Inês Marinho: "As imagens mostram o meu corpo, mas não mostram quem eu sou"
Exposta sem consentimento aos 21 anos, Inês Marinho transformou a violência machista em ativismo. A criadora da associação Não Partilhes luta hoje por uma lei mais justa e por uma internet menos cruel.
“Nunca me senti consagrada àquele tipo de rapariga que foi exposta. Acho que não mostra nada de mim, mostra o meu corpo e que sou uma pessoa sexual. E? Não mostra mais nada.” A voz de Inês Marinho é firme, limpa de hesitação. Fala como quem há muito deixou de temer as palavras. Tinha 21 anos quando descobriu que imagens suas, íntimas, tinham sido partilhadas sem consentimento na internet (nas redes sociais Telegram, Twitter e até em sites pornográficos). Não pensou que a vida ia acabar – pensou, antes, que alguém a tinha traído. “Não foi o fim do mundo. Foi o fim de uma confiança.” Ao contrário do discurso que ainda hoje culpabiliza as vítimas e exige delas silêncio e recato, Inês recusou o papel da mulher envergonhada. A culpa, como Gisèle Pelicot fez questão de sublinhar, “tem de mudar de lado”. Foi com essa convicção que, em 2020, a jovem criou a associação Não Partilhes, um projeto que nasceu da dor, mas cresceu em consciência coletiva. “Percebi que havia muita gente a passar pelo mesmo e que não sentia o que eu sentia. E pensei: ‘o que posso fazer com isto agora?’”
O que começou como um espaço de apoio a sobreviventes de partilha não consentida de imagens íntimas evoluiu para uma associação que atua em várias frentes: da educação digital à pressão política por leis mais protetoras. A Não Partilhes participa em conferências, petições e manifestos, em Portugal e fora dele, exigindo maior responsabilização das plataformas online e uma mudança cultural sobre o que significa partilhar – e violar – a intimidade de alguém.
A legislação atual, lembra Inês, ainda não chega. “Deveria ser crime público. Neste momento, se as imagens de uma mulher forem partilhadas, só há investigação se ela apresentar queixa. E muitas não o fazem, por vergonha, medo ou falta de confiança nas instituições.” Em 2021, o Código Penal foi alterado para incluir o crime de “devassa através de meio de comunicação social ou internet”, mas o enquadramento continua a depender da vontade da vítima. “É inaceitável que um crime destes dependa do silêncio de quem foi violentada.”
As imagens de Inês, que ocasionalmente voltam a circular em grupos de Telegram, já não têm o poder de a ferir. “Não conseguem ver se eu sou boa pessoa, se sou profissional, se sou verdadeira. Mostram o meu corpo, mas não mostram quem eu sou.” O que podia ter sido um ponto final tornou-se vírgula – o início de uma história de reconstrução.
Falou com a família, com os amigos, com o namorado. “Nunca tive vergonha. Ou se tive, não durou.” Foi da sua urgência prática que nasceu o ativismo. Hoje, Inês percorre escolas, universidades, empresas e organizações e fala sobre violência digital, consentimento e igualdade de género. Dialoga com partidos, participa em comissões europeias e insiste: “O foco é a proteção das vítimas – que neste momento é quase nula. Só há alguma proteção se for uma criança, ou se se conseguir enquadrar como violência doméstica, e mesmo assim é insuficiente”, diz. “Há muito a melhorar”, continua. “Nas leis, nas escolas, nos tribunais, na polícia, na forma como se recebe uma queixa. Só depois disso é que o crime se poderá tornar realmente público. E quando toda a gente que contacta com este conteúdo perceber que pode fazer a diferença, aí talvez as coisas mudem.”
Natural da Figueira da Foz, Inês estuda hoje Ciência Política e Relações Internacionais. O percurso académico é mais uma etapa num caminho já marcado por resiliência: durante o secundário enfrentou um cancro do sistema linfático. Falou publicamente sobre o tema, mas sem dramatismos. Aos 27 anos, não tem ambições partidárias, mas sonha com uma carreira diplomática. “Já estou a fazer um trabalho não partidário nesse sentido. É só continuar a fazer o que faço.”
No Instagram, mais de 60 mil pessoas acompanham o seu olhar crítico sobre desigualdade, machismo e direitos humanos. “A partir do momento em que tive redes sociais, aos 13 anos, comecei a falar publicamente sobre estes temas. E foi mais ou menos na mesma altura que comecei a sentir mais violência por parte da sociedade e dos homens.” O Twitter foi o seu primeiro palco – e o primeiro campo de batalha. “Criei a conta em 2009. Na altura, havia um machismo meio escondido. As pessoas não percebiam que certas atitudes eram abertamente machistas. Chamavam ‘brincadeira’. Mas se gozam comigo por estar ‘demasiado despida’, é porque sou mulher. Um homem não seria criticado da mesma forma.”
Assistiu, ao longo da década seguinte, ao despertar coletivo – e também ao retrocesso. “As pessoas começaram a ficar mais conscientes, mais ‘acordadas’, essa palavra que a direita adora usar, woke. Mas agora há uma resistência a essa consciência.” Refere-se ao backlash crescente contra o feminismo, contra direitos como o aborto e direitos LGBTQIA+. Refere-se a um tempo em que fenómenos como a “manosfera” crescem entre jovens, especialmente por meio das redes sociais e plataformas de vídeo, fóruns e grupos fechados no Telegram e Discord. Atraídos por discursos que aparentam dar-lhes voz – e que reclamam injustiças, masculinidade “em crise”, sugestões de que os homens são permanentemente vítimas de uma sociedade dominada por mulheres –, muitos jovens sentem aí um alívio momentâneo para frustrações pessoais, inseguranças ou solidão.
Há estudos recentes que mostram que influenciadores da “manosfera” têm cada vez mais alcance, promovendo ideologias antagónicas ao feminismo de forma sedutora, combinando conselhos de “automelhoria” com críticas virulentas à igualdade de género, oferecendo uma identidade reivindicativa, muitas vezes agressiva.
Inês Marinho observa que esse crescimento é facilitado por algoritmos, pela cultura do clique e por comunidades fechadas em que as ideias circulam sem grande escrutínio. “Eles dão respostas fáceis, culpam o outro”, comenta, “e há muitos miúdos a ouvir isso sem perceberem o peso do que estão a absorver”.
Além disso, há sinais de que os conteúdos misóginos estão a infiltrar-se no discurso quotidiano de jovens em escolas e online, normalizando comentários preconceituosos e minimizando comportamentos abusivos. Quando isso sucede, a lei ou a educação formal muitas vezes não acompanham – faltam reflexos institucionais, formação de professores, sensibilização real. “Quero fazer um trabalho árduo contra este tipo de pessoas”, diz, ciente de que “estão a aparecer cada vez mais influencers do machismo, do preconceito, do fascismo”, diz. É o exemplo de Numeiro, o influenciador que dita o que a namorada pode vestir e se pode ir ou não à discoteca. “Enquanto existirem essas vozes, é preciso haver a outra parte. Não basta dizer ‘ele é um burro’. É preciso desconstruir o que ele diz, fazer conteúdo contra essa ideologia. Ele não inventou o machismo. Imita comportamentos que existem há séculos.”
Ainda assim, mantém um tom de esperança. “Estou a sentir essa polaridade, mas também sinto que os movimentos feministas e antifascistas estão fortes. Não vão dar tréguas. As coisas têm de começar sempre pela educação. Sou chata com isso, mas é por aí: educar.” Acredita que as escolas são o primeiro espaço de mudança. “Nem toda a gente tem uma família capaz de educar. É fundamental que a escola tenha esse papel.” É com essa convicção que encerra muitas das suas palestras: a ideia de que a transformação não é só legal ou tecnológica, mas cultural. Que a vergonha tem de mudar de lado – e o silêncio, de endereço.
Inês não se define pelo que lhe aconteceu, mas pelo que fez com o que lhe aconteceu. E isso não é pose, nem ensaio. É o resumo do percurso de uma geração que cresceu online, viu a sua intimidade devassada e respondeu com voz, coragem e propósito. Inês Marinho aprendeu que, quando o corpo é tornado público sem consentimento, a resistência passa por reivindicar de novo a narrativa. E por lembrar – a todos – que não se partilha o que não nos pertence.
Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2025.
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