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Júlio Machado Vaz: "quando funciona, o amor traz uma intimidade que não existe na paixão"

Pai, psiquiatra e professor. Mas também autor, apresentador, leitor, benfiquista, viajante, bom garfo e bom amigo. Júlio Machado Vaz diz-se um ouvidor, mas fala com a mesma intensidade com que escuta. Fomos descobrir as camadas de um homem a caminho dos 70 anos de idade. E da imortalidade.

Foto: Ricardo Lamego
11 de setembro de 2020 às 17:02 Rita Lúcio Martins

É o próprio que admite a sua "lendária preguiça para sair do Porto". Por isso, após várias mensagens trocadas, percebemos não ter outra solução senão fazermo-nos à estrada. Júlio Machado Vaz recebe-nos em casa. Um apartamento novo, espaçoso e luminoso para onde se mudou, há poucos meses, no bairro onde vive há mais de 30 anos. Sorriso na cara e telemóvel na orelha. Um jornalista pedia-lhe que comentasse a saída do treinador do Benfica, o seu clube do coração. "Claro que pode citar-me, homem!" Ri, desliga e pergunta: "Serei eu o único benfiquista no Porto?!" Certamente que não, mas parece evidente que é um dos mais simpáticos. Médico psiquiatra, professor universitário, autor de quase 20 livros e de eternos programas de rádio (como o extinto O Sexo dos Anjos ou o atual O Amor é, feito em parceira com Inês Meneses e emitido pela Antena 1), Júlio Machado Vaz é o sorriso gentil, o prazer da conversa demorada. É o homem de tom grave e paciente com pronúncia do norte, é o pai-coruja, é o filho grato. Fala-nos de amor, claro, mas também de tecnologia e do seu prazer em viajar pela Europa. Convida-nos a ver as fotografias de família que tem no quarto, posa orgulhoso ao lado do retrato da mãe, traça-nos um mapa emocional, onde não faltam os discos dos The Beatles ou os restaurantes onde regressa uma e outra vez. O "Doutor", como é carinhosamente tratado por tantos, é pura empatia.

O seu pai, de quem herdou o nome, foi um reputado professor universitário e a sua mãe, Maria Clara, uma cantora que chegou a ser eleita rainha da rádio. Que amor foi o deles?

A história de amor deles é uma coisa lindíssima. O meu pai tinha tido um primeiro casamento muito novo, aos 24 anos, que durou apenas um ano. Conheceu minha mãe, aos 39 anos, no [Teatro] Sá da Bandeira, onde ia com os outros "gabirus", como minha mãe diria. Ficou fascinado com ela e pediu para ser-lhe apresentado, mas ela não lhe ligou nenhuma. Estava a desmaquilhar-se e queria sair depressa para assistir a um concerto de música clássica, no [Teatro] Rivoli. Ele ficou com o orgulho ferido, mas não desistiu. Ainda por cima, naquela altura, minha mãe andava sempre acompanhada por minha avó e, por isso, meu pai teve de seduzir duas ao mesmo tempo. Nunca encontrei as cartas de meu pai para minha mãe, mas encontrei as de minha mãe, que era de Lisboa, para meu pai. Então pude ler o desenvolvimento de uma paixão que acabou em casamento cerca de um ano depois. Era uma correspondência extraordinária… Costumava dizer à minha mãe que ela era uma feminista e ela respondia-me que não tinha cultura para isso, mas, em 1948, escrevia a meu pai: "Se quiseres casar, eu caso, mas isso para mim não é fundamental." Dizer isto a um filho da média burguesia portuguesa…

A sua mãe foi bem recebida pela família do seu pai?

Foi recebida de uma maneira maravilhosa pelos meus avós, que a adoravam. Em contrapartida, havia algumas tias-avós que pelas costas, ou nem tanto, não falavam bem dela. Naquela altura, as pessoas do teatro tinham má reputação. Aliás, isso é algo que culturalmente tem séculos. Ela era mulher, atriz, cançonetista de Lisboa… Havia gente na família que claramente não gostava. Pude aperceber-me disso à medida que fui crescendo. Mas era a menina dos meus avós. A mãe mudou-se então para o Porto e não mais saiu de lá. Houve aspetos curiosos… Por exemplo, o facto de ela ter decidido que nunca ia cantar no Porto. Aí era mulher de família, ponto final. Meu pai tinha um enorme fascínio por minha mãe.

Consegue vê-la pelos olhos dele?

Eu acho que sim… Acho que, em primeiro lugar, ficou fascinado com a figura que viu no palco. Depois, ela era uma pessoa especial. Era muito tímida, entrava sempre nervosíssima para o palco. Muitas vezes eu perguntava-lhe: "Porque é que continuas a fazer isto?" E ela respondia que cantar era o que gostava de fazer. Isso teve consequências completamente inesperadas na minha vida. Já o meu pai era professor de Bacteriologia e eu fui seu aluno. Para ele, dar uma aula era como beber um copo de água. Falava de tudo menos do programa [escolar]. Metade da aula era sobre política com ele a "malhar" no Salazar em celebrações divertidíssimas…

Nunca se sentiu constrangido por ser o filho e o aluno?

Senti, mas não a esse nível. Não nas aulas. Em primeiro lugar, eu faltava às aulas dele a torto e a direito porque eram teóricas. Ele divertia-se com isso e comentava-o com os alunos. Sabia que eu tinha ficado a dormir em casa e a meio da aula dizia: "E o colega Machado Vaz, o que acha disso?" Seguia-se um profundo silêncio e ele perguntava: "O colega Machado Vaz não me honrou com a sua presença?" E riam-se todos. Eu não podia ignorar que o meu pai tinha tido uma das médias mais altas daquela casa [a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto] e eu tinha muito medo de o envergonhar. É muito vulgar médico ser filho de médico, como médico casar com médico, mas a verdade é que fui para Medicina por influência de minha mãe. Eu gostava era de livros e de bibliotecas… Os meus professores tinham-me aconselhado a ir para Letras. Inscrevi-me numa coisa que, na altura, se chamava Histórico-Filosóficas… Acontece que sou filho único e a minha mãe fazia uma campanha muito subtil baseada no seguinte tema: "Coitado do teu pai que tem um laboratório de análises clínicas, tu és filho único, não vais para Medicina…" Mais tarde, fui para a alínea F, a dos indecisos, era de Ciências, mas dava para tudo e mais alguma coisa. Quando entrei para Medicina rapidamente pensei: "Estou feito… Não tenho feitio para isto. A anatomia, dissecar cadáveres…" Mas era basicamente um curso de estudo. Fiz um curso fácil com uma média alta, mas sempre a pensar como é que iria sair daquilo. Quando cheguei ao último ano havia Psiquiatria e eu pensei: "Espera aí, ao menos aqui eu falo com as pessoas. Do mal o menos…" Foi a minha salvação. Minha mãe pensou que tinha a batalha ganha e no final disse: "Mas então e o laboratório vai fechar na mesma?’ Fechou. Hoje é lá o meu consultório. O meu pai deixou-me tentar fazer consultas e eu não tinha nenhumas nessa altura, mas era bom estar com ele.

Era um pai próximo, disponível?

Era, embora com uma terrível parcimónia nos afetos. Eu e a minha mãe éramos beijos e abraços e fervíamos em pouca água, mas dez minutos depois estava tudo bem. Meu pai não era assim. Não dava um abraço. Tratava-nos, a mim e a minha mãe, por você, e nós tratávamo-lo por tu. Ela era a única pessoa com quem ele expressava afeto físico de uma forma clara. Depois, como é muito habitual, conseguiu fazê-lo com os netos, mas comigo não.

E isso era-lhe doloroso?

Nessa fase, sim. Hoje, eu tenho a certeza absoluta que ele me adorava. Eu tenho uma rinite alérgica feroz e quando ele morreu e eu esvaziei a casa – imagine uma casa cheia de pó por todo o lado – não tive um espirro. Havia coisas mais importantes em jogo. Comecei a encontrar bilhetes de meu pai para mim. Bilhetes em que me pedia para tomar conta de minha mãe, em que falava do orgulho que sentia por mim. Eu teria atropelado alguém para que ele me tivesse dito aquilo. Depois de ele morrer, as pessoas comentavam muito isso comigo: a admiração e o orgulho que ele sentia por mim. E isso criava aquela sensação de "O que é que eu perdi!". Se aquele maroto não tivesse tanta dificuldade… Cheguei a encontrar dossiês com todas as críticas ao Sexualidades [o programa que Júlio Machado Vaz apresentou na RTP1). Lembro-me de ele me ter dito: "Vamos ver quanto tempo é que o meu filho leva até lhe acabarem com o programa." Não acabaram com o programa, mas puderam-no à uma e meia da manhã, o que era mais ou menos a mesma coisa…

Foi demasiado para a altura?

Agora dá vontade de rir, não é? Houve um momento trágico, a gota que estava a transbordar o copo. Eu não tinha a mínima noção de que estava a ofender alguém porque dei o mesmo exemplo que dava aos meus alunos. E esse foi o problema porque eu não estava com os meus alunos. Falei da história [da pintura] de Lot e das suas filhas. Disse: "Para que Lot não se tivesse apercebido que estava a ter relações sexuais com suas filhas, ele teria de estar tão ébrio que eu quase garanto que era impossível que ele tivesse uma ereção." Na semana seguinte [o programa] estava no ar à uma e meia da manhã.

Como é que chega esse convite para apresentar um programa sobre sexo, na RTP?

Foi uma corrente de acontecimentos que nem joga a meu favor. Hoje, a caminho dos 70 anos, dou por mim a pensar que não controlei nada do meu trajeto. Aos 29 anos, quando estagiei na Suíça, encontrei duas consultas: a de Toxicodependentes – e eu trabalho com toxicodependentes há mais anos do que em Sexologia – e a primeira consulta de Disfunções Sexuais que encontrei na vida. Já era médico e nunca me tinham ensinado as Funções Sexuais, quanto mais as Disfunções. Quando eu voltei, vinha armado com o que havia na altura, o Masters & Johnson, um dos livros mais chatos, mas fundamental. Fui convidado para assistente pelo [professor] Eurico Figueiredo. Um dia fomos a Bilbau e no caminho falei-lhe do livro… Ele ficou curioso e, como se diz no Porto, aquilo ficou a trabalhar… Quando regressámos, disse-me: "Tu vais dar isso aos alunos em Biomédicas." E, de repente, tinha gente a mais na sala de aulas. No fim desse ano, a Associação de Estudantes pediu-me que desse um curso de Sexologia extracurricular. Eu dei, mas o curso escapou-me completamente entre os dedos. Chegava a ter 200 pessoas na sala. Assim nasceram os cursos de sexualidade…

Que idade tinha?

Uns 32, 33… Era muito novo. Estava a acabar a especialização em Psiquiatria. O [José António Alves de Carvalho] Barrias veio ter comigo e perguntou-me se eu queria fazer uma consulta de Sexologia no [Hospital] Magalhães Lemos. Eu disse-lhe que não tinha experiência suficiente e ele disse-me que não tinha um tostão para me pagar. Fui. E começaram a aparecer alunos a pedir para estagiar. Cheguei a ter uma equipa de 14 pessoas, todas a trabalhar de graça. É das melhores recordações que eu tenho. Entretanto, uma das pessoas que tinha feito o curso era o Aurélio Gomes. Em 1989, quando arrancou a Rádio Nova, ele convidou-me para fazer um programa de sexologia com ele. Foi assim que surgiu O Sexo dos Anjos, que durou oito anos, até o Aurélio ir para Lisboa. Em 1991, escrevi um livro sobre o programa. A [produtora] Maria João Rolo Duarte foi ter com o Carlos Cruz, que ia começar o [programa televisivo] Carlos Cruz Quarta-Feira, disse-lhe que lesse o livro e que ouvisse o programa. E depois recebi uma chamada [telefónica] a convidar-me para uma entrevista. Falei com o meu "irmão" mais velho na sexologia, o Francisco Allen Gomes, e o Chico disse-me: "Não podes recusar. É a nossa oportunidade." E aconselhou-me a ir um bocadinho mais bem vestido do que de costume… E lá me apresentei, de fato e gravata. Quando a entrevista terminou, o Carlos Cruz disse-me que eu não poderia aceitar um convite para fazer um programa de televisão sem antes falar com ele. Quando recebi esse convite, três meses mais tarde, falei com o Carlos Cruz. Lá gravei o primeiro programa e, quando me preparava para gravar o segundo, estava uma pequena multidão [de jornalistas] à porta do estúdio porque o [jornalista e crítico] Mário Castrim tinha feito uma boa crítica ao programa. (…) A certa altura começaram a chover cartas de associações de pais, de conselhos diretivos, de associações de alunos a pedir as cassetes. Mas a minha vida continuou a ser no Porto. O [Carlos] Cruz achava que depois do Sexualidades viria outro programa. Mas eu dava aulas no Porto, tenho consultório no Porto e tenho a família no Porto. Quando acabou o Sexualidades vim embora e só voltei a fazer televisão, anos largos depois, e no Porto [programa Esses Difíceis Amores]. A rádio é que esteve sempre presente.

Mas é a televisão que marca um ponto de viragem…

Sim, é verdade. Eu estava habituado a falar para um anfiteatro cheio, mas não tinha nenhuma noção do share, nem sentia essa pressão. No estúdio, estávamos quatro pessoas. Saíamos dali e íamos beber uns copos à Feira Popular. Não estava preparado para ser parado na rua, as pessoas punham-me questões e de repente lá estava um pequeno ajuntamento. Em termos gerais, eu fui muito bem tratado. Também recebi ameaças de morte e insultos, mas eram coisas residuais…

Qual era o segredo dessa empatia com o público?

No início, eu acho que o que atraiu as pessoas foi o tema. Admito que tenha tido alguma vantagem porque tentei não chocar as pessoas, dizendo a verdade. Mas o tema foi uma verdadeira explosão. De repente, em horário nobre, estava um tipo a falar de sexo. Nunca tinha acontecido. Comecei a ser o tipo que falava de sexo para evoluir para outra coisa… As pessoas adotaram-me, de certa maneira. Encontravam-me com os filhos na rua e diziam-lhes: "Sabem quem é? É o tio Júlio." Ao longo dos anos acusaram-me de muita coisa, mas nunca de ter sido desrespeitoso.

Esse será um dos traços incontornáveis da sua personalidade.

É verdade que eu fui educado para isso. Venho de uma família de velhos republicanos (do lado do meu pai), alguns com estadia nas prisões da PIDE e o meu bisavô foi Presidente da República. Até aos dez anos eu comia na cozinha, numa mesinha de palha, sentado numa cadeirinha de palha. Então o meu pai disse: "A partir de agora come na sala de jantar connosco, esteja quem estiver." E havia uma regra de ouro: eu tinha o direito a dar a minha opinião. A outra face da moeda? Se eu dava o pescocinho, arriscava-me a que o cortassem. Era possível que a conversa acabasse com meu pai dizendo: "Não pensei nisso, tem razão." Mas com essa idade o mais vulgar era ele provar-me o contrário. O meu pai tinha uma frase que marcava esse ponto. Quando achava que eu estava a começar a ser ridículo, dizia: "Talvez fosse bom o meu filho perguntar-se se não está a deixar-se arrastar pelo prazer da frase." Isso foi uma grande escola. O meu pai esperou dez anos para ser professor catedrático porque recusava fazer aquela célebre declaração de não ser comunista. Não o era, mas dizia que obrigarem-no a tal declaração era uma infâmia. Eu cresci numa cultura em que toda a gente pode ser o que quiser, desde que o seja de uma forma aberta e que todas as opiniões sejam respeitadas.

Foi essa a sua grande herança, a da tolerância?

Foi certamente uma delas, mas até gostávamos mais da palavra aceitação, porque a palavra tolerância é oblíqua. A aceitação da opinião do outro não concordando com ela. Isso foi-me ensinado desde pequeno. Os cursos na universidade também foram importantes. Aquela gente era muito nova, tinha muita curiosidade, vinha de meios diferentes e aquela coisa de eu expor e depois ficar tudo à conversa também pressupunha uma maneira de funcionar que não era o clássico ex-cátedra. Tinha um professor que dizia que não era boa ideia fingir um estilo que não era o nosso porque, mais tarde ou mais cedo, isso nota-se. Sempre achei isso. O meu pai era um homem de fato, de colete e de gravata. Hoje sei porque é que me tornei diferente… Era uma tentativa de "descolar" dele. Eu era um filho típico da burguesia portuense, mas numa altura deixei crescer o cabelo e não houve problema lá em casa.

Não atravessou uma fase rebelde?

Não, nunca fui um rebelde. Isso seria reconstruir a história. Foi sempre tudo muito pacífico em minha casa. Era engraçada, essa questão da aparência… Lembro-me de nos cruzarmos com o melhor amigo do meu pai, o professor Joaquim Bastos, e ele dizer-me: "Olha lá, não tens vergonha? O teu pai é o homem mais bem vestido desta casa [o Hospital São João]." E o meu pai ria-se. O psiquiatra hoje entende isso bem. O meu pai era o mais bem vestido. Eu não podia concorrer com ele, portanto tinha de ter um estilo diferente.

Quando chegou a sua altura de assumir o papel de pai pensou objetivamente nos exemplos e nos comportamentos que queria replicar e nos que queria evitar?

Eu lembrava-me da minha nostalgia. Era um macho latino típico. A minha mãe não me tinha ensinado nada [no plano doméstico] e no meu casamento passou-se o mesmo. Curiosamente, a parte em que, desde o início, eu tive uma participação era no cuidar dos miúdos. Fui muito próximo deles, fisicamente.

Levou esse papel muito a sério, desde o primeiro momento?

Eu tenho algum pudor em fazer essa afirmação porque me deu um gozo enorme. Ainda hoje eu digo que as duas grandes paixões da minha vida foram os meus filhos [um com 42 e outro com 45 anos]. Foi um fascínio autêntico. Não era esforço nenhum.

Mas acusou a responsabilidade?

Claro! Senti as culpabilidades todas. Eu não sabia o que era ser pai, tinha dúvidas e a minha ex-mulher também. Houve coisas em que eu acho que estivemos bem. Houve coisas que nunca discutimos em frente às crianças, muito menos a educação delas. Claro que, mais uma vez, em pano de fundo, minha mãe zelava por tudo. Depois, os meus filhos tinham uma relação com o avô como eu nunca tinha tido. Quem educa são os pais, mas, em contrapartida, acho que os avós podem ter uma função de roçar a pequena transgressão. O meu pai usava e abusava disso e ficava deliciado com os seus petizes. É útil que os avós sejam mais plásticos porque isso cria uma grande cumplicidade, uma certa bonomia.

Sente que a geração dos seus filhos se culpabiliza mais em relação aos filhos do que as gerações anteriores?

O século XX trouxe uma coisa que não havia: os especialistas. E os especialistas foram sempre angustiantes. De repente, os pais têm não sei quantos livros que às vezes parecem os Dez Mandamentos e os pais ficam aterrorizados. Mas sempre se educaram crianças com base no bom senso e as coisas foram funcionando. Mas também é preciso um mea culpa. A minha geração exagerou com aquela história de ‘Os meninos vão ter a liberdade que eu não tive’ e o que é preciso é que se divirtam. Muitos de nós confundem o que é ser pais "fixes" com o ser os melhores amigos dos filhos.

Nunca cedeu a essa tentação?

Cedi, nomeadamente na altura do divórcio, o que é um clássico. Ficamos culpabilizados… Como é mais habitual, fui eu que saí de casa e tinha um grande pânico que eles, com oito e seis anos, na altura, deixassem de gostar de mim. Nessa altura fiz borradas em termos de cedências, em ter-me deixado manipular, em tentar comprar o afeto, coisa que não se consegue. Fiquei sempre com uma dívida de gratidão para com a professora Celeste Malpique. Fui ter com ela e fiz-lhe um pedido: "Um destes dias eu irei jantar com os meus filhos, fingiremos que nos encontramos por acaso e a Celeste jantará connosco e dir-me-á como é que os meus filhos estavam." Ela olhou para mim, sorriu e disse: "Se os seus filhos se sentirem amados em sua casa e em casa da sua ex-mulher, em princípio vai correr tudo bem. Não psiquiatrize os miúdos." Isto era o que eu teria dito a outra pessoa. Mas aqueles eram os meus [filhos]. Mas, mesmo assim, acho que as coisas correram bem. Hoje em dia passo o Natal em casa da minha ex-mulher e isso é bom. Agora não vou dizer que eles não passaram um mau bocado. Passámos todos.

A família é um dos seus pilares, mas gosta de estar sozinho…

Em setembro, eu faço sempre sete a dez dias pela Europa sozinho e toda a gente sabe que não está convidada. Este ano estive com o meu Van Gogh, em Amesterdão.

Sempre gostou da sua companhia?

Não. Foi uma coisa que conquistei ao longo dos anos. Aliás, quando eu me divorciei tinha muitas dúvidas sobre como é que me iria aguentar sozinho. Quando entrei no meu primeiro apartamento, um T1, olhei em volta e sabe Deus. Mas foi uma escola importante. À medida que eu me ia pacificando, verificava que havia outras coisas. Outro exemplo: eu detesto divertimento com data marcada e, por isso, a passagem de ano é um magnífico pretexto para jantar com amigos e já não é a primeira vez que me vou embora e que já estou a dormir à meia-noite. Este ano, fiquei pelo Porto. Estava no Franganito, restaurante onde vou desde os 22 anos, à conversa quando o dono me disse que iria abrir na noite da passagem de ano. Perguntei-lhe: "Olhe lá, se eu vier há lugar para mim?" De maneira que a minha passagem de ano foi no Franganito, com turistas. Outra coisa que surgiu com a idade foi um maior prazer em viajar. Durante muitos anos eu tinha medo de voar e, por isso, viajava muito de carro, o que, a certa altura, é muito cansativo. Depois – e isto é bonito em termos psicológicos – coincidindo com o nascimento dos [meus] netos, o medo de voar foi-se. Foi como se eu tivesse pensado: "Isto agora rola sem mim..."

A passagem do tempo trouxe-lhe uma certa urgência de viver?

Há duas faces da moeda. Se o estar a envelhecer não me colocasse mais perto da morte, eu não trocava a forma como me sinto hoje pela forma como me sentia há 20 anos. Eu estou mais pacificado comigo mesmo, tiro mais gozo da vida. Ao domingo almoço quase sempre às quatro da tarde porque na Casa Castanheira, outro dos meus restaurantes favoritos, em Matosinhos, me disseram um dia: "O doutor tem de vir cá às quatro da tarde quando já servimos os almoços para ficarmos à conversa." No domingo seguinte estava lá caído. Esse espírito de tertúlia, que hoje em dia se usa pouco, para mim é importantíssimo.

Nunca se cansa de pessoas?

Canso… As pessoas têm de ter noção que, antes de tudo o resto, sou psiquiatra e que, portanto, a minha vida é a de um ouvidor. Claro que falo, mas acima de tudo oiço. Há alturas em que eu tenho uma necessidade física de estar sozinho. Nessas situações é-me necessário ter espaços de silêncio absoluto ou então a música. As viagens para o estrangeiro têm essa vantagem adicional do anonimato. Mas nem sempre: eu tenho uma fotografia tirada em Salzburgo, na janela da casa do Mozart, por uma portuguesa que ia a passar, que me viu e que depois mandou a fotografia pelo correio. Nem conheço a senhora, mas estou-lhe muito grato.

A simpatia natural que as mulheres têm por si tem a ver com o facto de lhe reconhecerem uma sensibilidade que nem sempre encontram nos homens?

Quando fiz o Sexualidades sabíamos que a esmagadora maioria do público era feminino. Isso mudou de uma maneira muito reconfortante. Hoje já não estou na televisão, estou na rádio, mas a quantidade de homens que vêm ter comigo porque ouvem o programa é muito reconfortante. Eles mudaram. O que acompanha a mudança que notei no consultório.

Há mais casais a procurar a sua consulta?

Sim. Mas, ainda hoje, quando aparecem é com uma sensação de derrota. As mulheres encaram esse processo com uma maior naturalidade.

E esses casais chegam com uma urgência de respostas ou disponíveis para levar o tempo que for preciso para ultrapassar o problema?

Há casais que quando chegam [ao consultório] já não são casais. Chegam inconscientemente à procura de uma certidão de óbito para a relação. Mas, hoje em dia, a maioria dos casais aparece mais precocemente.

Porque há uma maior consciência ou uma menor resistência para o desconforto?

Há um efeito de classe socioeconómica. Eu faço [consulta] privada e sai caro. Há classes sociais que não podem ir ao meu consultório ou que então vão porque são pessoas que vi em outros contextos, mas não é o mais habitual. Mas as pessoas estão mais informadas e sabem que há coisas a tentar. Vivemos vidas alucinantes e as pessoas pensam que desde que se goste um do outro nada pode liquidar a relação. Farto-me de ver pessoas separarem-se e que ainda gostam do outro, mas que já não conseguem viver juntas. O amor dá trabalho. A minha geração, por exemplo, não foi preparada para isso (…). Esta sociedade tolera mal sentimentos desagradáveis, como a tristeza. A frequência com que as pessoas veem na nostalgia da pastilha milagrosa que faça desaparecer aquilo tudo sem terem de perceber o porquê é impressionante. O que é que isto produz nas relações amorosas? Uma maior superficialidade, uma tentativa de evitar grandes compromissos. Veja-se o que está a acontecer no Japão, em que inquéritos revelam que 30 a 35% dos jovens não querem namorar nem praticar sexo porque as relações só trazem chatices. Há agências florescentes onde se alugam namorados. É extraordinário…

Por outro lado, a intimidade quando é boa é o melhor sítio para viver…

Nem mais! Temos tendência a idealizar a paixão na sua comparação com o amor e acho isso muito injusto. Um amor feliz não fica a dever nada à paixão. O amor é no mundo real. É muito mais arriscado. É a ferrugem, a acusação, a monotonia. Dá uma trabalheira. Mas quando funciona traz uma intimidade que não existe na paixão.

No próximo ano vai celebrar 70 anos. Isso assusta-o?

Um bocado. Quando eu fiz 50 anos morreu o meu pai, aos 60 morreu a minha mãe. Aos 70… Eu não estou a dizer que vou morrer, percebe, mas tenho a noção de que me vou sentir muito só. Eu tenho amigos que se sentem da mesma forma. Nós estamos em relativa boa forma, mas sentimos que está a afunilar. Hoje em dia sinto-me a viver numa zona crepuscular porque vivo ao mesmo tempo com os vivos e com os que já partiram. É uma sensação estranha. O que me entristece é a minha floresta estar a ficar cada vez com mais clareiras. Eu sinto muita falta das pessoas. E surpreende-me. Há muito aquela sensação de que [já se] foi fulano e que poderia ter sido eu. É o acaso no meio de tudo. Há a nostalgia de um mundo que se foi perdendo.

A nostalgia passa a ser um lugar reconfortante ou é uma "via verde" para a depressão?

Eu aí tenho uma vantagem. Estive deprimido, há 40 anos, e conheço bem a diferença entre a tristeza, a saudade e a depressão. Eu lembro-me de como era a depressão. Mas assino por baixo dessa palavra: há essa sensação de conforto. Posso dar por mim a olhar para o retrato da minha mãe e a dialogar com ela, num diálogo interior. E isso é reconfortante. Quando enterrei o meu pai, o meu filho mais velho tinha-me anunciado que se ia casar. Quando saímos do cemitério, ele disse-me: "Pai, se calhar a vida é isto. O avô morreu e eu vou casar e ter filhos, e vou contar o avô aos meus filhos." E eu disse-lhe: "É exatamente isso." A isso chama-se a lenda familiar. Os meus netos que nunca conheceram os meus pais de vez em quando falam-me deles. E, nessas alturas, eu tenho a certeza que vou ser imortal.

Um testemunho de Inês Meneses

"Eu era miúda quando comecei a ouvir o Júlio na Rádio Nova no programa O Sexo dos Anjos, com o Aurélio Gomes. Curiosamente, começámos a fazer rádio na mesma altura. A Rádio Nova viria a ser determinante no tipo de emissão que procurei fazer. O Júlio foi sempre fiel ao seu estilo: pausa e pensa. Nas suas pausas percorre a liberdade do pensamento que depois embrulha de uma forma única, em antena. É, sobretudo, nos programas longos de fim de semana que me apercebo de como ele é raro na sua polivalência: o Júlio lê, ouve, procura. A idade nunca lhe saciou suficientemente a curiosidade e não pode haver maior motor para nos manter agarrados à vida. Gosto muito de quando ele me diz: "Você acha?..." É ele a considerar o meu pensamento e imediatamente a procurar novos caminhos que o questionem a ele próprio. O Júlio cultiva uma certa melancolia que depois equilibra com o seu humor. Permite-se ser muitos num só.

Estamos juntos na Antena 1, há quase há 11 anos, e cada semana de trabalho continua a ser nova. Acredito que o espanto continua do nosso lado e, como imaginam, a minha aprendizagem é constante. A dada altura, o Júlio teve a generosidade de me apresentar aos seus amigos, o seu ciclo restrito, um conjunto de homens que pensam e que saboreiam a vida de uma forma já rara. Também isto me fez ver o mundo de outra forma. A idade passou a seduzir-me por sermos o conjunto de experiências e sermos tão ricos por isso. Ao contrário daquele escritor francês de 50 anos que acha que as mulheres da idade dele são muito velhas, eu gosto é de pessoas que já viveram. Gosto de cada sulco nos seus rostos." 

*Artigo originalmente publicado na edição 365 da Máxima, janeiro de 2019.

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