A voz do silêncio: o que se aprende num fim de semana sem abrir a boca

A Máxima foi experimentar dois dias de silêncio e yoga do Alma Retreats, na Herdade da Matinha, no Cercal, e não lhe apetecia (mesmo nada) voltar ao social e regressar a Lisboa. Às vezes, todos devíamos ser bichos do mato.

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19 de fevereiro de 2024 às 07:00 Patrícia Barnabé

"Mente focada e coração gentil", a frase do Dalai Lama não nos sai da cabeça depois do fim de semana em que descemos ao Alentejo, para receber um shot de boas energias, yoga e viagem interior. Para a grande maioria de nós, nas vidas atarefadas e rápidas em que somos agora obrigados a viver, fugir um par de dias para o recato da Natureza, sem nunca ter de fazer sala ou conversa de circunstância, soa a Paraíso. Assim, abandonámos sem dificuldade o telefone, a televisão e os jornais que levávamos, tudo o que nos atira para fora de nós e mergulhámos, um pouco mais fundo, no silêncio da nossa própria companhia.

À chegada, a meio da tarde de sexta, somos dez almas vindas de quotidianos cheios, e dos quatro cantos de Lisboa. Uma maioria de raparigas, de áreas tão díspares como Medicina, Engenharia, Comunicação ou Análise de Dados, também uma letónia que voou de Londres, de propósito, uma americana professora de yoga em Cascais e um jovem alemão geek da IA de férias em Portugal. A maioria do público dos retiros Alma é português e trabalha entre quatro paredes, na cidade, diz-nos Matilde Cunha Vaz que, à falta de conseguir mudar o mundo, depois de estudar Ciência Política e Relações Internacionais, com a ideia fixa de ser fotojornalista, aventurou-se no Nepal num projeto de voluntariado: "Adoro viajar e queria contribuir", diz. Depressa percebeu que a Fotografia é "demasiado solitária", por isso resolveu experimentar equipas no Jornalismo ou na Publicidade, mas só foi verdadeiramente feliz na organização de eventos de bem-estar. Atleta de alta competição no voleibol e nos cavalos, os seus primeiros anos de yoga foram de "amor-ódio", mas criou o Alma em 2019, e começou a meter o nariz em temas de desenvolvimento pessoal e coaching: "Aprender a controlar o bem-estar, e a minha vida, não deixar que as coisas me afetem tanto. Como não tinha companhia para ir a estas coisas, resolvi criar os meus eventos."

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O retiro passa-se entre os quartos, no pinhal que marca o fim do grande jardim que é a Herdade da Matinha, e a shala mesmo ao lado, uma espécie de cabana hexagonal, janelas todas à volta, à medida de uma prática isolada e aconchegada de yoga. Dali, assistimos o sol espreitar no recortado das pequenas serras, pela manhã, e observamos um grande rebanho de ovelhas nos seus chocalhos a atravessar com muita calma o verde vivo da planície, ao fim do dia. A alemã Lisette van der Walk, professora de yoga transformativo, dá as cinco aulas de yoga do programa: "Quantas vezes temos tempo para ouvir realmente o que se passa no nosso corpo físico e emocional?", lança. "Numa sociedade dominada pelo yang, há um apelo à escuta profunda e à quietude. [O taoismo descreve duas forças, opostas e complementares, existentes em todas as coisas: o yin é o princípio da noite, a lua, a passividade e a absorção, enquanto o yang é o princípio do dia, do sol, da luz e da atividade]. O stress diário tem impacto no nosso corpo, mente e alma e não temos consciência de que perdemos as ligações mais profundas. A nossa respiração torna-se superficial, os músculos e rosto ficam tensos e as emoções ficam presas na cabeça e o coração a 'girar'."

O yoga transformativo, conhecido por Hatha ou Yin ou Somático, foi concebido para "criar facilidade, espaço, para se reconectar com a sabedoria do corpo, para rejuvenescer, clarear a mente, abrir o coração, regenerar o sistema nervoso e permitir que a cura energética ocorra", explica a professora. É uma prática de yoga "muito portátil, profunda, mas muito suave para todos os corpos. Só é preciso ter coragem para ouvir profundamente e reclamar a sua soberania". Assim, Lisette cumpre a difícil tarefa de dar aulas a alunos diferentes, uns que praticam há duas décadas e outros que acabaram de chegar. Também deu um pequeno, e curioso, workshop sobre trauma: "O corpo reage naturalmente e treme para expulsar o stress", explica Lisette, "avisa quando não quer ir onde queres que ele vá. Hoje estamos mais conscientes do trauma, ele nunca está finalizado, pode ser um trauma de guerra ou um pequeno que guardamos de quando caímos do triciclo. O mundo está muito intenso e esta é mais uma ferramenta para nos proteger."

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Nos dois dias, amanhecemos cedo e, em jejum, fazemos journaling orientados por Mariana Costa, do Alma retreats. Convida-nos a tirar dez minutos do nosso dia, como rotina ou fora dela, para a reflexão, e passar algumas ideias, pensamentos, sentimentos para o papel. No fundo, respondemos a perguntas que procuram centrar-nos nas nossas existências, para tornar claras intenções ou vontades, estabelecer metas e limites, fazer balanços ou contabilizar gratidões várias. "São perguntas a que respondes sobre o teu passado, presente, o que queres para o futuro, ou frases que guiam, coisas más que nos preocupam, alegrias, coisas que não sabes que sabes. Ajuda-nos a dar uma nova narrativa", explica Mariana, às oito da manhã, numa sala aquecida no meio da Natureza, enquanto a passarada acorda lá fora. "Ensina-nos a reconhecer emoções, a ter um sentido de controle, e a não reagir sempre. É um exercício de auto-reflexão e de bem-estar." A ideia é ser um momento pessoal, não tem de ser um hábito diário, só precisa ser consistente. E, "devemos ser gentis connosco, não precisamos de mais criticismo no mundo."

O silêncio ajuda-nos a estar mais atentos. Não só aos pormenores à nossa volta, a Natureza a respirar - e o retiro também inclui um passeio na floresta -, mas ao nosso interior, ensina-nos a escutar, a reparar. E experimentamos um pouco do que seria uma vida monástica, onde menos é mais, e se perde a noção do tempo, os sentidos despertam e aguçam-se, tornando-se mais sensíveis e sofisticados. "Sentir é olhar e olhar é sentir", lemos no livro de Iyengar, o responsável pelo boom do yoga no Ocidente, em meados do século passado. Recorda que os yogis, em maior ou menor grau, são como os gatos a espreguiçarem-se, para eles o relaxamento é meditação, um esforço sem esforço. Claro que, nesta viagem, ajudam os quartos da Herdade da Matinha, apesar de partilhados pelos participantes, estão bem aquecidos, iluminados, decorados, e têm uma varanda sobre o verde. Ali, o luxo é o conforto e as suas salas comuns enchem-se de almofadas e gargalhadas de famílias felizes, e daquele cheiro a segurança que vem das lareiras. As refeições são vegetarianas e frugais, estão incluídas no preço, e os melhores são os pratos de tacho, quentinhos e caseiros.

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Os retiros Alma também costumam juntar outros desportos ao yoga, como o surf, hoje mais comum, e o wakeboard, por exemplo. Ou viagens: vão a Bali ou ao Sri Lanka, por exemplo. Antes, os retiros eram "coisa de hippies e professores de yoga", garceja Matilde, ela quis "juntar pessoas de todo o lado". Por isso, este é um retiro tão transversal e acessível, que abraça todos e põe à vontade. É ideal para quem nunca experimentou estas vidas, e os preços são igualmente humanistas e justos, longe dos encontros de ricas desocupadas e aborrecidas com a existência. Num tempo em que tudo se torna lucro, é raríssimo: "Sempre quis que este trabalho fosse acessível, mesmo que seja um negócio difícil, a ideia era criar e manter este tipo de comunidade, e chegar a mais pessoas que procurarem este equilíbrio, conforto e um pouco de desapego." Lembramo-nos de, em adolescente, ler um livro de um monge tibetano onde este avisava: desconfie sempre de quem cobra muito por um trabalho espiritual.

Tivémos sempre disponíveis, à entrada da shala, livros variados sobre temas espirituais, dos mais esotéricos, aos correntes, que partem do ensaio. Sem outras distrações, depois da prática estiramo-nos ao sol e devoramos quase dois livros, um por dia, um do Dalai Lama, outro de Iyengar. No sábado, éramos dez a ler na piscina, só trocámos olhares, e sorrisos inevitáveis, os cães da herdade traziam-nos laranjas que roubavam nas árvores e bolas de borracha desfeitas a pedir brincadeira. Estávamos juntas, mas em silêncio. Só no almoço de domingo, antes de regressar, trocámos ideias, mas já não precisámos de muitas apresentações, fomo-nos conhecendo confortavelmente no silêncio que é a maior prova de intimidade.

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Retiro Alma de yoga & silêncio na Herdade da Matinha, Cercal, Alentejo: 430 € ou 385€, se for marcado cedo.

https://retreatsalma.com

https://www.instagram.com/retreatsalma

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