória do desconforto geral ainda hoje está presente nas conversas da família. Mas tudo entre nós começou a ruir nesse dia, depois desse episódio. O Bernardo sentiu-se atacado e deixou claro, quando falámos sobre o assunto, que não queria voltar a estar com os meus pais, não num território que lhe era hostil - isto é, a casa do meu pai. Eu disse-lhe que isso não era possível, porque eu não deixaria de frequentar a casa dos meus pais só porque a ele não lhe agradava; e que, sendo ele o meu namorado, não podia escusar-se a estar comigo em família. Discutimos. Contudo, e porque estávamos apaixonados, fizemos as pazes, reconciliámo-nos e acabámos por desvalorizar a situação. Só que estas coisas deixam marcas, fazem cicatrizes. E os ressentimentos que daí resultam ficam à superfície, só à espera do momento certo e do pretexto ideal para se revelarem.

O episódio do jantar passou a ser uma presença latente na nossa relação. Não aludíamos a ele explicitamente, mas passámos a conversar com muito mais frequência sobre política e ideologias. Nós, que desde o início nos tínhamos sintonizado tão bem, de repente começámos a chocar pela mais improvável das razões: os partidos em que votávamos. Se coincidíamos nos gostos musicais, nos prazeres gastronómicos, nas preferências de viagens ou até nas paixões clubísticas - somos ambos orgulhosos portistas -, começámos a sucumbir ao conflito ideológico que se instalou depois das revelações daquele jantar.

O Bernardo, um liberalista económico (porém, nos costumes sociais não é tão liberal assim), percebeu que eu tinha uma educação de esquerda aguerrida. O meu pai era comunista - mais: o meu pai chegou a andar na clandestinidade, durante a juventude, na militância do Partido Comunista, nos últimos anos do antigo regime, da "velha senhora", como ele gosta de dizer, quando éramos governados "pelo doutor cabeça de abóbora", como ele chamava a Marcello Caetano. Quando se é educado num meio assim, a questão política deixa de ter só a ver com o partido A ou B e com a lógica argumentativa de determinada ideologia. A questão torna-se familiar, clubista, religiosa. Lembro-me sempre de um episódio que o meu pai contava de uma senhora, em Moscovo, ter atacado o próprio marido com uma faca de cozinha só porque o homem, certo dia, se queixou do camarada Stalin. Parece surreal, mas é verdadeiro. No contexto certo, com uma educação como a que eu tive, a política torna-se crença.

Quando se aproximaram as eleições de 2022, a nossa relação já estava muito debilitada. Mas debilitada de uma maneira irritante, como se vivêssemos num ciclo constante de amor-ódio: amávamo-nos em praticamente tudo, mas não nos suportávamos quando o assunto era política, ideologia, partidos. Durante essa campanha eleitoral, começámos a tornar-nos inimigos. É até estranho dizer isto, porque eu gostava mesmo muito do Bernardo e sei que ele também era verdadeiramente apaixonado por mim, mas tornou-se insuportável conviver com alguém que constantemente destratava e desconsiderava tudo aquilo em que eu acredito. A gota de água foi quando me disse que compreendia perfeitamente "aqueles que votam no Ventura", porque, segundo ele, "está toda a gente farta do socialismo". Peguei em mim, saí porta fora e nunca mais lhe falei. E ele também não voltou a dar sinais de vida. Não sei em quem é que ele votou desta vez. Só espero que esteja bem, mas que não me apareça à frente. Nunca mais.

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