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Perder um irmão. “Sente-se que nos levaram uma parte de nós, a certeza que nunca mais a vida será a mesma”

A dor, as memórias e as histórias de quem perdeu alguém tão próximo como um irmão. Valter Marques, 35 anos, recorda o irmão Igor.

Foto: Vitolda Klein / Unsplash
16 de agosto de 2022 às 10:39 Rita Silva Avelar

Em entrevista por e-mail - encontra-se numa viagem de trabalho e dormiu poucas horas – Valter Marques, 35 anos, jornalista, mostra-se disponível para nos contar sobre aquela que diz ter sido a sua maior dor, a maior prova de resistência que passou na vida. Com 26 anos, em novembro de 2013, Valter perdia o seu irmão mais velho, o seu amigo, o seu companheiro, o cúmplice de todas as aventuras, do qual tinha apenas um ano e vinte dias de diferença, e com quem viveu o epítome da cumplicidade. Igor tinha 27 anos quando perdeu uma batalha contra uma doença oncológica, depois de uma luta de sete anos, onde foi sujeito a duas cirurgias e dezenas de tratamentos de quimioterapia.

O assunto é doloroso, mas as palavras saem-lhe escorreitas, certeiras e amargas, tudo misturado, e há uma sensação de paz permanente para quem as lê uma primeira vez com muita emoção. Começamos por lhe perguntar se perder um irmão é uma dor maior que qualquer outra perda, e Valter desarma-nos com uma dose de humanidade à primeira questão, com razão. "Não sei dizer e parece-me injusto avaliar o grau de dor perante a morte de alguém. Muitas vezes, depois do meu irmão falecer, a minha mãe, ao tentar consolar alguém que tinha perdido um pai, um tio, um irmão, dizia "agora imagina o que é perder um filho". Falei com ela para perceber que essas coisas não se medem. Somos incapazes de sentir pelos outros, por mais próximas que as mortes nos possam parecer", acredita. Valter foi o pilar da família, o apoio do irmão e dos pais, e vamos percebendo, ao longo desta conversa, que trata as palavras responsabilidade e maturidade por tu."Eu sei que foi a morte mais dura pela qual passei, algo que nos consome, nos paralisa totalmente. No meu caso, não foi tanto a perda física em si, o dia em que ele morre, mas o momento em que percebi que esse cenário era irreversível, depois de longos anos de luta contra um cancro".

Foram anos dolorosos, sete, em que a esperança acabou por chegar ao fim com um duro veredito. "Há um momento, em janeiro de 2012, em que, perante tamanho sofrimento do meu irmão, enquanto ele fazia um exame no IPO, eu fui procurar a médica e pedi-lhe para ser clara. E ela foi: "Dificilmente ainda cá estará no próximo Natal". Saí dali sem chão, mas tinha de ir ter com ele, para o ir buscar ao exame, e não poderia passar a imagem de transtorno. Felizmente, depois disso, íamos descansar em casa de uns amigos. Foi aí, que depois de o deixar lá, saí e fui chorar muito pela rua. Contei a duas pessoas mais próximas, nunca tive coragem de o dizer aos meus pais. Pode ter sido egoísta, mas, ao mesmo tempo que os poupava, não quis ter de lidar com o sofrimento antecipado deles, também." Valter e o irmão eram inseparáveis.

"Depois de ele falecer, acabei por ser vítima de uma depressão e de um processo de anorexia"

Aguentou tudo sozinho. "Foi esse percurso até à morte dele, que mais me pesou, com efeitos que se fizeram sentir: Depois de ele falecer – em novembro de 2013, superando as expetativas da médica -, acabei por ser vítima de uma depressão e de um processo de anorexia. Penso que foi tudo o que estava ali acumulado de um processo longo e pesado que veio ao de cima. Mais a morte física, claro, da pessoa que mais amei nesta vida."

É um amor que não se apaga, que não se substitui, como um desmembramento permanente. "Amava-o muito, muito. E era totalmente recíproco. Crescemos juntos, sempre, lado a lado. Brigávamos muito em criança, fazíamos a vida negra à minha mãe, mas se um chegasse a casa e o outro não estava, era a primeira coisa que perguntávamos era onde estava o outro. Não sabíamos passar um sem o outro. A partir do final da adolescência, já adultos, tínhamos as nossas discussões, mas já a nossa relação era de maior intimidade e amizade, sobretudo. Mesmo nas nossas diferenças. Com a doença, depois, passou a ser-me tudo, toda a minha prioridade. Olho para trás e acho que é, talvez, do que mais me posso orgulhar nesta vida: Estive lá, sempre, quando mais precisou. E sim, ficaram coisas por dizer. Ainda hoje tinha muitas coisas que lhe queria dizer. E penso nele, nas coisas mais simples da vida: Que bom seria que aqui estivesses a partilhar esta refeição comigo. Ias adorar."

"Perdeste a pessoa que mais amaste na vida e que dificilmente irás voltar a sentir aquele amor por alguém"

Valter teve tempo de se preparar, não que isso tenha sido menos difícil, embora acredite que uma morte inesperada é mais difícil de aceitar, "pois é algo que ninguém espera. Eu levava toda uma preparação, não fui apanhado de surpresa. Pelo que nos meses antes, já pensava muito como seria a vida na pós-morte dele, como teria de lidar com os meus pais, o que seria a vida depois daquele momento. Há, também, outro dado que ajudou naquela altura a lidar melhor: o sofrimento dele era tanto, tanto, que chegar ao fim da jornada dele no reino dos vivos talvez fosse, efetivamente, o melhor também para ele. Agora é uma saudade constante", afirma. "É sentires que aos 26 anos perdeste a pessoa que mais amaste na vida e que, dificilmente, irás voltar a sentir aquele amor por alguém. Que nos levaram uma parte de nós, a certeza que nunca mais a vida será a mesma perante esta perda. E não foi. Pensamos, porque passou ele e não passei eu por isto? Questiona-se tudo e mais alguma coisa."

O tempo passa mas não apaga, "acaba por facilitar este processo, organiza-nos emocionalmente e ensina-nos a seguir em frente. Acredito que isso aconteça com a maioria. Felizmente, sinto que depois do processo de anorexia e depressão, me consegui reorganizar. E recuperei alguma vontade de viver, o que não existia. Nunca pensei suicidar-me, mas dei a minha vida como perdida. "Que sentido faz isto sem ele?", perguntava-me", desabafa.

"Dificilmente, algo virá que seja tão pesado quanto isto."

Há uma sensação de injustiça, perante a perda, ou encontra-se, eventualmente, uma certa paz, um dia? Perguntamos. Eventualmente, diz Valter, "acaba por ser encontrar uma paz. Questiona-se, por vezes, por que raio isto aconteceu? Ele não merecia nada disto. E não, de facto. Mas a consciência de que as desgraças existem e também nos podem acontecer leva-nos a aceitar melhor. Olhamos para o lado, ligamos as TV’s e vemos as histórias de tantas pessoas iguais às nossas. Não é a lei natural da vida que um filho morra primeiro que um pai, mas não foi uma novidade, já existiu antes e existiu depois. Não faz de nós especiais." Diz, ainda assim, que há um forte ensinamento nesta perda. "Agora são dores que ficam para sempre e que tem apenas uma vantagem: A forma como encaramos os nossos problemas, depois disso. Dificilmente, algo virá que seja tão pesado quanto isto. E penso: "Se aguentaste a perda de alguém tão importante, não é isto que te vai derrotar". Colocamos quase tudo em perspetiva. Sofre-se menos perante os pequenos problemas, somos bem mais egoístas, também. Individualistas. E precisamos de aprender contrariar isso", acredita.

Por fim, pedimos-lhe para nos recordar de uma história que o tenha marcado , e que reflita muito bem a personalidade do seu irmão. "No outro dia, em conversa com uma amiga, ela dizia-me: "tu e o teu irmão tiveram sempre uma enorme capacidade de agregar pessoas, amigos, à vossa volta". Estávamos a falar de uma questão da minha vida pessoal e de como teria sempre o apoio de muitas pessoas, se fosse necessário. Mas ela acrescentou: "Não me lembro de um funeral como o do teu irmão, onde tantas pessoas, tantos amigos, chorassem tanto por gostarem efetivamente dele". De facto, o meu irmão tinha uma enorme capacidade agregadora de criar amigos, a qual eu invejo, pois, sobretudo, ele esforçava-se muito para os manter", lembra. "Cuidava muito das relações. Talvez o saber que o fim dele poderia ser mais próximo, o levasse a isso. Mas era uma coisa sem explicação e que não vi em mais ninguém. Ele tinha muitos amigos que choraram por ele e que ainda hoje eu sei que são apenas meus amigos, por eu ser irmão dele. Não tenho aquela capacidade para cuidar das relações, o que muito me entristece."

Lembra ainda outra história, essa só respeitante aos dois, um gesto que não esquecerá nunca. "Eu, com 23 anos, candidatei-me a presidente da freguesia da qual sou natural, Penhascoso. As expetativas de poder vencer eram muito reduzidas e à hora de almoço, com os meus pais, pedi-lhes para não se dirigirem ao local da contagem dos votos, pois não queria que, perante a eventual vitória da outra lista candidata, ficassem tristes ou a achar que seria muito triste para mim. "Eu aguento bem isso", disse eu. Os meus pais não foram, de facto, mas o meu irmão esteve lá sempre a sofrer pelos resultados", recorda, com carinho. "Não queria que eu estivesse ali sozinho num eventual momento de derrota. A qual não se verificou. Mas é uma história que me recordo muito. De tantas e tantas…" 

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