Histórias de Amor Moderno: “Há que arriscar um bocadinho quando achamos e sentimos que vale a pena”
“O desejo um pelo outro começou a regressar aos poucos. Os nossos corpos voltaram a procurar-se e a dar e a sentir prazer.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Eu dantes lavava o cabelo de duas em duas semanas. Usava champô seco e tomava os meus duches de cabeça coberta, com uma touca, mas não podia molhar o cabelo. Só depois de vir para Portugal alterei a minha rotina. Embora continue a não enxaguar o couro cabeludo todos os dias, aumentei a frequência da lavagem com água e champô para duas ou mesmo três vezes por semana. Pode parecer um detalhe, mas não é. As minhas rotinas afastavam-me do Tiago. Tomávamos banho cada um na sua vez, porque o meu era um duche rápido e cirúrgico, meramente funcional, ao passo que o dele era um momento de relaxamento e de auto-cuidado em que aproveitava para descontrair.
Começámos a tomar banho juntos de vez em quando, isto depois de eu adotar estas novas rotinas. Na minha cidade, São Petersburgo, quando eu era criança e adolescente e vivia com os meus pais, tudo era racionado. Não sei se era assim em toda a cidade, muito menos se era costume em toda a Rússia. Mas era assim em minha casa: não dávamos por adquiridos os bens e os confortos de que dispúnhamos, tudo se usava e consumia com parcimónia. A água do banho não era exceção. A princípio de estar em Lisboa, o Tiago metia-se comigo, brincava, perguntava-me se eu tinha medo que a água acabasse. Aos poucos, percebi que vivia condicionada pelo passado, mas que a minha realidade era outra agora, bem diferente. Aprendi a descontrair e a equilibrar.

No banho, costumava brincar com o Tiago por causa dos sinais que tem nas costas. Desde que começámos a falar, ainda à distância, que ele mos descrevia com uma certa urgência, como se tivesse medo que eu, ao vê-los, me assustasse, e então quisesse que eu soubesse deles. Descrevia-mos com detalhe, como eram grandes, castanhos e de várias formas. Alguns tinham pelos. Podiam ser perigosos, dizia-me, e eu imaginava pequenos sinais nas suas costas a serem agressivos ao toque. Perguntava-lhe se mordiam. E assim brincávamos com aquela sua particularidade. Acredito que isso o ajudou a deixar de recear a minha reação quando me mostrasse o seu corpo. E também me ajudou a imaginar o corpo dele com aquelas pequenas imperfeições, como se fosse uma versão personalizada com marcas exclusivas na pele.
Eu conheci o Tiago quando estudava na Polónia. Ele estava em viagem, andava pela Europa sozinho, de comboio, percorreu uma série de cidades do centro e do Leste europeus. Quando passou por Cracóvia, o acaso levou a que nos cruzássemos num bar onde a cherry vodka era barata. Eu estava com um grande grupo de amigos, ele estava a beber sozinho e acabou por juntar-se a nós, não sei bem como. Se calhar, nem há explicação nenhuma. Sei que falámos um bocadinho, ficou claro que nos sintonizámos um com o outro. Não aconteceu nada de especial, demos só um beijo meio de raspão na despedida, mas começámo-nos a seguir mutuamente no Instagram. E a partir daí fomos conversando, fomo-nos conhecendo e gostando cada vez mais um do outro.
Pouco tempo depois, regressei à Rússia e isso dificultou um pouco as coisas. Para ele, era difícil visitar-me em São Petersburgo, as viagens eram caras e a burocracia elevada. Para mim era menos difícil visitar Portugal, mas também não o podia fazer com muita frequência, por ser um grande esforço financeiro. Até que entretanto mudei de emprego para um que me permitia trabalhar à distância. E decidi que viria para Lisboa. Nenhum de nós sabia se nos íamos dar bem ou não. Felizmente, pensamos da mesma forma em relação ao assunto: às vezes, não se deve pensar muito. Há que arriscar um bocadinho quando achamos e sentimos que vale a pena.

Vivíamos juntos há pouco tempo num pequeno apartamento do centro da cidade quando começou a pandemia. Deu-se então uma curiosa e assustadora sucessão de eventos: começaram os confinamentos, o mundo fechou fronteiras e eu descobri, ao fim de apenas oito meses com o Tiago, que estava grávida. "Enfim, uma boa notícia", foi assim que a família dele recebeu a novidade. A minha, à distância, também pareceu ficar feliz. Mas acredito que todos ficaram apreensivos - pela rapidez com que tudo acontecera, pelo momento difícil que se vivia no mundo. Também nós estávamos receosos, embora felizes. Aos poucos, a ideia de sermos pais foi-se materializando, fomos concebendo tudo o que implicaria, mas também toda a maravilha que é ter um bebé, uma vida nova, uma criança nossa. Meses mais tarde nasceu a Vitória.
Quando engravidei, já os banhos com o Tiago se tinham tornado um ritual. Metia-me com ele, dizia-lhe que os seus sinais eram como as nuvens e que lembravam animais. Só que eram nuvens escuras. E ríamo-nos. Dizia-lhe também que pareciam pinturas rupestres, feitas por homens das cavernas que tentavam pintar seres unicelulares, ou plantas carnívoras, ou conchas tortas daquelas que apanhamos na praia, já roídas pelo mar e pelo tempo. Quando a Vitória nasceu, as nossas rotinas voltaram a mudar, porque um bebé - um primeiro bebé - muda toda a nossa vida. Nós os dois deixámos de ser primeiro que tudo um casal para passarmos a ser, antes de mais, os pais da bebé. Só depois, se sobrasse tempo, energia, disposição e vontade podíamos, então, ser um casal.
Não sei como acontece com os outros casais depois de terem um filho. Não sei como decorre o regresso à normalidade, sendo que a normalidade nova nunca será igual àquela que existia antes do bebé. No nosso caso, as coisas foram progressivamente ocupando o seu lugar de uma maneira natural e espontânea. A Vitória foi crescendo, passou de bebé de berço a bebé que gatinha e depois a bebé que consegue pôr-se de pé e andar. Sem darmos conta, já era uma criança, já dizia palavras, já pedia coisas. E nós os dois fomos, aos poucos, procurando aquilo que ficara adormecido ao longo de praticamente dois anos. O desejo um pelo outro começou a regressar aos poucos. Os nossos corpos voltaram a procurar-se e a dar e a sentir prazer.

Matámos saudades dos nossos longos banhos juntos, do nosso momento de descontração e de carícias. E foi num desses banhos que, olhando para o céu de nuvens negras que são as costas do Tiago, um dos sinais me despertou a atenção. Parecia que um homem das cavernas tinha perdido o controlo e o tinha desenhado cheio de arestas. "Este sinal tem um tom diferente, Tiago", disse-lhe. Parecia azulado. Dantas era castanho. Ele tentou ver no espelho, mas não conseguia. Fotografei e mostrei-lho. Ficou alarmado.
No dia seguinte, começou uma nova etapa. Foi ao médico, fez análises. Esperámos pelos resultados, muito mais do que gostaríamos de ter de esperar. Tudo era inconclusivo. O médico sugeriu que aguardássemos para perceber se havia desenvolvimento do próprio sinal, mas o Tiago disse logo que não. Não podíamos ficar de braços cruzados, à espera que as más notícias se materializassem. Conseguimos marcar uma cirurgia para extração do sinal.
Têm sido, desde então, tempos muito difíceis, muito dolorosos, feitos de medo e de ansiedade. "Na saúde e na doença, na esperança e no desespero", é este o meu mantra, todas as manhãs. Não nos casámos oficialmente, mas somos o amor um do outro e estamos aqui um para o outro, juntos, aconteça o que acontecer. E somos os pais da pequena Vitória, a maior preciosidade das nossas vidas. Quando os primeiros resultados chegaram, confirmaram os nossos receios. Melanoma. É uma doença feia e perigosa. Aparentemente, conseguimos detetá-la a tempo. Ainda não é demasiado tarde, pelo menos. Mas aflige-me e assusta-me. E entristece-me muito. Quando vejo o Tiago a olhar para a filha consigo sentir-lhe o medo no olhar. O medo de deixar de a ver em breve. E o meu amor por ele cresce, o meu amor por nós torna-se gigantesco, e desejo com todas as minhas forças que este pesadelo tenha uma solução e que possamos tomar os nossos banhos juntos até sermos velhinhos. Seria demasiado injusto perder assim o meu amor depois de o ter encontrado por acaso e de termos arriscado tudo com tanta paixão. *Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
