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"Eu vi vidas serem destruídas do ponto de vista social e familiar" Francisca Avillez, sobre o vírus da SIDA

Referência incontornável no que diz respeito à investigação sobre o vírus da SIDA, Francisca Avillez é uma das portuguesas que mais fez na área da virologia. Formada em Biologia, destaca-se pela humanidade, pela persistência e pela inteligência, combinação que faz dela uma profissional exemplar e por diversas vezes reconhecida.

Foto: Pedro Ferreira
15 de agosto de 2019 às 07:00 Rita Silva Avelar

Francisca Avillez entra com uma certa hesitação no espaço onde se realiza esta fotografia, mas, no final, sai com um semblante descontraído e feliz, revelador de uma alegria que faz tudo valer a pena. Fazer tudo valer a pena é uma expressão que, aliás, lhe assenta na perfeição. Bióloga de profissão, Francisca Avillez (Lisboa, 1948) dedicou uma vida à ciência, à saúde e às pessoas. É uma das portuguesas que mais fez pela virologia, a sua área de especialização em laboratório. Quando o vírus da SIDA surgiu, na década de 80, esteve na linha da frente da investigação numa era que, nesse particular, estava repleta de incertezas, de pânico e de dor e em que nada se sabia acerca de um vírus que haveria de contagiar milhões. Da bancada do laboratório passou para o frente a frente com as pessoas para as informar sobre os resultados dos exames, o que ninguém queria ouvir por ser uma doença fatal e por também estar envolvida em preconceitos sexuais, raciais e sociais. Uma mulher de ideias fortes, de uma humanidade indiscutível e uma sabedoria na ciência, Francisca Avillez continua a tomar decisões importantes como Membro da Comissão de Ética do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). O pai, José Maria Avillez, exigiu-lhe um curso superior, tal como às duas irmãs, por ter sido educada numa família que incentivava os estudos. Licenciou-se em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1972, ainda que a Matemática fosse a primeira área a fasciná-la. Em 1977, realizou uma pós-graduação em Saúde Pública, tendo feito parte da primeira vaga de estudantes não médicos a fazê-lo. Daí em diante dedicou-se a áreas de investigação, como culturas solares e microscopia eletrónica, e depois à virologia que havia de se tornar a área à qual dedicaria o maior tempo e empenho. Foi coordenadora do laboratório de virologia e do laboratório de referência da SIDA do INSA, no qual desenvolveu a maior parte da carreira. Foi consultora da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1989 e 1990 (em França, na Costa do Marfim e no Zaire). Entre 1998 e 2000 foi assessora da direção do Instituto Português do Sangue para a área das doenças infecciosas e, mais tarde, haveria de ser vogal, de 2006 a 2009. De 2002 a 2012 fez parte do Conselho Deontológico da Ordem dos Biólogos e é na atualidade membro da Comissão de Ética do INSA. Tem um total de 52 trabalhos publicados e 147 apresentados (sob a forma de comunicação oral ou poster) e realizou 63 conferências. Em 1984 recebeu o Prémio Ricardo Jorge, um justo reconhecimento da sua dedicação profissional e humana. Humanidade, essa, que ciências à parte é a essência da profissão.

A Francisca Avillez foi uma aluna exemplar a Matemática, mas optou por estudar Biologia. Como é que tudo aconteceu?

Eu sempre fui muito competitiva e queria ser sempre a primeira, tanto na escola como no desporto. Cheguei a ser campeã júnior de ténis em pares mistos. Em casa sempre fomos muito incentivadas a fazer desporto. Era muito boa a Matemática, mas no sexto ano achei que tinha de inverter as coisas por não gostar de um professor, o que pode fazer toda a diferença. Descobri, de repente, o mundo da Biologia e fiquei fascinada. Gostei muito do curso, mas estava ainda muito longe da área da saúde. Adorava ecologia e fisiologia. Todas as cadeiras me fascinaram, da genética à ecologia. Depois fiz o estágio em biologia marítima, mas nessa altura não havia lugares.

Foi desafiada a ensinar, mas preferiu a área de laboratório e começou a trabalhar em áreas como a microscopia eletrónica e depois a virologia. Era o que esperava?

Eu gostava de ensinar. Mas ensinar o que sabia e, naquela altura, saíamos do curso e sentíamos que não sabíamos nada. Eu queria ensinar algo prático e no laboratório, estando à bancada a ver as coisas evoluírem, é totalmente diferente. Depois fui para o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, onde fiz a minha carreira. Sempre que não concordava com alguma coisa, "batia com a porta"...

Fez parte do primeiro grupo de não médicos a integrar o curso de Saúde Pública. É verdade?

Foi pouco depois do 25 de Abril que decidi fazer esse curso. Era um curso só para médicos e que depois foi adaptado a não médicos. Eu trabalhava as sete horas diárias de trabalho, depois ia para o curso (de quatro horas por dia), ainda fazia trabalhos e tive um estágio no distrito de Setúbal, um dos mais complicados no pós-25 de Abril. Nessa altura eu já tinha dois filhos. Existia um grande espírito de sacrifício. As pessoas "vestiam as camisolas" das instituições. Foi das alturas em que aprendi mais.

Assistiu ao nascer do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como é que vê o estado da saúde, hoje, em Portugal?

Eu assisti ao nascer do SNS. É das coisas mais importantes que o país tem. É fabuloso, mas também tem falhas, como é evidente. A essência e a base estão lá e se as perdermos quem vai sentir mais serão as pessoas mais frágeis, mais idosas e mais carenciadas. A sinergia entre o público e o privado, para mim, é essencial. Cabe ao Estado revelar essa ligação e o espaço que cabe a cada um. Isto é claro como a água. Eu lembro-me que no laboratório da SIDA fazíamos vários estudos, nos quais o ministério [da Saúde] se apoiava para tomar decisões (…) para se fazer prevenção. O estado tem de se basear em estudos e eu penso que isso o privado nunca irá fazer.

Como recorda o tempo em que trabalhou na área da SIDA? Quanto tempo esteve no estrangeiro e como foi estudar um vírus que careceu de investigação imediata?

Eu criei o laboratório de referência da SIDA. Nós nem tínhamos tempo para realizar. Aconteceu tudo ao mesmo tempo. Era montar técnicas, era aferir essas técnicas, era ir ao estrangeiro aprender coisas, era ensinar às pessoas… Mas para além da parte técnica, havia um lado humano que era urgente ensinar. Como comunicar o resultado às pessoas, como falar com as famílias… Nós começámos do zero com os primeiros casos. Os médicos não queriam, muitas vezes, ser eles a comunicar os resultados. Foram milhares de resultados positivos que as minhas colaboradoras e eu própria tínhamos de comunicar. Cada caso que nós dávamos era uma sentença de morte. Havia muito preconceito. Eu vi vidas serem destruídas do ponto de vista social e familiar (…). As pessoas eram marginalizadas.

O que é que esses anos lhe ensinaram?

O INSA é a minha casa, onde há uma cultura e uma escola muito especial que eu não encontrei em mais lado algum do ponto de vista profissional, técnico, científico e humano. Primeiro porque andávamos sempre em estado de emergência… Aparecia um vírus, depois uma bactéria, depois um parasita… O instituto é importante para quem lá está e as pessoas sentem-se honradas, continuando a existir uma grande humanidade.

Alguma vez se sentiu discriminada como mulher?

Não. Mas como bióloga, sim. Há 50 anos era muito mais difícil e sobretudo sendo bióloga. Eu era mulher e bióloga. Lembro-me quando houve a cerimónia de posse para eu ser subdiretora do INSA, no ministério da Saúde, eram sete homens e uma mulher: eu. Dentro da área da Saúde, os lugares da direção eram fundamentalmente para homens. Hoje em dia isso mudou.

Qual é a doença mais preocupante da nossa geração?

Eu acho que são sempre as que estão para vir. São sempre as mais preocupantes. Nós nunca sabemos o que está para vir. Quando fiz Saúde Pública dizia-se que as doenças infecciosas tinham acabado. O problema são as doenças crónicas… Logo a seguir apareceu o HIV e, mais tarde, o Ébola. Nós nunca sabemos. Neste momento, as bactérias "resistentes" são um grande problema, por exemplo…

Como foi afastar-se da bancada, cada vez mais em direção à liderança, ao longo dos anos?

A evolução normal das pessoas é, a certa altura, serem cada vez mais afastadas da bancada do laboratório, das análises e da investigação e irem para lugares de direção. É a evolução natural das coisas. Eu tive essa perceção no dia em que peguei numa pipeta com sangue infetado com HIV e ao pipetar não correu bem. Percebi que estava na hora de me afastar da bancada… A partir desse dia nunca mais estive à bancada. Continuei a investigar, mas de outra maneira.

Acabou por fazer uma vida de investigação sem nunca ser investigadora…

O que aconteceu foi que, a certa altura e em determinadas instituições da Saúde, foi criada, em paralelo com a carreira técnica ou médica, a carreira de investigação. E quem queria candidatava-se. Era uma carreira mais apelativa e ganhava-se mais. Candidatei-me e fui colocada como assistente de investigação quando eu achava que já tinha currículo para investigadora. Recorri e ganhei. Só que o júri era o mesmo e voltou a colocar-me como assistente com a justificação de que as hierarquias nas carreiras tinham de ser mantidas e que eu era muito nova. Se não me tivesse sido dada aquela justificação talvez eu tivesse aceitado, mas achei que era uma injustiça… E quando eu disse que não ia para essa carreira e que iria ser técnica, as pessoas mal puderam acreditar. A certa altura, o diretor do Instituto veio-me pedir para ser júri na carreira de investigação e eu poderia ter tido a atitude de dizer que não ia, mas fui antes mostrar que era melhor do que todos eles. Assumi a investigação não pertencendo à carreira de investigação e publiquei muitos trabalhos... Eu fui feliz.

Foto: Pedro Ferreira
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