Foi meio século de domínio absoluto, nas músicas do espírito e da alma, das causas e dos combates. Os números e as honrarias Aretha Franklin alcançou só impressionam até se começar a conhecer o contexto desta mulher cuja voz foi elevada a “recurso natural”. Voltamos a recordá-la na semana em que artistas como Janelle Monáe, Céline Dion, John Legend lhe prestaram mais uma homenagem.
Aretha Franklin
Foto: Getty Images15 de janeiro de 2019 às 07:00 João Gobern
Tornou-se prática habitual o agradecimento do mundo académico aos agentes artísticos e culturais através da concessão, pelas universidades, dos doutoramentos honoris causa.
Uns são mais sonantes do que outros e aquele que distinguiu Aretha Louise Franklin [Memphis, no Tennessee, 1942 - Detroit, no Michigan, 2018 – era certamente especial, por ter tido origem em Harvard, uma das universidades da Ivy League norte-americana, berço escolar de três presidentes (John F. Kennedy, George W. Bush e Barack Obama) e de muitos notáveis (Benazir Bhutto, Henry Kissinger, Helen Keller, Bill Gates,Conan O’Brien, Matt Damon e Natalie Portman, entre tantos outros).
Ainda mais porque a jovem Aretha abandonou cedo os estudos, em que nunca andou perto do brilhantismo, trocados de vez por uma carreira que começou também cedo: gravou o primeiro disco, com apenas 14 anos, depois de se ter revelado na New Bethel Baptist Church em que o pastor era o pai, C.L. Franklin, e já depois de se ter tornado mãe, pela primeira vez, aos 13 anos. Também há notícia de muitos artistas "abraçados" pelos líderes inquilinos da Casa Branca: acontece que Aretha foi recebida com pompa e circunstância por Ronald Reagan e por George W. Bush, sendo também convocada para cantar nas tomadas de posse de Bill Clinton e de Barack Obama, homens que, politicamente, pouco tinham em comum.
Mais difícil: a voz da cantora foi, de um modo invulgar e se não inédito, considerada oficialmente um "recurso natural" do estado do Michigan, dando força de lei ao que já sabia quem a escutava: que era uma força da Natureza.
Nem tudo foram rosas e honrarias na vida desta mulher única que detém o recorde de canções classificadas no top da Billboard, nada menos de 112, que gravou 42 álbuns e vendeu mais de 75 milhões de discos, que venceu 18 Grammies, que foi a primeira representante do seu sexo a "entrar" no Rock Hall of Fame e que foi eleita como a melhor das cantoras da era do rock pela Rolling Stone. Aos 28 anos, Aretha já era mãe de quatro filhos, cada um deles fruto de uma relação diferente.
Casou duas vezes, nenhuma delas particularmente feliz: primeiro, com Ted White (o matrimónio durou de 1961 a 1969), ligação que terminou quando se percebeu que a Lady Soul foi, e de forma prolongada, alvo de violência doméstica; depois, com Glynn Turman (1978-1984) que a deixou para se fixar em Hollywood. Viu morrer os três irmãos, Erma, Cecil e Carolyn, todos vitimados pelo cancro, doença que acabaria por causar a sua própria morte. Assistiu à longa agonia do pai (decisivo no percurso musical da cantora quando a iniciou no gospel) que não voltou a sair da cama depois de ter sido baleado durante um assalto a sua casa. Foram cinco anos de sofrimento em que o Reverendo Franklin foi acompanhado em casa pela filha.
A "coleção" de mortos de Aretha não se cingia à família: perdeu a que foi a sua agente durante décadas, Ruth Bowen, e os produtores que a ajudaram a subir ao "trono" de que não seria desalojada, Jerry Wexler, Arif Mardin e Luther Vandross.
Segundo um dos seus biógrafos, David Ritz, alternava alegrias incontroláveis e nostalgias profundas. A sua luta contra o excesso de peso estendeu-se por décadas, sendo comentada – sempre por terceiros, porque pouco se "confessava" em público – a sua adesão entusiástica a múltiplas dietas e regimes para, logo a seguir, voltar a comer sem qualquer espécie de regras ou de limites.
Dona de uma carreira única, coube aos irmãos e a amigos, como Bowen e Wexler traçar o perfil de Miss Franklin: de uma generosidade desregrada que a levou, muitas vezes, a prometer (presenças solidárias, donativos, mobilização de conhecidos ou famosos) mais do que podia cumprir, sempre carregou consigo a fama de uma excessiva dependência dos estados de alma. Se estava bem, brilhava de forma ímpar – como sucedeu na noite da cerimónia dos Grammy em que teve que substituir Luciano Pavarotti, sendo avisada vinte minutos antes de entrar em cena, aceitando e acabando por cantar – suprema ousadia – Nessun Dorma com direito a ovação de pé.
Há cerca de três anos, quando Carole King foi homenageada, Aretha apareceu de surpresa para "devolver" Natural Woman à autora original. As imagens revelam a surpresa da criadora de You’ve Got A Friend com a presença da Diva que arrebatou todos e que emocionou, até às lágrimas, o então presidente Obama (o vídeo pode ser visto no Youtube). No pólo oposto, Aretha cancelou um sem-número de concertos, em muitos casos porque não conseguiu superar o medo de voar, o que lhe cortou digressões na Europa, na Ásia, na América Latina e em muitas cidades dos Estados Unidos. Mais do que isso, havia os momentos depressivos que a afligiam de forma cíclica: aí, nem as suas causas religiosas e políticas conseguiam arrancá-la de casa, chegando a faltar a cerimónias fúnebres em que se tinha comprometido a cantar.
Ainda em Respect – The Life Of Aretha Franklin, editado no final de 2014, à revelia da artista, David Ritz explica como a simples contratação de um contabilista teria evitado muitos percalços a quem perdeu muito dinheiro por não confiar em ninguém (havendo, até, uma fase em que subia ao palco com a sua carteira de mão, com o dinheiro lá dentro, por recear que lha roubassem do camarim). Aretha chegou a ser processada por falhas nos pagamentos dos seus luxos, mas conseguiu sempre provar que se tratava de desnorte financeiro e não de efetiva vontade de enveredar pelos calotes. Ruth Bowen recorda, a título de exemplo, ter encontrado um cheque de vinte mil dólares (provavelmente parte de um cachet) a servir de folha de apontamentos junto ao telefone da casa em que a cantora vivia.
A voz como arma
Em março de 2017, meses antes de lançar aquele que seria o seu último disco (com o título A Brand New Me, "promessa" que agora se confirma vã), Aretha festejou 75 anos e, em simultâneo, assinalou o meio século do seu mais poderoso cartão-de-visita: Respect. Ainda hoje, quando entram em campo ou em debate causas tão poderosas como a igualdade entre raças ou, sobretudo, a libertação feminina, é esta a direção que escolhemos para ilustrar musicalmente estas questões. O curioso é que a canção foi escrita e interpretada por outros dos grandes, o precocemente desparecido Otis Redding, mas este não conseguiu evitar que aquela "mulher-vulcão", verdadeiramente "possuída" pelo talento, se apropriasse do tema e o expandisse até à eternidade. Esse catalisador corresponde à sua fase mais criativa, vivida quando integrava o catálogo da editora Atlantic, mais propriamente entre 1967 e 1976.
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Foi aí, com discos assertivos e imaculados, em estúdio e em palco, discorrendo entre a soul e o gospel, que fixou a fasquia que, até hoje, nunca foi ultrapassada. Se Aretha navegou muitas vezes entre estilos, do R&B ao jazz, do gospel à Broadway, da pop ao disco-sound, quase com a mesma impressionante cadência, motivada pela permanente insatisfação com que foi acumulando produtores, é mesmo nos "espirituais" e na "música da alma" que ganha a coroa, nunca contestada. Num percurso que levava agora mais de 60 anos de actividade profissional, o gospel foi o seu primeiro amor e a ele regressou, de tempos a tempos, acabando por ser comparada à maior referência do género, Mahalia Jackson.
Nos domínios da soul, vale a pena comparar o seu caso com o dos intérpretes masculinos: o domínio pode ser reclamado, sempre com argumentos de peso para cada um dos aspirantes, pelo já citado Otis Redding e também por Sam Cooke, Al Green, James Brown, Smokey Robinson, Stevie Wonder e, até para alguns, por Michael Jackson. Se abrirmos as candidaturas aos que nunca se fixaram dentro de fronteiras, tornar-se-á justo acrescentar Ray Charles e Prince. Quando nos viramos para as senhoras, não há quem faça sombra a Aretha Franklin. Depois, teve a perspicácia de cantar tudo e todos: The Rolling Stones, The Beatles, Stephen Stills, Leon Russell, Elton John, Willie Nelson, Robbie Robertson, Paul Simon, Carole King, Gerry Goffin e, até, Leonard Cohen. Mas também Leonard Bernstein e Stephen Sondheim. Ou Burt Bacharach e Hal David. Lugar especial para o que ia buscar aos seus "irmãos" – Redding, Brown, Cooke, Charles, Wonder e Robinson, a que se somam Curtis Mayfield, Bobby Womack, Nickolas Ashford e Valerie Simpson, Ronnie Shannon ou Clyde Otis. Quando apontou aos blues, bateu à porta de Big Bill Broonzy e de B.B. King. Quando fez finca-pé no orgulho racial, recorreu a Nina Simone. E não se esqueceu de Duke Ellington.
Feitio de Diva
Muito cedo, Miss Franklin impôs a quem com ela trabalhou este exato tratamento, desmentindo a proverbial afetividade dos artistas nascidos no gospel e impondo um perfil de diva que sempre lhe agradou. No capítulo das amizades, reza a lenda que dando-se bem com os homens – Smokey Robinson era amigo de infância, Billy Preston tocou e cantou na mesma igreja, Donny Hathaway fez duetos com ela –, já não tolerava proximidades com as potenciais rivais.
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Que o digam Diana Ross e Dionne Warwick, que só muito tarde foram incluídas no círculo de Miss Franklin, o mesmo acontecendo com Mavis Staples. Barbra Streisand, contratada pela Columbia quase ao mesmo tempo que Aretha, foi sempre um alvo a abater e objecto de um despeito radical, motivado não só pelas suas vendas iniciais, muito superiores às de Aretha, mas também pelo seu êxito num outro "departamento" em que a criadora de Freeway Of Love prometeu muito e nunca cumpriu, o Cinema.
Desde um biopic em que se representaria a si mesma, a cantora anunciou estar "tudo assente", em diferentes fases, para encarnar Josephine Baker ou Mahalia Jackson. Nunca foi adiante, limitando-se a duas aparições, fugazes mas marcantes, nos dois filmes dos Blues Brothers, e mais duas escalas na Televisão, uma delas na série Murphy Brown. Último exemplo dos despeitos da monarca: Whitney Houston conhecia Aretha desde os cinco anos, uma vez que a mãe (Cissy Houston) a trouxe consigo para o estúdio sempre que foi chamada a fazer coros para Aretha.
A miúda chamava-lhe mesmo Tia Ree (de Aretha). Ora, quando Whitney conseguiu um contrato com a editora Arista, a mesma em que então gravava Miss Franklin, esta infernizou a vida ao patrão e mentor da empresa, Clive Davis, por considerar condenáveis as atenções dedicadas a quem tinha acabado de chegar.
Hoje, tudo isto passa para o capítulo das curiosidades. Porque, para a história, da música e das pessoas, aquilo que conta é mesmo a voz que nos arrebatou, comoveu e estarreceu. Pode ser que ainda apareça alguém para "fazer frente" a Aretha Louise Franklin. Mas nunca terá o mesmo lastro, dificilmente poderá aspirar à personificação – mesmo involuntária – das lutas que ela acabou a simbolizar. Só por milagre ou improvável alinhamento cósmico conseguirá reunir, num só corpo e numa só alma, a dose desmedida de grandezas e tragédias que se concentraram nesta mulher. E o espelho de tudo isso era, certamente, a sua voz.
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Foto: Getty Images1 de 5 /Aretha Franklin | 1968, nos ensaios para o espetáculo Soul Together que viria a acontecer na Madison Square Garden, Nova Iorque.
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Foto: Getty Images2 de 5 /Aretha Franklin | A artista a dançar para as câmaras em maio de 1968
Foto: Getty Images3 de 5 /Aretha Franklin | Retrato da cantora feito em janeiro de 1977
Foto: Getty Images4 de 5 /Aretha Franklin | Novembro de 1980
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Foto: Getty Images5 de 5 /Aretha Franklin | Concerto no Fundação contra a Sida de Elton John em Nova Iorque, novembro de 2017.