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"Dizer Agustina". Leonor Xavier lembra Agustina Bessa-Luís

O que mais dizer de Agustina, pela sua vida e morte, quando um coro nacional de vozes proclama a sua glória, o génio, o talento, a obra?

"Dizer Agustina". Leonor Xavier lembra Agustina Bessa-Luís
"Dizer Agustina". Leonor Xavier lembra Agustina Bessa-Luís Foto: Cofina Media
04 de junho de 2019 às 19:20 Máxima

Em alta voz o coro julga e acha e acrescenta opiniões e adjetivos. Posso dizer, sim, a falta de poder conversar com ela sobre pessoas e casos e roupas e superficialidades, para pensar e rir, levada pela sedução, a inteligência, a vivacidade, o entendimento do mundo. Dizer a falta da sua divertida maledicência. A ondulação da voz, conforme. Conheci-a no Rio de Janeiro, não fui sua íntima amiga, mas várias vezes a sós, e não só, estive com ela. Carinhosa, "com o afeto português, infinito como o mar," escrevia-me em 1985.

Os seus livros, bastante sublinhados, muitas vezes viajam entre a minha estante e a mesa de cabeceira. Vou lê-la, quando procuro descrições de cenários e gente, prazeroso divertimento possível, antes de adormecer.

Nesses anos 90, as entrevistas eram longas de quatro páginas, generosas de tempo, nelas o ambiente envolvia a fala e as pequenas narrativas de circunstância, a dizer a personalidade.

Assim, aqui em memória de Agustina, recordo estes momentos que a Máxima faz reviver nesta entrevista publicada em 1994:

"Escrevo para incomodar as pessoas"

É amarga e doce. Provoca temor, controvérsia, perplexidade. Tem um humor implacável que a leva a gargalhar e uma inteligência que nos faz doer. Não se limita por escolas nem por capelas. Exprime-se livremente sobre todas as coisas mas o que a interessa verdadeiramente é a natureza humana. É dela que nos fala nos seus livros revelando-nos segredos inesperados. Qual Sibila.

Uma vez, no Rio de Janeiro, a escritora Agustina Bessa-Luís foi entrevistada por um locutor de rádio que ignorava tudo dela e da sua obra. Por esses dias, o povo do Rio vivia o terror dos sequestros de crianças, amplamente noticiados pela imprensa. "Não vou contar o que fiz nem o que escrevi. Tenho muitos anos de trabalho e quarenta livros publicados" – começou por dizer, para logo falar sobre os universais medos da infância, o quarto escuro, a história do homem do saco, com o imediato fascínio dos ouvintes pela leveza e brilho da sua palavra, e a grande arte de se exprimir menos sobre ideias abstractas do que sobre temas da realidade de então.

De outra vez, Agustina tinha sido convidada a falar no anfiteatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, completamente cheio de alunos e professores do Departamento de Letras, todos conhecedores e estudiosos da sua obra. Sem preâmbulos, sem aula nem palestra ou conferência, sem fórmulas científicas, ela entrou directamente no assunto: "Não estou aqui como literata, mas como uma pessoa que vem comunicar e falar, procurando o que há de comum com os outros", desafiando a sala inteira a participar no diálogo que logo começou a acontecer e até hoje nunca mais ficou esquecido. Agustina conversou então sobre a escrita feminina, discutiu a figura de Carmen como manifestação das fantasias sexuais de Mérimée e o Amor Cortês como uma fuga do mundo masculino para anular a área de espiritualidade das mulheres. Comparou o escritor de histórias com o sapateiro, que há séculos é um sedentário a assistir ao movimento das pessoas. Disse que os Descobrimentos foram casos de família bem resolvidos e que a relação conjugal se complicou por causa da inteligência… Pulou de uns assuntos para outros, e assim o anfiteatro cheio andou essa tarde com ela por um bocado de coisas deste mundo e do outro.

A saborosa sabedoria

Era-me impossível, agora, partir de Lisboa até à Rua Gólgota, no Porto, na deliciosa perspectiva de estar com Agustina Bessa-Luís na sua casa, sem relembrar Agustina em acção. Sem perder uma pitada do que possa acontecer à sua volta, sempre com uma palavra de humor sobre as pessoas e as coisas, capaz de rir às gargalhadas como muita pouca gente o faz em Portugal, ela nunca se retira do movimento geral, ela percebe as conspirações e estratégias de homens e mulheres, é perfeita a enquadrá-las sobre a natureza humana. Muito pequenininha e ágil, coquete, tem uma inteligência que faz doer, de desmedida, uma acuidade extraordinária, um jeito especial para alfinetar o ridículo, nas suas várias faces. Ela inventa uma vírgula qualquer, que de repente introduz na fala, a dar-lhe um significado especial. Tem uma destreza de mãos, uma perspicácia no olhar. Complexa, difícil, arrevezada, densa é a escrita de Agustina, como se sabe. Mas, uma vez feito o mergulho na sua prosa, há um mundo sem fim a abrir-se, há o prazer da leitura, intenso.

Agustina pode provocar sentimentos de temor, de controvérsia, de distância também, porque não é à toa que a sua figura pertence à nossa galeria de mitos nacionais e não é evidente chegar-se perto dos mitos sem correr o risco de lhes descobrir a medida da realidade. E pode provocar paixões, quando se pronuncia para inquietar, contestar os acomodamentos e molezas, ironizar os nossos vícios de apoucamento. Ela sabe-o e por isso não anda por esta vida como quem contempla uma paisagem. Nem é um ser pacífico: "A minha actividade é procurar os focos infecciosos da falta de verdade. Eu escrevo para incomodar em consciência o maior número de pessoas possível, incomodar é despertar as pessoas".

E depois, é uma mulher de doçura, de feminilidade, amorosamente erudita nas diligências domésticas e vulgares do quotidiano. Mulher de um longo casamento, mãe de uma filha e avó de três netos, ela sabe os ciclos da natureza e a continuidade das gerações, este Inverno ensombrecida pela morte da mãe, que viveu nesta sua casa os últimos anos. Agustina é uma harmoniosa companhia. É uma óptima parceira de conversa. Uma divertida parceira de viagem. Um bom encontro de se ter. Tudo isto entretecido faz que a perspectiva de chegar à Rua Gólgota, naquele dia, fosse um ponto iluminado na agenda de intenções e compromissos. Há um enorme portão verde a abrir-se sobre o jardim e uma sólida empregada doméstica que acompanha o caminho, a descer uma escada de pedra antiga, a atravessar um pátio de árvores e flores até à porta encaixilhada de vidros, e já se vê Agustina a levantar-se do sofá, a arredar-se da camilha onde ainda resguarda o colo das últimas friagens do ano, nesta virada de Verão. A mesa de saias tem papéis e livros e revistas e jornais, percebe-se que ali passa ela várias horas do seu dia, a passear por estas coisas. Há uma gaiola com um casal de periquitos, muitos outros livros arrumados em prateleiras, o jardim oferecido na transparência dos vidros, a evocação de cheiros misturados de casa nortenha, talvez alecrim, de certeza de rosas, que são sem conta as roseiras carregadas de flores, de dimensões e cores e exuberâncias todas diferentes e cada uma mais linda que a outra, e que Agustina conhece uma por uma, pelo nome e capricho de formas. Não será até errado dizer-se que estas rosas do seu jardim, desenhado há muito tempo pelo casal inglês que ali morou, são um dos bens mais gostados por Agustina, neste momento de mais-valia da sua vida. À volta da mesa há mais dois sofás, a dizer que ali é a sala de estar da casa, e em cima da mesa há um tabuleiro de chá e duas xícaras, um bolo de laranja, umas fatias de pão e doce e manteiga e os pormenores adequados às pausas que nas conversas a fluir à rédea solta se fazem através destes pequenos gestos de privacidade. O gole de chá. O açúcar. O pedaço de bolo.

Os rituais e a idade da criação

Justamente, Agustina tinha chegado de Paris, encantada com um chá tomado na Maison de Thé Mariage Frerès, porque ali se vê que o ritual permanece, com todos os seus atributos. E, por causa do chá, pensa em rituais: "Hoje, a cultura substituiu os rituais religiosos e militares, isso sente-se em Paris. A Pirâmide do Louvre é um templo, curiosamente, ela foi feita por um oriental que de certeza tem esse sentido do ritual. Hoje, são os participantes a proceder ao ritual e não só os oficiantes, e é por isso que o fenómeno do Passa por mim no Rossio foi mais importante do que se pensa e que os estudantes, porque as ideologias falharam, se ligam e manifestam através desse profissionalismo incipiente".

Acaba de publicar um novo romance em Portugal, O Concerto dos Flamengos, e de acordar o título da edição francesa de O Mosteiro: "A tradução literal do título não apanha o sentido colectivo do livro, que é a história de Alcácer-Quibir num mundo de mulheres, por isso o nome ficou: Moeurs de Femmes, Bataille Perdue. Lembro-lhe a sua ideia de que o escritor tem de exagerar a medida das coisas, para cumprir a sua função: "O português resulta pouco como criador porque se excede pouco e tem demasiado sentido do ridículo" – diz.

Parecendo descontínua nos elementos que vai desfiando ao sabor do pensamento, Agustina sabe muito bem tecê-los num bordado de coerência, em que nada do que lhe vem ao espírito se perde ou se deita fora. É assim, como o mostra agora, a propósito das mulheres: "Havia muitas, lá em casa. Do lado do pai, a avó e duas filhas solteiras, extraordinárias, com o espírito naturalmente celibatário da mulher. O Cela diz que o estado natural da mulher é a viuvez, eu acho-lhe muita graça. O meu pai detestava o Douro, que era da família da minha mãe, e acabou por morrer por lá. Só havia viúvas, havia sempre muitas mulheres, com as sentenças, a sabedoria e aquela intensidade de vida interior que era dada pela experiência. Os homens vivem mais a aventura do exterior. No último livro que escrevi, dedico-me também à figura da doméstica. Todo o ser que se domestica transforma-se em cruel, a crueldade vem da domesticação, como se vê pelos povos da Antiguidade ou em cativeiro. O filósofo vienense Wittgenstein diz que a crueldade é permanente nas pessoas que são confrontadas com a avaliação e a competição, porque elas não olham a meios para chegar a um fim. A mulher está hoje em competição, o que lhe provoca vícios de malícia, de perfídia, mas a competição já não é uma história entre elas para obterem uma maior solidez pessoal e na carreira. Mas eu acho que em muitas situações, as mulheres são mais solidárias do que se pensa. As mulheres campesinas, mais do que as urbanas, são confrontadas com essa fatalidade da natureza que é o seu homem e o seu filho. Essa solidariedade entre as mulheres nem sempre é entendida. A Carmen de Mérimée, por exemplo, que é uma figura literária inspirada na Imperatriz Eugénia e na mãe dela, é apresentada com características que não são verdadeiras, naquela primeira cena e que ela bulha com outra mulher e se mostra combativa e em rivalidade com as outras".

Sobre o papel da mulher neste mundo, Agustina lembra que há uma fase a preceder a plenitude da maturidade: "Ainda se dividem muito as mulheres conforme os seus dotes físicos e intelectuais, entre a idade da procriação, que as pessoas consideram fundamental, e a idade da criação, que fica ignorada. Mas a idade da procriação cada vez está mais limitada, porque a tendência é para se ter filhos até aos quarenta anos, e depois disso, apresenta-se uma terra de ninguém. Aí é que começa a idade criadora, em que a mulher se debruça sobre um mundo mais duradouro e amplo. As mulheres bíblicas deixavam de existir depois da idade da procriação, e por iniciação do homem, adquiriam o poder. É disso que os homens se queixam, da vontade de poder das mulheres, que utilizam os homens para servir essa sua vontade de poder. Enquanto a beleza, no homem grego, é um recurso de sedução, na mulher, é uma vontade de poder, é uma espécie de vício, porque o vício da virtude é o de dominar alguma coisa, transcendê-la".

Ou de transformá-la, neste tempo em que "uma sociedade de serviços já ocupou a área doméstica". Agustina toma o exemplo de Golda Meir: "Nunca vi ninguém tão certa no lugar. Era capaz de fazer um jantar em casa como exercício de um gosto que é próprio de uma mulher, assim como de um homem é o que é, porque não há diferenças nesse aspecto. Se uma mulher intelectual tiver o gosto de fazer um cozinhado, isso não pode ser considerado um rebaixamento da sua condição. A sociedade não se está a masculinizar. Ao contrário, ela está a feminilizar-se, apesar de algumas mulheres poderem estra a virilizar-se um pouco". A antevisão dos valores do futuro é impossível: "Não sabemos o que será a família daqui a mil anos, haverá outros conceitos que não têm a ver com o imaginário da nossa infância. As cascas e os parentescos são os mestres da preparação para o mundo. As paredes da casa, que nos envolvem como um ambiente uterino, são a protecção contra a neurose, que a mulher viveu com mais constância. Imagine um dia em que as gerações não tenham essa casa, ou não tenham um útero! E o que é terrível para a nossa mente, o que é dramático para uma imaginação actual, é que amanhã haverá pais seleccionados…"

 

As mudanças e a civilização do afeto

As mudanças políticas e sociais destes vinte anos merecem-lhe reflexões definidas e, a partir delas, flui Augustina pela intuição das mulheres: "O 25 de Abril trouxe uma aceleração do comportamento, mas não intencionalmente. No seu pormenor, aconteceu à revelia da Revolução. Tudo o que se diz serem aquisições da Revolução são fenómenos que se deram por arrastamento, depois de Maio de 68. O 25 de Abril não se fez tanto para transformar uma sociedade, como para salvar a face de uma sociedade militar, duma instituição castrense que não tinha saída. Por outro lado, houve um aproveitamento de forças internacionais que queriam servir-se de um território valioso, o que já vinha de 1914 com os alemães. A sociedade portuguesa parece tradicional, mas a verdade é que é difícil transformar, organizar e fazer funcionar uma transformação num regime democrático. Isso só é possível num regime tirânico. O Marquês de Pombal conseguiu de uma maneira ditatorial atingir objectivos. Quando morreu, acabou-se. O português é preguiçoso, tem medo de perder o privilégio da preguiça, rejeita tudo o que o obrigue a pensar ou a agir mais, não tem espírito de criação para além de sua rotina. Não sei se uma sociedade daqui a alguns anos invadida pela mulher não será diferente. Porque o pensamento da mulher é diferente do pensamento do homem. Eu às vezes surpreendo-me a pensar que o homem está certo na elaboração desse pensamento, mas não lhe dá saída. A mulher introduz-lhe um outro elemento… Pode haver outra coisa para além dos cérebros, nós não sabemos o que é a famosa intuição das mulheres".

Ela conta que uma vez provocou a discussão sobre o tema: "Havia umas reuniões da gente da Presença no Diana Bar, na Póvoa, onde eu ia e participava, apesar de ser de uma geração mais nova. Falava-se de Camilo, e há aquele momento em que o José Augusto, depois do primeiro embate com o problema da Fanny Owen, vai sair da cidade. O Camilo diz que o encontrou pronto para ir para Coimbra, e faz uma pequena observação: ‘Eu vi o que é que ele era. Um desgraçado…’. O Régio tinha lido a frase, sem perceber que era uma maneira de Camilo sugerir a homossexualidade do José Augusto, coisa que eu percebi logo. Toda a gente achou aquilo muito inteligente, e lembro-me de o Régio então dizer: ‘Isso não é inteligência, é intuição’. Eu pergunto: até que ponto não chegou o momento de ser usada a tão debatida intuição? O cientista é capaz de a ter: há a famosa lei de Kepler que juntou todas as hipóteses e disse: ali tem de estar uma estrela. A intuição é misteriosa, complicada. Pode ser uma soma de conhecimentos profundos que não atingem o consciente. Há sentidos no ser humano que ainda não foram descobertos, diz o pensador Buber, judeu de Jerusalém, que sabemos de cinco sentidos, mas que num concerto de música há um outro sentido que nos aproxima. Se soubéssemos dizer o que é a intuição, saberíamos também o que é o homem e de onde vem".

Augustina acha que as mulheres já foram mais romanescas: "Elas perderam a reserva de singularidade, entre os trinta e os quarenta anos, muitas agarraram-se à carreira e, ao mesmo tempo, perde, a fantasia, o gosto de se vestir. Eu dizia que, hoje em dia, só as prostitutas é que se podem "vestir". Reparei agora em França que há uma multidão de jovens em que não se distinguem os rapazes e as raparigas…". Lembra-se de Sinclair Lewis, que dizia ironicamente que os homens já estão cansados, para falar sobre o exercício do poder pelas mulheres e pelos homens: "Elas precisam de uma preparação de um controle do seu mundo emocional. E não podem estar movidas apenas por uma vontade de poder e de um sentido de responsabilidade. Nos homens, o desejo é mais intenso, mais imediato, mais ofensivo, tão profundamente dramático, que pode destruir uma carreira. É interessante, pouco debatido e pouco reconhecido pelos homens saber-se até que ponto o desejo dos homens precisa de um ingrediente que é o próprio não desejo da mulher. Na Grécia Antiga, a mulher era possivelmente mais activa, ou atractiva mais a sociedade dos homens, do que se possa pensar. Ela era doméstica exemplar, a procriadora com virtudes de submissão. E depois, havia as Heteras, aquelas que tinham uma influência na política e na sociedade pela sua cultura, pelos seus gostos e liberdade. Elas eram sexuadas, mas não prostitutas, mesmo que a sociedade mais conservadora as considerasse como tal, e faziam com que a sociedade dos homens fosse mais equilibrada. Sócrates aprendeu Lógica com elas. Quando Péricles morreu, dizia-se que Aspásia, a sua mais famosa mulher tinha aprendido Oratória com ele. Aspásia casou com um pastor de cabras e, em dois anos, fez dele um orador. Isso é o comportamento feminino!"

A evocação do ambiente da sua família leva agora Augustina a pensar nos valores que julga essenciais para a ordenação da sociedade: "Nós gostamos de ter condições de conforto, mas sem submissão ao dinheiro. Tanto do lado do meu avô do Douro como do lado do meu pai, havia o ‘fazer casa’, o que quer dizer que o lado material tinha importância, mas nunca isso representava uma limitação à sua liberdade, nunca ultrapassava a nobreza do ser humano. Os franceses queixavam-se de depois da Revolução se ter perdido a gentileza do coração. Admiro a sociedade britânica quando diz que são precisas três gerações para fazer um cavalheiro, é preciso mais do que saber servir-se dos talheres e estar à mesa. Na primeira geração adquire-se o hábito da rotina. Na segunda, a rotina passa a natureza. Na terceira, consegue-se o domínio da sensibilidade. Uma sociedade não pode dar grandes saltos, e unicamente o sentido do afecto, que está permanentemente nos Sermões do Padre António Vieira, quando diz que para curar uma doença é preciso afecto, é capaz de a salvar. Sem o afecto, a sociedade é uma barbárie, um acampamento de bárbaros, cheio de atritos, rivalidades, reivindicações, avidez de poder, ajustes de contas. Admiro que esta civilização esteja perto de desaparecer, se não for essa civilização do afecto".

 

A solidão que redime e a exuberância do amor

E como se sente entendida pelos intelectuais aquela a quem têm sido atribuídos dons oraculares, capacidades de previsão do futuro, ditos definitivos sobre o génio dos portugueses? "Os meus pares defendem-se um bocado de mim, mas talvez se defendam uns dos outros. Na medida em que são maiores, defendem-se de ter inimigos à causa desses labirintos, evitam relações perigosas com medo de fazer funcionar um atrito. Às vezes, acontece relacionarem-se comigo de uma maneira simples e afectuosa, quando me identificam com uma obra feita. Aquilo que nos distingue torna-nos inimigos, vencer isso é um grande passo. É mau fazer com que a obra interfira na personalidade cívica, essa aceita-se para ser convivente. Aquilo que podemos ter de mais louvável como dom é a afabilidade, como se vê pela história do jovem Salomão, que Deus distinguiu de todos os outros porque ele era um "menino bom de seu natural". Isso fez com que o próprio Deus se maravilhasse. É o mais extraordinário que pode acontecer, com os dotes da inteligência, da beleza, da excepcionalidade. Por isso é que o santo é a expressão mais rara da Natureza".

A ligação amorosa entre uma mulher e um homem é um tema preferido no pensamento de Agustina, experimentado por ela no seu casamento a vida inteira. É um estado complexo e enriquecedor, que implica bom-senso e sabedoria: "A Giulietta Massina, para falar de Fellini, disse uma coisa muito bonita. Que viveram anos juntos, respeitando a solidão de cada um. O homem tem de admitir uma solidão que não se transmite nem se confidencia. A convivência dos casais passa por ajustamentos que têm a ver com uma necessidade de solidão povoadíssima de pequenas experiências que estão longe de ser traição, vividas pelo homem e pela mulher também. Quando um pergunta ao outro o que aconteceu, e se responde "não aconteceu nada", não é verdade. Aconteceram montes de coisas. A vida do casal implica sofrimento e essa nova aliança de homem e mulher é difícil de viver. A vida amorosa destina-se a um nível de felicidade, que é um elemento quase transcendente. No Brasil, um homem disse-me: "Você é infeliz, não é?" Nunca ninguém me tinha dito aquilo. Ele pressentiu em mim uma zona obscura que todos nós temos, no plano da inconsciência. É um sentido de eternidade. É o preço que todo o ser paga pelo seu estado de consciência. O espírito desencadeia um lado tenebroso das pessoas".

Ela ri, quando reconhece que usa bastantes vezes as palavras aparentadas com "tenebroso", e acrescenta-lhe a "terribilidade" que o Marquês de Pombal usava. Divertida, também a rir, assume o lado festivo da sua maneira e ser, um dos seus lados menos conhecidos: "É verdade, o meu marido acha graça a que eu não resista à charanga! Sou como a minha tia Amália, que não podia ouvir a música sem ir atrás. É natural que eu assim seja, com um trabalho freirático como o meu, durante mais de quarenta anos, não é?" Tem há pouco tempo um pequeno andar na parte antiga de Lisboa onde vem sempre que pode. O marido, advogado, lá fica, quando chega do Porto a Lisboa, e a filha e os netos também o aproveitam: "Para mim, é como brincar às bonecas! Tenho cá um médico e também uma modista, que me arranjou a Sophia (de Mello Breyner), onde escolho os feitios, os forros, os botões, agora que já há tudo por catálogo e não temos nós de ir comprar essas coisas às lojas". Diz, a propósito e bem-humorada, uma das suas esplêndidas máximas: "é o contacto com as insignificâncias que as mulheres não devem perder, senão ficam com stress!"

Bem disposta, introduz mais dois episódios picarescos para ilustrar as suas irreverências: "No outro dia, perguntavam-me na rádio o que acho dos meus livros. Como já tenho distância em relação a eles, respondi: ‘Trato os meus livros como se fossem netos, digo que são os melhores do mundo, são formidáveis, são lindos’. Daí a pouco, telefonou-me o meu dentista a dizer que me tinha ouvido no carro e tinha achado muita graça àquilo. Outra menina de uma rádio pediu-me para eu dizer o que achava de três livros. Eu disse que gostava de um deles porque era um bom livro, do outro disse que também gostava, apesar de ser um livro muito chato, por gostar do autor, e o terceiro era o Diário do Torga. Eu disse que os diários só servem para dizer mal é dos mortos, porque já não se incomodam com isso. Quem quiser, que diga mal dos mortos, por isso é que não escrevo diários. Respondeu a menina: ‘Mas o Torga não diria uma coisa dessas!’ E eu: ‘Pois é, o Torga é um moralista e eu não sou…’ "

Capaz de rir também por achar que as cabeças de certas mulheres não estão abertas para ideias novas ou subversoras, mas que já é muito bom fazerem os homens delas e os filhos felizes, Agustina diz uma frase que aqui se guarda para este fim de história passada nesta tarde saborosíssima do Porto, porque talvez a frase seja a chave de interpretação possível para a incomum personalidade de Agustina Bessa-Luís, escritora e mulher tão atenta ao mundo que nos rodeia: "As pessoas em relação a mim estão sempre à espera de outra coisa que não é o que é…"

Em despedida, mostra o interior da sua casa inteira, tão resguardada e segura, tão sólida e cuidada, mostra-a com o gosto de quem lhe dá vida e alma. Ainda acrescenta: "Se eu acredito no sobrenatural? Diga que sim, porque perdi uns óculos no aeroporto de Lisboa e eles apareceram!". E ainda: "É sempre uma surpresa para mim acharem-me vaidosa. Mas como desta vez há mais pessoas idóneas a dizê-lo, já começo a acreditar… Mas sobretudo, sou narcisista. E como o narcisismo é um elemento civilizador, não me sinto culpada de nenhuma maneira."

Agustina Bessa-Luís fotografada para a Máxima em 1994
Agustina Bessa-Luís fotografada para a Máxima em 1994 Foto: Pedro Ferreira
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