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Histórias de Amor Moderno: “Não fui capaz de mentir à minha melhor amiga”

“O Sebastião tinha sido nosso colega de turma durante o ciclo preparatório, do sétimo ao nono ano. E tínhamos dado beijinhos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
15 de junho de 2024 às 17:53 Maria Olívia Sebastião

Tínhamos 10 anos quando nos conhecemos. Calhou ficarmos ambas do 5.ºD, a Magda era o número 17 e eu, Madalena, o 18. A professora de Português, que era diretora de turma, sentou-nos por ordem numérica, o que nos juntou na mesma secretária. Nasceu ali, naquele preciso momento, uma amizade para toda a vida, com direito a juramento com mindinho e tudo - e continuo a acreditar que a nossa relação acabou por não ser como jurámos uma à outra por causa de umas fatias de fiambre. A Magda iria discordar. Na cabeça dela, tudo terá sido culpa minha, por lhe ter ficado com o namorado, muitos anos mais tarde. E eu sei que isso definitivamente acabou com a nossa amizade. Mas acredito que se ela tivesse mantido o mindinho com que me jurara fidelidade (enganchando-o no meu e fechando os olhos com toda a convicção, "juro ser tua amiga para sempre"), nada do que veio a suceder, anos mais tarde, teria acontecido.

Os pais da Magda tinham uma mercearia e era para lá que íamos todos os dias depois da escola, a não ser quando tínhamos aulas até ao último turno. Quando isso acontecia, eu ia diretamente para casa, porque a essa hora a minha mãe já tinha saído do trabalho. Nos restantes dias, e para que eu não ficasse sozinha, a Dona Dolores, mãe da Magda, fazia aos meus pais o favor de me acolher por umas horas. Dava-nos lanche e vigiava-nos para garantir que fazíamos os deveres, embora na maior parte do tempo estivesse a atender clientes e nós nos distraíssemos com a televisão. Ao lanche, bebíamos sempre um pacotinho de leite achocolatado e comíamos carcaças com qualquer coisa, queijo flamengo, mortadela, chourição ou fiambre. Ocasionalmente, a Dona Dolores abria uma embalagem de Tulicreme e dizia "vá lá, só desta vez", mas era muito raro. "Tem muito açúcar, faz-vos mal", dizia, para desagrado da filha, que fazia má cara - "quando cresceres, hás de me agradecer", repetia sempre. Cuidava muito bem de nós, a Dona Dolores.

De tudo o que podíamos meter no pão para fazer as sandes do lanche, o que eu mais gostava era o fiambre, que a Dona Dolores cortava fininho, fininho - tão fino que quase dava para ver através das fatias. Era delicioso, porque assim podíamos juntar várias fatias leves e saborosas. Num dos nossos lanches, a Magda preferiu queijo e eu, como quase sempre, fiambre. Na vitrine refrigerada, havia uma pequena pilha de queijo fatiado, mas de fiambre só restavam algumas aparas. Como a Dona Dolores estava ocupada a atender as freguesas e a fazer anotações nos seus caderninhos das contas, a Magda perguntou-lhe "mãe, onde está a barra de fiambre", e a mãe, distraída, disse-lhe "na porta da esquerda, aí em baixo" e não deve ter voltado a pensar no assunto. Pelo menos, até ter ouvido Magda ligar a fiambreira. Gritou, muito assustada, "Magda!", Magda olhou de repente para a mãe, desviou o olhar da máquina e enfiou o mindinho direito na lâmina.

Houve muito sangue, muitos gritos e o choro estranho da minha melhor amiga. "Isto não doi, não me doi nada", repetia, enquanto chorava, provavelmente de susto. "Só sinto a mão muito quente", dizia, insistindo para que a mãe se acalmasse. Dona Dolores, porém, estava descontrolada e não sabia o que fazer primeiro, se cuidar da filha, se procurar a ponta do mindinho cortado em vez do fiambre, se correr com a clientela que ali estava, especada, boquiaberta, muito impressionada, a não querer olhar, mas sem conseguir evitar fazê-lo, e a dizer coisas como "ai, valha-me Deus", "coitadinha da menina, e agora", "não posso ver sangue que desmaio", entre outras preciosidades.

Eu, como melhor amiga, fiz o que me competia: abracei a Magda, disse-lhe "tem calma, eu cuido de ti", peguei num pano que estava em cima do balcão de alumínio e entrapei a mão dela, de onde o sangue não parava de jorrar. Depois sugeri à Dona Dolores que telefonasse a alguém, aos bombeiro ou ao Senhor Manuel, o pai de Magda. "Ela tem de ir ao hospital." A Dona Dolores lá se organizou: mandou sair as mulheres que não compravam, nem pagavam, nem se calavam; pegou no telefone e ligou ao marido; fechou a porta da loja e perguntou-me "vens connosco ou vais para casa, querida?" Eu fui com eles. Mas nenhuma de nós se lembrou mais da ponta do mindinho de Magda, que ali ficou, abandonado, viríamos a descobrir mais tarde, debaixo de uma das arcas frigoríficas. E assim se perdeu uma parte preciosa dos instrumentos com que jurámos lealdade uma à outra.

O pequeno desastre da fiambreira deixou entre nós um rancor silencioso. Eu acreditava que o descuido de Magda amputara não apenas duas falanges do seu dedo pequenino, mas também o nosso pacto espiritual; ela ficou ressentida comigo, embora não o admitisse, mas eu sentia-o - afinal de contas, era para mim o fiambre que ela ia cortar quando se deu o acidente. Contudo, continuámos amigas, fizemos juntas o liceu, entrámos para a faculdade no mesmo ano e, embora fizéssemos cursos diferentes, conseguíamos estar juntas muitas vezes.

Foi já depois de terminarmos as licenciaturas que, de regresso à nossa terra, a Magda começou a namorar com o Sebastião. Achei curioso, pois o Sebastião tinha sido nosso colega de turma durante o ciclo preparatório, do sétimo ao nono ano. E tínhamos dado beijinhos, eu e o Sebastião, durante a festa de finalistas da escola. Claro, tinha sido uma coisa inocente. Mas foi o culminar de três anos a olhar um para o outro com vergonha e a esconder aquilo que os adolescentes ainda nem sabem o que é - na adolescência, uma pessoa apaixona-se muito e muitas vezes, perdi a conta aos rapazes que fizeram o meu coração acelerar; só com o passar do tempo ficamos a saber que isso não passa de atração e está longe de ser paixão de verdade.

De um modo ou de outro, eu e o Sebastião acabámos num cantinho a dar beijos a sério, com línguas fundas e irrequietas. E eu nunca contei o episódio à Magda. Ou, melhor, só lhe contei quando ela me disse que namorava com o Sebastião. "Que engraçado, eu e ele curtimos no fim do nono ano", disse-lhe eu, sorrindo. E a expressão da Magda mudou, como se o vigor lhe tivesse caído pelo rosto abaixo. "Que giro", disse ela. "Ele não me tinha contado nada. E tu também nunca me contaste."

O meu reencontro com o Sebastião fez-me mais mossa do que eu podia esperar. Qualquer coisa nele fez estranhamente com que voltasse a sentir aquela atração adolescente que fazia palpitar os corações mais inocentes. Só que, aos 22 anos, os corações já não são tão inocentes quanto aos 14. E o dele também me parece ter palpitado. A Magda terá pressentido o perigo e começou a evitar-me sempre que estava com o namorado. Combinava comigo, sim, mas desde que os programas não incluíssem o Sebastião. Eu compreendia, claro. Não era uma situação fácil. Ela não tinha como protestar com um ou com o outro por causa de uma coisa que era apenas uma suposição na cabeça dela e nada mais. Só que o destino, o mesmo que lhe pregara a partida da fiambreira, fez-me cruzar com o Sebastião, sem a Magda por perto. Foi num encontro de antigos alunos da nossa turma. A Magda não pôde ir porque estava fora, tinha ido acompanhar a mãe num tratamento complicado a Lisboa - a pobre Dona Dolores tem alguns problemas de saúde, possivelmente relacionados com o tempo que passou e ainda passa de pé atrás do balcão da mercearia.

Não éramos muitos nesse jantar. De uma turma de 28 ou 29 alunos, apenas 13 compareceram. E eu e o Sebastião acabámos por começar a falar precisamente porque ele se tinha tornado o namorado da minha melhor amiga. A conversa, todavia, ficou rapidamente intensa e acho que ambos percebemos que a química que havia entre nós no nono ano foi sobrevivendo até àquele momento. Sem inocência e sem os constrangimentos de se ter apenas 14 anos, desta vez não nos ficámos por beijinhos secretos num canto escuro. Acabámos em minha casa.

Entre mim e o Sebastião não houve mais nada. O que aconteceu naquela noite foi como uma espécie de tira-teimas, de acerto de contas entre nós e o passado, da concretização, finalmente, de qualquer coisa que tinha ficado por fazer e tinha mesmo de ser feito. Eu não tencionava contar nada à Magda, mas algum dos nossos ex-colegas foi alertá-la para a proximidade e para a química que todos à mesa tinham notado entre mim e o Sebastião. E a Magda veio confrontar-me com esses comentários. Perguntou-me se tinha acontecido alguma coisa. E eu não fui capaz de mentir à minha melhor amiga. Eu jurara-lhe lealdade tínhamos nós 10 anos. Seria incapaz de lhe mentir num assunto desta gravidade.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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