Teresinha Landeiro: “Há assuntos só nossos, sobre os quais os homens não conseguem escrever tão bem.”
A fadista edita esta sexta, 23, o terceiro álbum de originais Para Dançar e Para Chorar, no qual, pela primeira vez, canta alguns compositores exteriores ao fado, como Maro, Mário Laginha, Milhanas ou Jorge Cruz, entre outros

Tinha apenas 12 anos quando pela primeira vez ouviu fado em Alfama, levada pela mão dos pais. Curiosamente, nenhum dos dois gostava tanto de fado, ao contrário da filha, Teresinha Landeiro, que depois de ouvir um disco de Ana Moura meteu na cabeça que também queria ser fadista. Começou a cantar na Mesa de Frades, também em pleno coração de Alfama, ainda adolescente e com apenas 18 anos, depois de se estrear a solo no CCB, assumiu-se como profissional. Aos 28 anos, mais que uma promessa é desde há muito uma das grandes certezas do fado, como mais uma vez prova no novo disco Para Dançar e Para Chorar, construído a partir da "festa e a tristeza" que, segundo a própria, a "habitam desde sempre". É também a primeira vez que Teresinha convida alguns dos seus contemporâneos para participar num álbum seu. Maro, Mário Laginha, Milhanas, Jorge Cruz, Beatriz Pessoa, Francisco Guimarães e Rita Dias são os convidados que integram este novo trabalho da fadista, que nesta entrevista à Máxima fala da sua relação com o fado e de como este, hoje, é um território, também, cada vez mais feminino.


Apesar de ser natural de Azeitão, pode-se dizer que Alfama é hoje uma casa para si?
Hoje é, mas quando vim cá pela primeira vez com 12 anos, para ouvir fados, foi assustador. Só perguntava à minha mãe porque é que me tinha trazido para um sítio tão escuro àquela hora (risos). O primeiro impacto foi estranho, até porque era uma Alfama muito diferente do bairro que é hoje, mas depois tornou-se numa paixão desmedida. Vivia em Azeitão e só queria vir para cá, estava sempre a implorar aos meus pais para me trazerem outra vez. A dada altura vínhamos aos fados todos os fins-de-semana e, aos poucos, Alfama tornou-se primeiro no meu lugar para sonhar e depois, sim, passou a ser casa.
E as pessoas do fado, como receberem a miúda de Azeitão? Também te fizeram sentir em casa ou eras vista como alguém de fora?

Tive a sorte de ser sempre muito bem recebida nas casas de fado e também pelas pessoas do bairro que eram frequentadoras desses locais e me cumprimentavam na rua, fazendo-me, lá está, sentir muito em casa. A Raquel Tavares foi uma das minhas madrinhas de fado, o que também ajudou, porque passava muito tempo com ela aqui no bairro e foram-se criando ligações. E depois o tempo que passava na Mesa de Frades também me permitiu criar ainda mais laços com as pessoas daqui.
Começou a cantar muito cedo nas casas de fado, mas quando é que decidiu realmente que ia viver do fado?
Percebi que isto ia acontecer desta forma por volta dos meus 18 anos. Antes não, era só uma coisa que gostava muito de fazer. Quando não temos um pai ou uma mãe artista não sabemos muito bem como é que estas coisas acontecem, nem quão próxima ou distante essa realidade está de nós. Nunca imaginei, quando era adolescente, que ser fadista era algo possível. Era muito difícil imaginar esse futuro, até porque queria ser médica, sempre foi esse o meu objetivo. Acabei por entrar para a universidade em engenharia biológica e essa altura coincide com um convite do Hélder Moutinho para atuar sozinha no Pequeno Auditório do CCB. Foi o meu primeiro concerto a solo, tinha 18 anos e não tinha a mínima noção que isso poderia ser o primeiro passo para algo mais, como aconteceu logo no final do espetáculo, quando sou convidada a ingressar na Sony Music para gravar um disco. Foi aí que percebi que as coisas estavam a ficar um bocado mais sérias do que aquilo que eu tinha imaginado. E hoje posso confessar que foi muito difícil aceitar que o fado seria o meu futuro, porque sempre fui uma pessoa que planeava tudo e eu nunca planeei isto (risos). Mas foi o melhor "desplano" que me podia ter acontecido, porque acabou por correr muito bem.

Como foi depois o choque com a realidade, esse assumir do fado como uma profissão?
Foi assim uma mistura de sensações, porque sempre tinha visto o fado como um escape para a minha vida do dia-a-dia, uma espécie de lugar seguro, de felicidade e de expansão. E quando decido fazer disto vida tive algumas dúvidas se o fado iria continuar a ter esse mesmo papel. Se não iria perder a magia pelo facto de passar a ser o meu trabalho, mas rapidamente percebi que não. Pelo contrário, ainda se tornou mais mágico, porque passei a trabalhar em algo que eu amava mesmo. Ainda continuei a estudar, acabei por tirar um curso de gestão, mas à medida que o tempo ia passando mais percebia que era mesmo isto que queria fazer para o resto da vida.


Assume-se como fadista, cantora ou artista?
Fadista, porque essa é a minha essência e é o fado que me deixa realmente feliz. Não quer dizer que não cante outras coisas, como faço neste novo disco, mas a minha alma é de fadista. Não há nada que me emocione mais do que ouvir uma guitarra portuguesa, uma viola e um baixo. E é isso que me dá vontade de cantar.
Os seus dois primeiros álbuns são muito tradicionais, mas este já foge um bocadinho a essa matriz mais convencional do fado. Porquê essa opção?

O primeiro então é feito a partir da base do fado (risos). Sim, este disco tem algumas viagens por outros territórios e não é por isso que deixo de ser purista em relação ao fado, que sou bastante. Defendo sempre que, acima de tudo, devemos ser muito sinceros naquilo que fazemos e na forma como o fazemos. Sou fadista, sim, mas também gosto de cantar outros estilos e é apenas isso que acontece neste disco. Quando são fados isso é indiscutível, mas também há espaço para outras canções que não são fado. E não posso afirmar que o são porque estaria a ir contra aquilo em que mais acredito e defendo. Ia estar a desvirtuar uma coisa só nossa, resultante de uma tradição oral que tem de ser preservada. Se começamos a vender gato por lebre às tantas tudo é fado e chegará um tempo em que já não vamos saber como era o fado.
Essa mudança não se deverá também ao facto de ter convidado para este disco alguns compositores exteriores ao fado?
Sem dúvida, era inevitável que a sonoridade mudasse. Até porque nem lhes iria pedir que escrevessem um fado. Trouxeram isso sim o cunho deles e a música deles para dentro deste disco, exatamente como eu pretendia. Não deixa de ser um álbum feito com uma formação clássica de fado, composta por Pedro de Castro na guitarra portuguesa, André Ramos na viola e Francisco Gaspar no baixo de guitarra, mas no qual entram também pontualmente outros instrumentos nalgumas faixas. E além de fado, tem também canções, folclore e outras coisas misturadas.

A dada altura começou também a escrever as suas próprias letras, neste disco são seis da sua autoria. Que importância tem isso no momento de as interpretar?
É muitíssimo importante, porque para mim a escrita tem quase o mesmo peso que o canto. Escrevo menos do que canto, mas é algo que me dá a mesma satisfação. Acho que já não conseguiria existir como fadista se não pudesse escrever ou, pelo menos, cantar o que tenho cá dentro. A escrita surge primeiro como uma defesa, porque a maior parte das letras eram demasiado adultas para a idade que tinha quando comecei a cantar, aos 12 ou 13 anos. E hoje escrevo porque sinto que há coisas que tenho para dizer e quero dize-las de determinada maneira que só eu é que sei.
E quando canta as palavras de outros autores, como também acontece neste disco, tenta orientá-los naquilo que quer dizer?
Não, apenas lhes falei sobre a temática do disco, para dançar e para chorar, e deixei aos autores a decisão para que lado queriam escrever. Eles é que escolheram se queriam mais dançar ou chorar (risos) e a partir daí não lhes disse mais nada, tiveram total liberdade. No final coube-me a mim tornar esses temas meus. Aliás foi esse o desafio que me propus quando desafiei outros autores a escrever para mim, que era algo que já não acontecia há muito tempo. E cantei-os todos porque me apaixonei realmente por cada um deles.

Neste disco há também algumas letras de um certo empoderamento feminino, que foge um pouco àquela imagem da mulher mais sofredora do fado tradicional…
Sim, tenho, mas essa imagem não corresponde à realidade. No fado há muito espaço para as mulheres e se em tempos não houve essa não é de todo a realidade atualmente. Grande parte do fado de hoje é feito por mulheres e têm sido elas a levar o fado para fora das fronteiras de Portugal. E há também cada vez mais mulheres, que não são necessariamente fadistas, a escrever para o fado. É muito bom, porque quando uma mulher cantar outra mulher há um maior entendimento, ao nível da linguagem, que é muito própria. Há assuntos só nossos, sobre os quais, eventualmente, os homens não conseguem escrever tão bem. E quero acreditar que esta nova geração está a abrir as portas cada vez mais mulheres. Até já começa a haver mais mulheres a tocar fado, o que até há pouco tempo não era nada comum. É um paradigma que está a mudar e ainda bem.
Quem são as suas maiores referências no fado?
A Amália Rodrigues, claro, por tudo o que representa. A Celeste Rodrigues, que foi uma grande amiga e me ensinou tanto. O João Braga, com quem ainda hoje partilho uma noite na Mesa de Frades e com quem converso muito sobre fado. O Rodrigo, também. São ambos dois fadistas muito experientes que ainda fazem muito pelo fado, no modo como incentivam os mais novos a continuar. A Maria da Fé… Estas são as minhas grandes referências, mas também tenho que falar da Ana Moura, porque foi devido a um disco dela que me apaixonei pelo fado.
