Miguel Vale de Almeida: “Há uma linha vermelha: quando se trata de direitos adquiridos não é para voltar atrás.”
Nas últimas semanas, os assuntos relacionados com a igualdade de género e os direitos da mulher parecem ter conquistado presença e relevância no espaço mediático, mas nem sempre pelos melhores motivos. O antropólogo Miguel Vale de Almeida explica o fenómeno e faz a leitura social de um momento político que pode ser o de uma perigosa viragem.

Das conversas entre amigos às mesas de café, passando pelos espaços de comentário das televisões e pelas colunas de opinião dos jornais: o género é um dos tópicos do momento. Mas, se por um lado, podemos considerar que essa nova visibilidade - fruto de um caminho de progresso e de conquistas de direitos - é positiva, por outro lado, parece evidente que os argumentos usados nem sempre são os mais esclarecidos ou informados. Frequentemente, confundem-se factos com convicções, mistura-se ciência com costumes e enviesam-se conceitos. Estará o género, área interdisciplinar complexa e intrincada, a ser reduzido a uma estratégia rápida para a polarização política? E que papel têm os media – nomeadamente as redes sociais – na propagação de ideias populistas? Foram dois dos pontos de partida para a reflexão proposta a Miguel Vale de Almeida. Doutorado em Antropologia, o professor catedrático no ISCTE é um dos mais incontornáveis especialistas nacionais na pesquisa nas questões do género e da sexualidade, mas também da etnicidade, "raça" e pós-colonialismo. Autor de vários livros (Pedra Branca. Rosa Feldman, uma história de vida do século XX, escrito em coautoria com Ethel Feldman e distinguido com o Grande Prémio Miguel Torga de literatura biográfica, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores, é o mais recente), é um ativista dos direitos LGBT e foi deputado à Assembleia da República entre 2009 e 2011, tendo estado envolvido na aprovação do casamento igualitário.


Numa intervenção em 2011 defendia que era importante rejeitar a ideia da família como um exclusivo da Direita ou de setores mais conservadores. Treze anos depois, a pretexto do lançamento de um livro, instala-se novamente a discussão sobre o conceito de família. Como é que aqui chegámos outra vez?
Não sei se chegámos. Há setores ultraconservadores, de nicho, diria até que são bastante pequenos, que ficaram entusiasmados e esperançosos com a ideia genérica de que a Direita tinha ganho e o [partido] Chega tinha subido. A partir daí, ficaram com uma esperança, uma ilusão até, de que tudo iria mudar e que poderiam levar avante a sua agenda. Mas, por enquanto, não temos razões para pensar que esse entusiasmo se possa refletir em políticas do Governo no Estado. O que estão a fazer é pressão. Curioso é que tragam à baila argumentos muito antigos, mas que acabam por ter mais visibilidade, até pelo ridículo que lhes está implícito. No entanto, não são esses os mais perigosos, mas sim aqueles que estão a tentar mudar os termos da conversa, a inverter os nomes das coisas. E isso está a acontecer em vários lados. Nos Estados Unidos, por exemplo, movimentos do Estado da Florida fizeram com que o Governador tivesse proibido a existência de certos livros nas bibliotecas ou nas escolas, usando a palavra endoutrinação, por considerarem que os livros que falam de sexo, LGBT ou igualdade de género, estão a endoutrinar as crianças. Aquilo que estão a fazer é a inverter o significado da palavra. Passa-se o mesmo com a expressão "ideologia de género", inventada pelo Cardeal Ratzinger, na Congregação para a Doutrina da Fé: defende-se que a distinção entre sexo (aquilo que é biológico) e género (aquilo que é culturalmente relativo e construído) é ideológica e, por isso, [segundo a perspetiva da Igreja] estariam a combater uma ideologia, uma teoria que lhes estaria a ser imposta. Como se a tentativa de obrigar homens e mulheres a serem de uma determinada forma não fosse, também por si, uma ideologia. Esse tipo de retórica sobre a ideologia de género, sobre o wokismo, sobre a cultura de cancelamento, sobre o politicamente correto, sobre a endoutrinação, inclusive a forma como a palavra liberdade é usada (como se aquelas pessoas, as que sempre usufruíram do privilégio do poder, estivessem a ser perseguidas), essas sim é que me preocupam.
O "retrocesso", como etapa do processo de evolução social, é sempre incontornável?

Quando os direitos são alargados a mais pessoas, em vez de estarem restritos a quem tem poder, é expectável que haja reação e que ela se baseie na ideia de um regresso a um passado altamente mistificado, um passado que, na realidade, nunca existiu. Um [só] tipo de família, um [só] tipo de sexualidade, de nacionalidade. A questão é que as condições em que isso está a acontecer agora são diferentes, porque existe um desmembramento completo das estruturas de apoio que, desde a II Guerra Mundial, com a posterior invenção do Estado Social e a Declaração dos Direitos Humanos, tinham dado uma almofada de conforto e proteção às pessoas que faziam com que sentissem bem nas suas vidas (e, por isso, os outros também podiam estar). Mas, com as políticas neoliberais e a decadência da Social Democracia, o Estado desapareceu. As pessoas ficaram sozinhas, precárias, desprotegidas - e ainda por cima foi-lhes dito que são responsáveis pelo seu sucesso. Incapazes de ter uma consciência coletiva sobre aquilo que está errado no sistema, viram-se para a criação de bodes expiatórios e, portanto, há mais condições para este backlash. Na minha perspetiva, isso tem muito a ver com a decadência do Estado Social, da Social Democracia, do Acordo Social Democrata-Democrata Cristão na Europa, do Sindicalismo e de outras formas de confiança na Democracia. Como tudo parece estar a vir por água abaixo, abre-se espaço para este tipo de reações. Contrariar isso não é fácil, mas deve passar pela insistência na falácia dos argumentos usados. Nada daquilo em que expandimos os direitos, sejam eles na área da sexualidade, da família, da educação, da integração de pessoas de outras origens, nada disso constituiu uma perda de direitos para as pessoas que se queixam. É preciso dizê-lo sistematicamente e, possivelmente, inventar formas mais populares de celebração da diversidade, da democracia, dos direitos humanos, para que não pareça uma coisa vinda das instituições, do Estado ou de outra qualquer autoridade.
Estes 50 anos de democracia são inequivocamente marcados pelo progresso e importantes conquistas de direitos. Por outro lado, Portugal ainda parece ser um lugar de muitas assimetrias.
Sim, por muito que custe dizê-lo, Portugal continua a ser um país muito desigual. Diminuímos muito a desigualdade socioeconómica nestes 50 anos, mas não diminuímos uma assimetria entre aquela percentagem da população que tem altos níveis de educação e é urbanizada vs. o resto. E este resto também é novo. São pessoas precarizadas, com imensa dificuldade em ter casa, em ter trabalho com contrato, em prosseguir a educação, etc. Essa assimetria faz com que, muitas vezes, sejam as elites a avançar com leis e direitos que os outros não compreendem, mas isto não quer dizer que não se deva avançar. O Estado e as elites têm esse papel de vanguarda, de apresentar as coisas como sendo válidas. Por exemplo, quando se muda uma lei de forma a incluir mais pessoas num direito, o Estado está a dizer que se trata de uma coisa boa. A interrupção voluntária da gravidez e o casamento entre pessoas do mesmo sexo são exemplos disso. A partir do momento em que essas leis foram aprovadas, as taxas de aprovação pela população também foram aumentando, hoje chegam perto dos 80% em ambos os casos.

Como lê o país, atualmente?
O que está a acontecer é um aproveitamento muito grande das insatisfações das pessoas, em que facilmente se arranjam bodes expiatórios relacionados com aspetos da identidade. A pessoa sente a sua identidade sexual ou familiar como frágil e pensa que a "culpa" dessa fragilidade é daqueles que estão a tentar ter também um modelo familiar. Ou sente a fragilidade de estar num país desigual e conclui que a ameaça são os imigrantes. É muito fácil criar bodes expiatórios quando não se percebe aquilo que, efetivamente, se está a passar. E o que se está a passar é que o sistema capitalista atual está-se nas tintas para a democracia ou para a questão dos direitos humanos. Em tempos isso não aconteceu, na medida em que, sendo agregador, permitia criar um mercado mais amplo. Hoje, pelo contrário, percebeu-se que as formas de autoritarismo provavelmente até são as mais úteis para garantir uma exploração mais completa do trabalho e das pessoas. É muito útil ao sistema criar dissensões na sociedade por razões que não sejam as do trabalho. Isto não quer dizer que as questões relacionadas com a família, a sexualidade, o género, a raça ou a etnicidade, sejam secundárias. Há alguma esquerda que diz isso e estou em desacordo total. O que se passa é que, na falta de uma perspetiva sobre a forma como todos estes aspetos se interseccionam e ligam, é muito fácil para os demagogos desviar as atenções para as questões morais ou de costumes. Basta pensar que, sem uma boa exploração da divisão sexual do trabalho, não existe capitalismo que sobreviva. As questões de género são centrais, mas ideologicamente as pessoas pensam que não.


As questões de género ganharam visibilidade, mas também porque é mais fácil mobilizar e polarizar a partir delas. É isso?
Claro. Nas questões do trabalho destruiu-se quase por completo a possibilidade de construção de uma identidade coletiva. As pessoas estão atomizadas, precarizadas e em competição umas com as outras. O próprio sindicalismo foi destruído (ainda que também se tenha autodestruído pela sua própria incapacidade de reinventar) e, portanto, não existe aí a possibilidade de identidade e de consciência. A maior parte das pessoas comprou a ideologia vigente que defende que a forma como a economia, o trabalho e as relações laborais funcionam são naturais. Não se trata de uma escolha humana, não é resultado da História, não, é a natureza. Essa ideologia não é muito diferente da naturalização que os conservadores fazem da família e do género. No fundo, continuamos nesta dicotomia entre, por um lado, quem acha que um determinado modelo de sociedade – seja económico, de género, familiar – é a forma "normal" das coisas serem e, por outro lado, as pessoas que sabem que é resultado de um processo histórico. Como, nas últimas décadas, fizemos muitas mudanças, agora há esta reação naturalizadora.
Tendo em conta a complexidade dos assuntos e a interdisciplinaridade que os estudos de género supõem e exigem, diria que falta informação?
A questão educativa é fulcral. Ter um pensamento crítico sobre o que são as bases da democracia, sobre o que é uma sociedade justa, sobre o bem comum... são questões fundamentais que não vejo contempladas no campo educativo. E, quando o são, chega a reação. Afirmações como ‘o género está na moda’ ou ‘hoje é tudo wokismo’ só são proferidas porque, nos últimos quinze a vinte anos, se decidiu começar a fazer alguma coisa. A reação também tem razão de ser. Nesse sentido, a única solução é continuar a agir nestas áreas. Mas, voltando à primeira questão, em condições políticas como as atuais, há uma oportunidade gigantesca por parte dos conservadores para fazer uma certa revanche. O que estas pessoas querem é retirar direitos, retirar liberdades e retirar igualdade. E isso é moralmente pior do que propor mais direitos, mais liberdade. Isto, como pedagogia política por parte da esquerda, dos movimentos sociais, da academia, das instituições com preocupações emancipatórias e progressistas, é absolutamente fundamental. É preciso colocar esta pergunta: porque quer retirar [aos outros] se nada lhe está a ser retirado nada a si?
Enquanto professor, considera que a academia deve intervir?
Sim! Não tem é que ser aquela intervenção elitista, ainda muito portuguesa, de usar o estatuto ou um argumento de autoridade. O facto de se ser catedrático ou de ter publicado alguma coisa sobre um assunto não faz com que aquilo que se diz seja uma verdade absoluta. Não só não é assim, como não resulta. O que tem de haver é interface entre a academia e os outros níveis de educação e mais extensão universitária sob a forma de ações de formação, de manuais, de múltiplos encontros com movimentos da sociedade civil, empresas, organismos do Estado. É preciso repassar o conhecimento com outra linguagem para envolver e empoderar as pessoas. Ir ouvi-las e trazer o seu conhecimento para a academia. É algo que algumas áreas disciplinares fazem mais do que outras, mas que é absolutamente fundamental.
Os media desempenham um papel fundamental na projeção destes temas, nomeadamente as televisões. Ultimamente investe-se muito em painéis de comentário, muitas vezes sem que seja feita uma análise mais aprofundada dos temas. Quais são os riscos desta abordagem?
Sim, isso acontece sobretudo nos canais informativos privados de cabo. Encontraram uma grande concorrência nas redes sociais, perceberam que elas passaram a ser a "fonte de informação" de muitas pessoas e que, muitas vezes, isso passa por manipulação e criação de nichos de crença – nada tem a ver com procurar os factos, esclarecer, ouvir as partes – e fazem o mesmo. Mas fazem o mesmo com uma aura de jornalismo por cima. A forma parece ser a do jornalismo, mas o conteúdo nem sempre é. Por vezes, cumpre mesmo a função de criar ruído. Depois, há outro fator importante e que já está instituído em Portugal: temos um Presidente da República que vem da televisão, a sua ascensão foi feita em função do seu papel como comentador. Um comentador de um certo estilo, diga-se. O André Ventura é outro exemplo disso. Agora vamos ter um candidato às [eleições] europeias que também vem daí. Em outros casos, o comentador já foi jornalista. Há toda uma promiscuidade em relação ao comentário.

E tudo isso ecoa depois nas redes sociais...
Pensemos numa Rita Matias [deputada do Chega]. É uma pessoa limitadíssima, mas está super treinada pelos grandes lobbies e think tanks norte-americanos, com uma forte ação internacional no sentido de promover estas figuras de Extrema-Direita. Aquilo que ela faz é ter uma enorme presença no TikTok, que depois se reflete numa penetração, com grande sucesso, nas escolas. São figuras que se transformam em estrelas, cujo único traço minimamente rebelde é a crítica que fazem às políticas progressistas dos Estados Sociais-Democratas das últimas décadas. É perverso e paradoxal. [Trata-se de] uma indivídua que beneficiou do Estado e das políticas sociais-democratas, que é, ela própria, um resultado histórico disso. Agora, face ao descalabro do neoliberalismo, ela transforma em inimigo aquilo que a criou, desenvolvendo uma capacidade de liderança junto a jovens que estão frustrados com as suas condições de vida, mas não identificam a origem do problema. Não é surpreendente que sejam sobretudo rapazes a aderir a esta narrativa: eles estão a sentir-se ultrapassados, a perder o privilégio que lhes foi atribuído à nascença de serem eles os líderes numa relação. A questão de género torna-se logo uma questão política importante. Perante as dificuldades laborais ou de habitação, em vez de se revoltarem contra o sistema, [esses jovens] colocam o assunto em termos de capacidade, de sucesso, de meritocracia, sentindo-se extremamente frustrados por não conseguirem.
Neste momento, há duas grandes vias atraentes para os jovens: a neoliberal, representada pela Iniciativa Liberal, assente na ideia de meritocracia e de sucesso, que não dá grande atenção às questões de morais e costumes, e a do Chega que, supostamente, representa uma certa rebeldia contra o discurso dos professores que lhes falam de igualdade de género, democracia e igualdade de género. Esta é a pior situação para um pensamento progressista e de esquerda porque se torna difícil oferecer um discurso inspirador. Isto é dramático. E depois há uma certa tendência para a repressão, com algumas pessoas que chegam mesmo a sugerir a proibição destes partidos. Isso seria uma péssima ideia.
Como fazer então esse debate?
Diria que o mais óbvio será desconstruir esse tipo de argumentos, desmontar as mentiras, confrontar com os factos. O problema é que a linguagem e a lógica das redes sociais transformaram o mundo de tal maneira que já não interessa se há mentira, interessa é aderir ao grupo. Neste momento, nos Estados Unidos, há pessoas que defendem que, quantas mais vezes [Donald] Trump for a tribunal, mais os seus apoiantes o defendem, porque está pré-estabelecida a ideia de que há uma perseguição. Estamos num momento de enorme irracionalidade. Não adianta desmontar as mentiras de [André] Ventura, até porque isso tem sido feito sistematicamente por alguns bons jornalistas. É bom que isso continue a ser feito, mas não é isso que vai fazer com que as pessoas mudem de ideias.
Qual é a alternativa?
Temos de pensar nas transformações pelas quais estamos a passar como sendo temporárias. Isto já aconteceu no passado, o tipo de argumentos é muito semelhante aquele que era usado nos anos 1930 e 1940. A questão é que o universo de discurso e de linguagem é mesmo diferente. Muda a cognição, a forma de ver o mundo. E isso é um verdadeiro problema. Uma das formas transitórias de lidar com isso é apanhar o mesmo barco, que é uma coisa que a esquerda, a academia, os movimentos sociais e as pessoas mais preocupadas com estes assuntos não fazem. Não percebo porque é que os movimentos sociais e a esquerda não estão também no Tik Tok. Dir-me-ão que têm diferentes níveis de exigência, critérios éticos, etc, mas há inúmeras formas de ser mais popular na transmissão de ideias, motivar as emoções e mobilizar as pessoas. É preciso haver essa mobilização que tem também de ser emocional. E isso não tem acontecido. Porque é que não há lideranças de esquerda entusiasmantes?

Porquê?
Não sei, não percebo, embora suspeite que tenha a ver com os percursos sociais e biográficos, as origens de classe, o estatuto social, as desigualdades da sociedade portuguesa que fazem com que grande parte das pessoas que pensam à esquerda venham de todo um percurso social muito desligado da realidade das pessoas que agora aderem ao Chega. Aquilo que permite níveis de educação e de cosmopolitismo que, depois, podem levar as pessoas a ser progressistas e de esquerda, não deixa de ser resultado da desigualdade profunda de Portugal. E isso tem um reflexo nas atitudes e na forma por vezes um bocadinho arrogante como se olha para as coisas. É muito fácil a um populista de direita apanhar isso.
Costuma dizer que uma das melhores coisas em ser professor é ter, todos os anos, o futuro diante dos olhos. Qual a sua perceção em relação à tendência de uma possível clivagem ideológica entre géneros na geração Z?
Há pouca gente em antropologia e tenho muitos alunos estrangeiros, não é de facto a melhor amostragem, mas há estudos sobre isso. Está a registar-se toda uma movimentação identitária entre os jovens rapazes, homens que estão a fazer da igualdade de género o inimigo, e alternativa que encontram é voltarem-se para idealizações da masculinidade profundamente machistas. Isso nota-se entre os apoiantes do Chega. A figura da [Rita] Matias não está lá para liderar raparigas, mas rapazes.
É a rapariga gira e despachada, mas que vem dizer coisas contra a igualdade. A partir do momento em que a igualdade de género foi promovida e as raparigas conseguiram passar o espaço público, adquiriram skills que as capacitaram e empoderaram, e eles sentem que o único capital que tinham está a perder-se. Todos os movimentos autoritários, superconservadores e fascizantes mobilizaram mais o campo masculino. Há aqui uma ligação umbilical com o patriarcado.
No final do dia, é tudo uma questão de poder (e de privilégio)?
Claro e é por isso que as questões de género não são secundárias. As formas de poder político, de poder económico e o patriarcado estão completamente imbricadas umas nas outras. A capacidade de defesa dos trabalhadores já foi completamente implodida. Resta-lhes implodir a capacidade de defesa da igualdade de género. Por isso é que estes movimentos de Extrema Direita têm um foco tão grande nestas questões. Não é para distrair das questões laborais, como alguma esquerda diz. É, isso sim, por ser o que ainda falta fazer.
Diria que a esquerda tem mais dificuldade em agregar-se?
Isso explica-se facilmente. Quando se está poder, ou quando se tem um poder historicamente herdado, dá-se muitas abébias porque sabe-se o que é importante. É fácil para as direitas unirem-se porque elas sabem onde reside o núcleo do poder e têm os recursos para o manter. As esquerdas, como vivem de questionamento e de pensamento crítico, são mais plurais e isso resulta em lutas internas e interesses específicos. Portanto, é da natureza do poder e da falta dele que vem esta capacidade de unir e agilizar por uma parte do poder e da incapacidade da parte do contrapoder. O que me parece necessário não é a eliminação desses desentendimentos na esquerda. O mais importante é fazer um trabalho de coligação e plataforma: conseguir ligar o antirracismo com o feminismo, com o LGBT, com o sindicalismo. Coligar estas diferentes formas de estar numa plataforma dos direitos humanos fundamentais. As estratégias de coordenação são muito importantes e a experiência histórica diz-nos isso.
Para finalizar, e de um ponto de vista mais pessoal, como é que alguém que esteve tão envolvido em lutas pela conquista de direitos, gere este momento? Ganha a frustração ou ‘a luta continua’?
É tudo isso misturado. Tento ser tranquilo e pensar: ‘calma. Uma coisa são os movimentos que se estão a aproveitar do atual quadro político, outra coisa é o que está realmente a acontecer’. Barafustar muito e dar muita plataforma a estes movimentos reacionários é alimentá-los em demasia. É preciso distinguir o verdadeiro perigo do ridículo. Por exemplo, o livro Identidade e Família não é para dar importância. Agora se o [Luís] Montenegro vier com uma proposta de mudança na lei, aquelas coisas pequeninas que depois têm efeitos multiplicadores, então é preciso mobilizar.
Está vigilante?
Sim, mas quem tem de estar vigilante são os nossos representantes políticos (à esquerda), que devem reclamar a autoridade constitucional. A legislação está lá e não é para mudar sem mais nem menos. Qualquer mudança exige debate. Por enquanto, ainda não aconteceu nada, são apenas grupelhos a tentar impressionar. Enquanto isso não passar para o lado civilizado do poder não estamos tão mal assim, mas temos de estar atentos. Do ponto de vista pessoal, tenho um certo realismo cínico, sei que as coisas avançam e recuam, mas há uma linha vermelha: quando se trata de direitos adquiridos não é para voltar atrás. Assim que um direito estiver a ser posto em causa pode haver uma grande mobilização para a sua defesa e acredito que isso acontecerá. Mas vivemos uma situação frágil em que nenhum ator político sabe o que se vai passar daqui a uns meses. Portanto, nada está completamente estabelecido no sentido dessa viragem à direita.
