"Ah, só foi um surtozinho?!? Pois, foi ‘só um surtozinho’ que matou uma adolescente e levou ao internamento de muitas mais, mas caso a vacinação abrande pode ter a certeza que será um surtozão com consequências gravíssimas." O pediatra Mário Cordeiro (Lisboa, 1955) fala num tom de voz claramente irritado porque, confessa, "não tem um pingo de paciência, nem de tolerância" para com aqueles que desejam um retrocesso civilizacional, fechando os ouvidos à Ciência e deitando por terra aquilo que foi construído pelo esforço de tantos, ao longo de décadas. E como é que podia deixar de se indignar quando sabe que, em Portugal, aumentou o número de crianças não vacinadas: dos 85.500 bebés que nasceram, em 2015, 4.275 não foram vacinados. Ele que já viu muitas morrer e ficar com sequelas graves, na sequência de doenças que poderiam ter sido evitadas. Para Mário Cordeiro, é um problema de ignorância e de estupidez, contra as quais, infelizmente, diz, não há vacina. Filho de um pediatra que esteve fortemente envolvido na implementação de um Plano Nacional de Vacinação (PNV) que salvou milhares de vidas, tem consciência do salto espantoso que Portugal deu desde meados do século passado. Nos anos 60 (distantes, mas não tanto, porque é o ano em que eu nasci!), morriam por cá mais de 20 mil crianças e adolescentes. Número que hoje, graças às vacinas, é de cerca de 500. Quarenta vezes menos, mas a descida foi progressiva e, em 1980, tinha-se reduzido para um quarto, cerca de cinco mil óbitos. E continua: "As doenças evitáveis pela vacinação, pelo contrário, sendo cerca de 1100, em 1960, desceram com a implementação do PNV e, em 1980, eram apenas algumas dezenas e a partir do final do século XX passaram a zero."
"É pena não haver vacina para a ignorância (associada à vacina contra a estupidez!)." Mário Cordeiro
"É pena não haver vacina para a ignorância (associada à vacina contra a estupidez!)." Mário Cordeiro
Indigna-se, de novo: "Será que é preciso dizer mais alguma coisa?" De facto, não é! Recomenda que, se sentirem alguma hesitação em vacinar os seus filhos, perguntem aos seus pais, avós da criança que querem privar de protecção, que lhes conte a história do colega de aula vítima de poliomielite, do tio que morreu com sarampo (eu tive um!) ou do irmão que sucumbiu a uma meningite. "Não suporto a arrogância do mundo ocidental que, do alto da sua prosperidade, tem a ilusão de que consegue manter longe de si a doença. A memória colectiva apaga as histórias que ainda são tão recentes", insiste.
De onde vêm as teorias da conspiração
De onde vêm estas teorias da conspiração que insistem em ligar as vacinas aos interesses de multinacionais farmacêuticas ou a efeitos secundários sem qualquer base científica, propagadas através das redes sociais sem contraditório? O fenómeno é conhecido e os investigadores que o estudam garantem que quanto mais complexo é o mundo, mais propício é o terreno a explicações simples, a equações de primeiro grau de que saltam as incógnitas que nos fazem sentir perdidos. Mário Cordeiro concorda: "A ciência demora tempo e estas teorias oferecem certezas. Quando um cientista hesita, quando diz que ainda não se sabe, essa informação assusta-nos e preferimos pensar que ‘afinal, ele não sabe nada’. Simplesmente, a ciência, para ser segura, precisa de ser lenta e metódica, para chegar a certezas." Como as que, 250 anos depois das primeiras vacinas administradas no mundo ocidental, temos em relação à vacinação. E se é desejável que os pais procurem respostas para as suas dúvidas, já não é legítimo que esqueçam os seus deveres para com os filhos, provocando-lhes um verdadeiro maltrato. "Vacinar é, no meu entender, uma questão de Direitos Humanos (e, portanto, uma questão de Direitos da Criança), para lá da defesa da saúde pública e da promoção da saúde individual e da comunidade", não tem dúvida em afirmar.
Que os pais queiram tomar decisões informadas é uma questão completamente diferente, mas que o façam, argumenta Mário Cordeiro, com base em informação científica e rigorosa que não tenha origem no "diz-que-disse", ou no último post numa qualquer rede social, mesmo que o seu autor alegue que resulta de uma experiência pessoal. "É muito fácil tornar mentiras em fenómenos ‘virais’", lembra. Para tornar este exercício de informação mais fácil, acaba de ser publicado o livro da sua autoria, A Verdade e a Mentira sobre as Vacinas (Desassossego, 2017), em que explica, de forma clara e acessível, mas sem condescendências, tudo o que os pais precisam de saber para tomar a melhor decisão para os seus filhos. Porque, recorda, temos de ser também capazes de "pensar em como lidaremos connosco próprios e com os nossos filhos se suceder uma fatalidade que, afinal, poderíamos ter prevenido".
Morte e vida em números
Entre 1956 e 1965 registaram-se, em Portugal, mais de 40 mil casos de tosse convulsa, poliomielite, tétano e difteria. Entre 2006 e 2015, o número total desceu para 913, de que resultaram "apenas" 23 mortes, com zero casos de poliomielite e zero casos de difteria, o que se traduz em conquistas extraordinárias, mas não irreversíveis.
O que é uma reacção grave à vacina?
"Uma reacção grave, em termos de impedir a vacinação, é uma urticária grande ou um choque anafiláctico. As crianças que têm reacções alérgicas deste tipo não devem receber uma nova dose da vacina que as provocou, a não ser em meio hospitalar e depois de analisado o caso por um médico especializado. Mas estamos a falar de casos raríssimos e não façamos disso lei!", esclarece Mário Cordeiro.
Como é que uma criança fica imunizada?
"As vacinas utilizam os mesmos agentes causadores das doenças, mas inactivados, atenuados, modificados ou utilizados apenas em parte. Quando a criança é vacinada, o seu organismo produz anticorpos para aquele agente específico. Assim, ao entrar em contacto com o vírus ou a bactéria causadores da doença, o seu filho está pronto para os atacar", assegura o pediatra.