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Desabafos no Masculino: nenhum gesto político é inofensivo

Há inevitavelmente consequências e ondas de choque que se sucedem a cada decisão política. E, por norma, os mais expostos a essas consequências configuram casos de sofrimento silencioso.

A Mulher na Janela (2021)
A Mulher na Janela (2021) Foto: IMDB
02 de dezembro de 2025 às 15:49 Diego Armés

Esclarecimento antecipado: não se pretende com este texto demonstrar uma relação causal direta, nem denunciar uma conspiração absurda que vise expor as mulheres a situações de risco através de uma intrincada sucessão de decisões políticas de valor e intenção questionáveis. O que se pretende, isso sim, é deixar claro que, em sociedade, nenhum gesto ou ato políticos são inofensivos num plano geral. Para o constatar, basta que olhemos para os numerosos pequenos detalhes que compõem a big picture.

Esses atos, gestos e decisões assumem particular relevância quando interferem com o rendimento e com o custo de vida dos cidadãos. Nesses casos, os indivíduos que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade estarão, então sim, mais expostos aos efeitos nefastos e às consequências graves que advêm das interferências em questões de rendimentos e custo de vida.

Feito o prelúdio, concentremo-nos no assunto central. Assinalou-se a . A designação do dia, embora longa, é útil e eficaz porque não deixa qualquer dúvida relativamente ao que trata. O assunto está devidamente identificado. Por cá, e apesar da importância urgente que o nome denuncia, a data foi como que gentrificada e obrigada a habitar o pouco espaço mediático que sobrou do 25 de Novembro com N maiúsculo, que pôs a Assembleia da República a lutar pela proeminência das rosas brancas e pela resistência dos cravos vermelhos sem que, contudo, alguém pudesse explicar conveniente e claramente porque é que alguns pretendem festejar tão exuberantemente esse 25 de Novembro. Mas esse é outro assunto, que não cabe aqui agora - isto, embora, como anunciado no prólogo, nenhum gesto ou ato esteja politicamente isolado numa sociedade civilizada (ou, como escreveu John Donne, “nenhum homem é uma ilha”, que serve perfeitamente de metáfora para o que digo).

Uma merece da minha parte - e, acredito, devia merecer da parte de todos os que a compreendem - o maior otimismo. Não porque acredite que é um problema de simples resolução nem um flagelo fácil de combater, mas antes porque, além do movimento de consciencialização através de, por exemplo, a instituição do Dia Internacional, há casos em que o combate efetivo começa a traduzir-se numa redução do número de casos. Obviamente, qualquer caso de violência será sempre um caso a mais, mas não deixa de ser positiva esta quebra.

Infelizmente, o caso a que me refiro não ocorre em Portugal, país onde os números não param de subir essa realidade parece estar a mudar); contudo, a redução do medo e do silêncio são fraco consolo quando os números mostram mais de 30 mil casos anuais de violência doméstica, dos quais resultam, por ano e de forma consistente, mais de 20 homicídios nesse contexto (em 2023, foram 28), sendo a esmagadora maioria das vítimas mulheres. Se quisermos ter uma ideia da brutalidade destes números, pensemos que, a cada duas semanas, há uma família desfeita por um homicídio em contexto de violência doméstica. Pensemos no que representa uma pessoa sentir a vida ameaçada dentro da própria casa - e voltarei a este ponto mais à frente.

O caso a que me referia, e que permite algum alento e um certo otimismo, acontece em Espanha, onde, em 2004, foi aprovada a Lei Orgânica sobre Medidas de Proteção Integral contra a Violência de Género. Essa lei diverge da maioria das que outros países europeus apresentam com o mesmo objetivo na medida em que é um projeto integrado e abrangente: as vítimas são protegidas com inteira prioridade e antes de outras demoras processuais; a proteção da vítima é também abrangente e articulada entre governo central, governos regionais e até autarquias, de modo a que não tenhamos vidas interrompidas, com vítimas infinitamente em fuga; as crianças têm proteção especial e as vítimas têm acesso a assistência jurídica especializada de forma gratuita. Além de todos estes contornos, que aqui apresento de modo genérico, existem, por exemplo, planos de contingência, como se viu durante os tempos de pandemia de covid-19 e subsequentes confinamentos, cujo contexto aumentava a vulnerabilidade das pessoas já em risco.

A implementação de todas estas medidas (que incluem pulseiras de distanciamento, por exemplo - uma espécie de invenção da roda ou de ovo de Colombo: se as pulseiras existem com outras finalidades, por que não aplicá-las nestes casos?) tem vindo a dar resultados. Desde que, em 2008, os números começaram a ser registados de modo uniforme e estável, em 2024 atingiu-se o mais baixo número de homicídios em contexto de . Isto, embora o número de queixas e denúncias se mantenha relativamente estável. Ou seja, se culturalmente o problema não está debelado, pelo menos a resposta institucional tem conseguido reduzir os trágicos números de fatalidades. Há progresso.

Por cá, não há motivo para celebrações. Pelo contrário. Se em Espanha os planos de contingência existem e há melhorias a registar, por cá a pressão socioeconómica não leva em conta as possíveis consequências para pessoas vulneráveis e em situação de perigo. Regresso ao ponto que, linhas atrás, deixei em suspenso: pensemos no que representa uma pessoa sentir-se ameaçada dentro da própria casa. É preciso refletir sobre isto numa altura em que um novo pacote laboral ameaça reduzir drasticamente as condições de trabalho e de subsistência de muitos trabalhadores, e principalmente dos menos habilitados e em situações mais frágeis.

A juntar a esse panorama mais que provável - mesmo acreditando que haja negociações, eventualmente algumas cedências, é inevitável que o grosso do pacote laboral avance, pois não existem no Parlamento deputados suficientes para fazer oposição às medidas propostas pelo Governo -, surge agora a notícia de que o executivo de Carlos Moedas na Câmara de Lisboa aprovou a redução do rácio de 20% para 10% na regra da “contenção absoluta” no Regulamento Municipal do Alojamento Local. Traduzindo: haverá mais licenças para Alojamento Local numa cidade - a capital do País, já agora - a atravessar uma profunda crise habitacional, onde os gastos com habitação superam, em média, os 100% dos rendimentos de cada indivíduo.

Esta estatística não é de sômenos: se um indivíduo não consegue pagar uma casa sozinho, vai ser obrigado a partilhá-la com alguém. Não é difícil extrapolar daqui para o que acontece numa situação de tensão familiar e doméstica quando as pessoas se veem impedidas de se emancipar pela simples e definitiva razão de ser financeiramente inviável. Pessoas em situação vulnerável e de risco ficarão presas na própria casa. No sítio onde são ameaçadas e de onde não vão conseguir fugir.

Como escrevi no início, não se pretende estabelecer uma relação de causa e efeito entre estas medidas dos governos do País e de Lisboa e um flagelo que transcende em muito as decisões políticas de quem quer que seja. Mas devemos sempre pensar nas ondas de choque que certas medidas provocam, nas consequências invisíveis e imprevistas em relatórios técnicos e de especialidade. E agora, uma vez mais, negligenciamos os casos de sofrimento invisível e silencioso.

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