Crise nas urgências obstétricas. "Há funções médicas que poderiam ser assumidas por enfermeiros"
A crise nas urgências de ginecologia e obstetrícia está dissipada por todo o país, com cada vez mais serviços suspensos e queixas dos utentes. Carmen Ferreira, enfermeira especializada na área, falou à Máxima sobre os perigos da situação para as grávidas, o papel que pode ser desempenhado pelos enfermeiros e o impacto na natalidade nacional.

A 8 de agosto, o Observatório de Violência Obstétrica (OVO) questionou a organização dos serviços de obstetrícia face ao caos instalado com o fecho de urgências, em comunicado: o que vai acontecer a quem está à beira de ter uma criança, e se depara com um serviço fechado? Desde junho que os hospitais um pouco por todo o país registam cada vez mais carências nos serviços de urgência de ginecologia e obstetrícia, com o Hospital de Faro a liderar o número de queixas. No geral, as reclamações aumentaram em 113% - de janeiro até julho, comparativamente a mesmo período em 2021. Tal como o OVO, a Ordem dos Enfermeiros defende o envolvimento dos enfermeiros especialistas em Saúde Materna e Obstétrica na reorganização dos serviços, interferindo na vigilância da gravidez e na assistência ao parto de baixo risco. Até lá, o que está, afinal, para acontecer? Porque não correspondem as equipas às necessidades das utentes e das famílias? Carmen Ferreira, enfermeira especialista em saúde materna e obstétrica e autora do blog, Bebé Saudável e dos livros Estamos Grávidos! E Agora? e Nascemos! E Agora", conversou com a Máxima sobre os perigos reais destas carências no SNS.
Assistimos a uma crise nos serviços de urgências de obstetrícia. É isto, também fruto da ausência de medidas do Governo que apostem verdadeiramente nos profissionais de saúde do SNS?

A obstetrícia é uma das áreas mais importantes para a saúde da população, pois estamos a falar da população em idade fértil e que contribui para a sociedade a vários níveis. Estamos sempre a falar de duas vidas e de uma experiência que marca uma vida inteira o casal. Como tal, além de ser um direito dos casais deverá ser uma preocupação do Governo e das equipas de saúde, garantir a qualidade dos serviços das maternidades em Portugal.
A pandemia serviu para agravar o problema?
Recentemente, após uma pandemia, vimos taxas muito fracas na saúde materno-infantil, como já há muito não víamos no nosso país. E com o contexto atual a tendência pode piorar, levando a induções e cesarianas agendadas sem indicação clínica, apenas com indicação de agenda dos profissionais, entre outras complicações. Tudo isto tem implicações na saúde das mulheres e dos bebés e vai gerar repercussões, cuja fatura vamos pagar em breve. Além disso, muitos casais são obrigados a optar por hospitais privados, mas nem todos têm recursos necessários para o fazer, acentuando ainda mais as desigualdades do acesso à saúde no nosso país e sobrecarregando estes locais, que não terão mãos a medir. Mais uma vez, estamos a colocar em causa a qualidade dos cuidados.





Que implicações futuras terá esta desvalorização crescente?
O país precisa de bebés! A pirâmide demográfica é assustadora em Portugal. Portanto, não faz qualquer sentido este desinvestimento numa área fundamental para uma sociedade. Por isso, as políticas de saúde na área materno-infantil são de extrema preocupação para toda a população (quer estejam em idade fértil ou já nem pensem em ter bebés), pois estas vão ditar muitas das situações de saúde do futuro destas crianças, que serão os portugueses no ativo. E sem saúde não há uma sociedade de produção, de evolução e, portanto, o Governo tem mesmo que se começar a dedicar a estas políticas como um investimento no futuro da população portuguesa.
Quais são os perigos reais para as grávidas e para os bebés?
Além da questão do grau de satisfação dos utentes que escolhem os locais para terem o seu filho, e no momento poderem ver as suas escolhas alteradas, isto tem uma implicação também nos níveis de stress da grávida. Como sabemos, o stress não auxilia a fisiologia normal do parto, pois a nível hormonal o stress é inimigo das hormonas que desencadeiam o parto.
Depois, temos as questões de situações realmente de urgência, em que todo o tempo conta para prestar uma assistência com qualidade e agir atempadamente para evitar complicações ou desfechos menos positivos para mãe e bebé. Se ainda vamos esperar pela transferência da grávida para outro local, estamos a perder tempo de atuação.
O que fazer em alternativa – onde e como?
Conforme já partilhado pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem em Saúde Materna e Obstétrica, a solução pode muito bem passar (como já acontece noutros países da Europa) por uma atualização das funções dos enfermeiros especialistas. Os enfermeiros especialistas têm capacidade e formação para assumir a vigilância da gravidez e assistir a partos de baixo risco, sem necessidade de intervenção médica. Assim como a criação de centros de atendimento específicos para a área materno-infantil, como os centros de parto, ficando adjudicado ao contexto hospitalar as situações de elevado risco.
Deve haver uma cooperação entre equipas?
O trabalho interdisciplinar também pode ser visto como aliado desta crise, juntando profissionais como enfermeiros e fisioterapeutas (por exemplo) para assistência às grávidas.
Por outro lado, a articulação com as unidades de cuidados de saúde primários (que ainda estão sobrecarregados pelas questões da pandemia), seria uma mais-valia para a continuidade dos cuidados e assim deixaria de haver uma dependência tão grande da disponibilidade médica para determinadas intervenções que podem ser autónomas.
Por outro lado, considero fundamental a passagem de conhecimento e autonomia para o casal. Se o casal estiver informado e souber o que fazer em determinadas situações, muitas idas às urgências podem ser evitadas e assim direcionar as verdadeiras urgências para os devidos locais. A agilização da comunicação entre profissionais e casais tem que ser melhorada urgentemente. Caso contrário temos uma urgência a resolver problemas que deviam ser resolvidos nas consultas.
Como vê o futuro da saúde materna em Portugal?
Na minha visão, considero que ainda estamos a tempo de reverter muitas questões e melhorar outras. Penso que esta interligação entre profissionais e casais, que falei anteriormente, vai ser possível e que as famílias vão exigir estes cuidados mais atualizados e recursos necessários para a segurança e qualidade no nascimento dos seus bebés.
A divulgação das boas práticas, na sociedade de hoje, está à distância de um clique e espero que as pessoas sejam mais rigorosas nas escolhas dos locais, com base nelas. Desta forma, há também uma obrigatoriedade dos locais em ter um bom funcionamento, porque nos dias de hoje ainda conta o número de partos para um local público se manter a funcionar.
E a satisfação dos casais conta muito. Quando as pessoas perceberem o seu poder, muita coisa muda.
Há atualmente 3.182 enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia. O que nos diz este número?
Claro que quanto mais alargada for uma equipa qualificada melhor para a qualidade dos cuidados, mas muitos destes profissionais podiam exercer mais funções autónomas, tirando peso os médicos, e tal não acontece. Então há um subaproveitamento destes profissionais, que do ponto vista técnico e legal podem exercer mais funções e melhorar a qualidade dos cuidados à população. Como por exemplo, fazer a vigilância da gravidez, internar grávidas, em trabalho de parto e dar a sua alta, que atualmente em muitos locais ainda estão ao encargo da equipa médica. Não podemos ficar como estamos, a mudança tem que chegar e adaptar-se às necessidades da população.
