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Uma novela gráfica dedicada à sexualidade feminina

Com um olhar atento e mordaz, a artista sueca Liv Strömquist expõe, na novela gráfica ‘O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva’, as mais diversas tentativas de domar, limitar e padronizar o sexo feminino ao longo da História. Acaba de ser publicada em Portugal e é tão divertida como acutilante.

Foto: D.R.
22 de julho de 2021 Maria João Martins

A maionese não liga, os bolos não crescem, os banhos não são recomendados e a ida à praia, uma loucura. Durante séculos, as mulheres passaram às filhas uma lista de atividades a evitar durante a menstruação, essa fatalidade biológica de que nunca se devia falar a não ser em surdina. Sem qualquer fundamento científico, preceitos como estes fazem parte do conjunto de mitos culturalmente construídos abordados pela sueca Liv Strömquist na novela gráfica O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva, publicada em Portugal pela Bertrand.

A capa do livro ‘O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva’
A capa do livro ‘O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva’ Foto: D.R.

 Tão bem humorado como acutilante este livro que o britânico The Observer considerou "indómito, inteligente e essencial" mostra como, desde a mais remota Antiguidade, a vulva, a vagina, o clítoris, a menstruação e o orgasmo feminino têm vindo a ser sucessivamente punidos, patologizados e, claro, politizados por regimes de todo o tipo. Como demonstra a autora, o discurso varia conforme a conjuntura económica. Se são precisas mais mulheres no mercado de trabalho, a retórica sobre a síndrome pré-menstrual diminui de intensidade, mas recrudesce quando se pretende que elas fiquem mais em casa. "Curiosamente - escreve Liv - nunca descobri nenhum investigador ou médico que tenha dito que as mulheres não podem tomar conta das crianças por causa das suas perigosas flutuações hormonais."

 

Do mesmo modo, Liv demonstra que, século após século, todos os discursos sobre o corpo e a sexualidade feminina foram invariavelmente produzidos por homens, de Santo Agostinho à Inquisição, de Jean-Paul Sartre a Sigmund Freud, com consequências devastadoras na saúde e direitos das mulheres. Exemplo disso mesmo são os mitos construídos, ao longo dos séculos, em torno do prazer sexual feminino e do orgasmo. Liv colige algumas dessas afirmações repetidas mil e uma vezes por peritos médicos, autoridades de saúde e organizações várias: "As mulheres não desejam necessariamente ter um orgasmo cada vez que têm relações sexuais. Por vezes, elas querem apenas sentir o homem dentro de si, sentir proximidade e carinho" ou então: "Para algumas mulheres, ter prazer sexual não é o mesmo que ter um orgasmo, porque para elas esse prazer é maior do que o do orgasmo." A que se deve esta diferenciação? Porque é que as narrativas da sociedade sobre o orgasmo feminino e sobre o orgasmo masculino são diferentes - o primeiro é difícil de atingir, e não necessariamente importante para a mulher, enquanto o masculino é demasiado fácil de atingir e muito desejado pelo homem? E, no entanto, mostra Liv, nem sempre foi assim. Antes do movimento das Luzes, no século XVIII, não havia diferenciação de abordagem e considerava-se mesmo que o orgasmo era fundamental para que a mulher engravidasse. Não faltavam, pois, os manuais de parteiras, médicos e outros especialistas encartados ou não sobre o assunto. É o caso de A Obra-prima de Aristóteles, publicado em 1689, em que, entre outras afirmações, se postulava: "Sem orgasmo, o belo sexo nunca desejará o amplexo conjugal nem terá nele prazer, nem dele derivará a gravidez."

A autora da novela gáfica 'O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva’, Liv Strömquist
A autora da novela gáfica 'O Fruto Proibido - Uma História Cultural da Vulva’, Liv Strömquist Foto: Författarbild

 
Este silenciamento progressivo aplicou-se também ao clitóris, raramente referido em textos produzidos entre 1900 e 1950, e, no entanto, considerado uma jóia durante mais de 2000 anos: "Era muito comum, na literatura médica, não apontar nem designar o clitóris nas imagens dos genitais. Até 1981, ano da publicação do Tabers Cyclopedic Medical Dictionary (um enorme dicionário médico americano), o clitóris nunca era mencionado nas imagens da vulva."

 

Na tradição de cartunistas como Art Spiegelman (Maus) ou Marjane Satrapi (Persépolis), Liv Strömquist usa a novela gráfica como meio para expor, de uma forma sarcástica mas bem documentada, verdades desconfortáveis e colocar perguntas incómodas. Porque é que a vagina e toda a anatomia ginecológica feminina são tabu na sociedade? Porque é que a menstruação é estigmatizada na nossa cultura quando costumava ser algo sagrado para outros povos e épocas? Porque é que a sexualidade feminina é tão vigiada, punida e politizada? Com um olhar atento e mordaz, a artista sueca expõe as mais diversas tentativas de domar, limitar e padronizar o sexo feminino ao longo da História, que, após séculos e séculos de repressão sexual, continuam a encher as nossas cabeças com falsas conceções sobre os genitais femininos. 

Página do livro da autora sobre as mais diversas tentativas de domar, limitar e padronizar o sexo feminino ao longo da História.
Página do livro da autora sobre as mais diversas tentativas de domar, limitar e padronizar o sexo feminino ao longo da História. Foto: D.R.

 

Ativista, podcaster e cartunista, Liv Strömquist teve o primeiro êxito com Hundred Percent Fat (2005), seguindo-se Eistein’s Wife (2008) e Prince Charle’s Feelings (2010). Em setembro próximo, publicará uma nova novela gráfica, de título igualmente promissor: The Reddest Rose: Romantic Love from the Ancient Greeks to Reality TV.

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