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Prazeres

"É enriquecedor termos dúvidas sobre o sítio de onde somos"

Djaimilia Pereira de Almeida é uma voz literária a que vale a pena estar atenta. As suas estórias atravessam a identidade, a raça e o género, que nunca foram debates tão atuais e prementes. Acaba de lançar As Telefones.

12 de agosto de 2020 às 07:00 Patrícia Barnabé

Deu nas vistas há cinco anos quando lançou Esse Cabelo (este ano editado nos EUA pela Tin House Books) e nele contava as aventuras de uma menina que, como ela, foi trazida de África pelos pais para viver na Europa. No seu caso, nasceu em Angola e veio para Lisboa com apenas três anos. A sua estreia no romance foi uma forma de falar de racismo, identidade, feminismo, bandeiras que a movem mas sobre as quais paira com uma leveza que não compromete o seu pacifismo. Temas urgentes de desigualdades de séculos que se tornam hoje movimentos sociais à escala global cada vez mais inevitáveis quando sabemos do aumento dos números da violência doméstica durante a pandemia, ou assistimos ao nascimento do movimento #blacklivesmatter.

Os títulos que lhe seguiram foram cada vez mais dando nas vistas: Ajudar a Cair, sobre a vizinhança e a entreajuda foi adaptado ao teatro, o romance Luanda, Lisboa, Paraíso, sobre um pai e um filho acabados de chegar a Lisboa, vindos de Luanda com uma junta médica. Valeu-lhe três prémios, dois literários, da Fundação Inês de Castro e da Fundação Eça de Queiroz, e o Prêmio Oceanos, e foi finalista do Grande Prémio de Romance e Novela APE e do PEN Clube Narrativa. O ano passado presenteou-nos com Pintado com o Pé, textos dispersos, que vão da crónica ao conto e ao ensaio breve, e com Visão das Plantas, título inspirado n’Os Pescadores de Raul Brandão. Este ano chega-nos As Telefones que se apresenta como "uma homenagem ao género literário da diáspora, o telefonema", onde mãe e filha crescem juntas vida fora, no amor e na distância, uma em Angola outra em Portugal, ligadas pelas chamadas telefónicas e pelas memórias das poucas vezes que se encontram, reconhecendo-se como íntimas estranhas e ligadas pela visceralidade da biologia e do afecto. Foi a propósito deste novo livro que conversámos por e-mail:

O que a levou à escrita foi uma urgência ou uma descoberta? Conte-nos como aconteceu esse amor às palavras e aos livros.

Depois de um longo hiato, em que esqueci de que gostava de escrever, voltei a descobrir o gosto de escrever, por volta dos 30 anos. Não foi uma urgência, foi mais parecido com reencontrar uma pessoa de que me tinha esquecido.

Fez Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa e doutorou-se em Teoria da Literatura. Fale-me dos seus autores nacionais de eleição, e porque os elege, e de outras referências literárias e estéticas: que a inspiram para a escrita, mas ainda mais para a vida.

Tenho gostos variados. Na literatura, Gustave Flaubert é o meu autor favorito. Mas a arte sem a qual não conseguiria viver é a música.

Djaimilia Pereira de Almeida
Djaimilia Pereira de Almeida Foto: D.R.

Esse Cabelo foi a sua estreia, em 2015, uma estória que nos encaminha para temas urgentes como o racismo, o feminismo e a identidade. Sabemos que a escrita raramente escapa à biografia de quem escreve, por isso, a pergunta inevitável: o quanto de si está nos seus livros? Em quais e de que forma?

Julgo que há um pouco de mim em todos os livros que escrevi (mas sou suspeita para o declarar), e também muito pouco de mim em todos eles. De algum modo, sinto que sou todas as personagens e nenhuma delas. Todas são alguém que conheço ou conheci e, ao mesmo tempo, desconhecidos.

Este livro, As Telefones, aborda essa questão de pertencimento, e como nos podemos sentir desterrados e afastados do que nos é próximo. Não li Luanda, Lisboa, Paraíso, mas o título indica um nomadismo de coração. A que paraíso se refere?

Luanda, Lisboa, Paraíso descreve a viagem de Cartola e Aquiles, pai e filho, de Luanda para Lisboa, no começo da década de 80. O paraíso, para eles, talvez fosse a sua ideia do país que imaginaram que iam encontrar. Mas, como em todas as viagens, essa ideia esfumou-se diante daquilo que encontraram.

Foto: D.R.

Solange às tantas escreve que: "Regressar a Luanda parece-se menos com voltar a casa do que com ser esmagado pela vida." Como é ter duas pátrias, é ter o coração em dois lados? Costuma visitar Luanda, e como é o seu regresso, o que encontra? 

Não vou a Luanda há vinte anos, mas passei lá muitos verões, na infância e adolescência. Não sei se terei duas pátrias, mas reconheço que é enriquecedor termos dúvidas sobre o sítio de onde somos.

Podemos imaginar as coisas más de ter de se sair de onde se nasce, mas diga-nos das coisas boas que lhe ocorram sobre essa condição plural e múltipla de se ser africana e europeia?

A principal vantagem talvez seja a tendência para não dar de barato algumas coisas que não costumamos questionar: o sentimento de pertença a um lugar, o modo como somos nele acolhidos, a nossa posição no mundo. Na minha posição, tudo isso é bastante instável e em aberto, o que me parece uma coisa benéfica, mesmo que desconfortável.

Nunca foi tão evidente, e por isso interessante, falar de identidade num mundo cada vez mais misturado. E a pandemia só parece ter acelerado certos debates, nomeadamente sobre raça e ecologia, que nos põem todos a partilhar um mesmo planeta, de igual para igual perante o futuro. O que lhe diz a sua sensibilidade que acontecerá num futuro com esta grande aderência ao movimento #blacklivesmatter e à preocupação ecológica?

Creio que é cedo para dizer o que acontecerá no futuro, e fazer previsões é certamente arriscado. Mas tenho grande optimismo em relação a esta geração tão jovem e tão empenhada, que se junta em torno daquilo que acredita ser importante. 

As Telefones leva-nos através da relação entre uma mãe e uma filha – forte e passional, complexa e até concorrencial, como talvez só exista por serem ambas mulheres. Concorda? Se sim, porquê?

Julgo que concordo. Filomena e Solange são mãe e filha, mas podia descrever a relação de cada uma com a outra como a de duas leoas a proteger as suas crias.

Numa outra altura Filomena diz: "Sabes que as filhas são as mães das mães". Concorda? Se sim, em que sentido?

Cada vez concordo mais, à medida que a minha mãe, e as mães em meu redor, vão envelhecendo. Em África, é muito habitual considerar-se que a filha mais velha é mãe dos seus pais e dos seus irmãos, chega até a ser tratada por ‘mãe’ pela sua mãe e pelo seu pai. Acho este costume muito bonito e sabedor.

Neste seu livro paira sempre a presença de um amante que pode levar a mãe de sua filha – sempre o lado sacrificial das mulheres pelos seus homens. Acha que isso tenderá a mudar com a equidade de género, que fará uma recalibragem cultural e criará mulheres mais independentes ou é uma coisa biológica, enraizada, inescapável para uma maioria?

Desejo que sim: Filomena é uma sonhadora e uma mulher que acredita num príncipe encantado. Solange não tanto, talvez o seu príncipe encantado seja Filomena.

Vagueia à vontade pela fisicalidade do amor, carnal ou filial – há uma altura em que escreve: "Dói-me o corpo todo ao desligar a chamada", a saudade dói no corpo?

No livro, essa frase surge a descrever a reação da filha depois de ouvir a voz da mãe ao telefone, não estando com ela há muitos anos. Precisava de acomodar no seu corpo a voz da mãe: a sugestão da presença daqueles que amamos, da sua voz, da sua respiração, quando eles não estão próximos, pode arrasar-nos.

Gosta de falar ao telefone?

Não gosto muito. Prefiro escrever às pessoas de que gosto.

E ainda escreve cartas?

Escrevo sim, muito. Correspondo-me por carta com várias pessoas com quem troco textos, imagens, etc.

Diga-nos uma coisa que pouca gente saiba sobre si e que tem imensa piada.

Sou uma belíssima cozinheira (muito vaidosa).

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