O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre

Máxima

Edição de Colecionador Comprar Epaper
Atual

Clara Pinto Correia. A "louca" que transformou orgasmos em Arte e amizades em revolução

São muitas as vozes que se despedem hoje de Clara Pinto Correia. Uma mulher que, apesar de controversa, nunca deixou de escrever o que pensava. Nos últimos anos vivia em Estremoz e publicava crónicas no jornal online Página Um. Lê-la é ouvi-la, mas também um abre olhos.

Clara Pinto Correia
Clara Pinto Correia Foto: Sérgio Lemos
10 de dezembro de 2025 às 11:55 Maria João Veloso

Clara Pinto Correia não foi criada para dar ouvidos a comadres ou críticas sobre a forma como vivia a sua vida. Se o tivesse feito não teria sido a cara da mostra Sexpressions, conhecida como “os orgasmos de . A exposição inaugurou em janeiro de 2010 e deu que falar. O projeto era intimista, mas arrojado: um friso de dez fotografias com expressões da autora de Adeus Princesa a ter orgasmos. Seria Pinto Correia uma espécie de Marina Abramovic portuguesa? Coincidência ou não, nesse ano a artista plástica sérvia terá estado 700 horas sentada sem se mexer no MoMA, de Nova Iorque. Ambas terão sido linchadas em praça pública. O mundo é um lugar conservador. Mas se Clara tivesse levado os seus orgasmos em digressão a Nova Iorque talvez lhe concedessem o título de diva. Em Portugal ficou sem emprego, e até que começasse a receber subsídio passaram dois anos. Foi posta na rua. Tratada quase como uma criminosa apanhada em flagrante delito. “Nas filas da segurança social olhavam para mim de esguelha”, terá confessado a Raquel Lito numa entrevista à Sábado em janeiro passado.

Clara Pinto Correia
Clara Pinto Correia Foto: CORREIO DA MANHA

Clara estava há anos afastada da vida pública, no que se refere às massas. Mas os mais atentos sabiam que escrevia crónicas no Jornal Página Um. Publicaram a última hoje. No seu Facebook o escritor Rui Zink considera que Clara não era “a melhor de nós”. E continua “Ninguém é, nem mesmo na hora da morte”. Não sei se as apreciações de Zink em relação a Clara serão científicas ou apenas opinativas. Nesta última crónica escreve sobre no fim do verão. Fala de forma desabrida como sempre nos habituou e se a narrativa fosse outra é que seria de estranhar. Clara teve o mérito de escrever Adeus Princesa, o livro preferido de Vasco Pulido Valente, mas também foi humana, teve depressões.

A morte de Clara melindra-nos, lembra-nos outras mulheres inteligentes que têm um percurso na esfera pública e que ninguém lhes vale quando a doença mental bate à porta. Ela própria arredou-se para Estremoz, terra pacata do Alto Alentejo. Quando caiu – diz com graça Rui Zink – “bota pedra na Geni / ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir”. Entoando a canção magistral de Chico Buarque de Holanda na Ópera do Malandro, refere-se ao plágio que, em 2003, a atirava sem misericórdia para as bocas do mundo. “Isso explica como ficou sem rede por um pecadilho chato (plágio de crónicas alheias, mais vale enfrentar o boi pelo nome). Quando outros e outras fizeram o mesmo levitaram sobre as águas.” Clara, obviamente, não levitou pelas águas porque era de carne e osso e pediu desculpa. E os velhacos não pedem desculpa, o que nos leva a crer que se não sabem que erraram é porque não erraram. Não só inteligente, Clara era criativa e vivia bem com as suas fantasias. Uma terá sido ser namorada de Mick Jagger, outra cantar num coro de gospel. Não concretizou nenhuma das duas, terá concretizado outras. Foi múltipla porque, além de escritora, musa, foi cientista com obra feita. Destacou-se em embriologia e fez com que se reescrevesse a história da biologia celular.

Clara Pinto Correia
Clara Pinto Correia Foto: Sérgio Lemos

A escritora e jornalista Alexandra Lucas Coelho, que tinha 19 anos quando leu Adeus Princesa, terá dito “tantos livros de que não me lembro nada, lembro-me vividamente deste, de o ler. Tudo parecia estar a começar, tudo era possível. Oh, Clara, tão brilhante”.

Uma grande defensora da amizade feminina. Aliás, Ponto Pé de Flor é disso que fala, e o mulherio de Portugal treme. A Maria Antónia Palla, na altura chefe de redação da Máxima, vemo-la a justificar a amizade entre duas mulheres. “O facto de duas mulheres serem muito amigas não quer dizer que sejam lésbicas”, uma amizade a seu ver essencial, “embora exista praticamente escondida, como se fosse uma coisa feia. Eu queria expô-la aos olhos de toda a gente como uma coisa lindíssima que realmente é”, defendeu na época.

Pedro Almeida Vieira no seu texto Adeus Rainha, ataca “os curiosos tardios, os abutres que farejam mais escândalo que luto. (…) À Clara devemos tudo: a inteligência que nunca perdeu, a generosidade que ofereceu mesmo quando lhe doía oferecer, a coragem de quem mesmo esmagada insistiu em escrever como quem luta contra a extinção”.

A sua última crónica no jornal digital Página Um não é própria para cardíacos, nem para pessoas sensíveis. Nela denuncia que e que talvez precise de quinze dias para fazer um trabalho que antigamente fazia numa tarde.

“Razões que a razão desconhece: memória seletiva de quando andei estúpida sem saber”, mostra desencanto, mas também humildade e aceitação. A coragem acontece. Parafraseando Pedro Almeida Vieira “como quem luta contra a extinção.”

Leia também

Clara Pinto Correia: “Há a ideia de que as mulheres bonitas são estúpidas e que as de respeito não se preocupam com perfumes”

Morreu hoje Clara Pinto Correia, mas a frase que deixou em 1991 continua a cortar o ar como se tivesse sido dita esta manhã. Trinta e tantos anos depois, a escritora e bióloga permanece um espelho incómodo de tudo o que ainda esperamos - e exigimos - das mulheres. A sua vida, marcada por fulgor intelectual, fecha-se agora, mas a crítica feroz aos preconceitos permanecerá impressa, como nesta entrevista dada a Maria Antónia Palla, antiga chefe de redação da Máxima.

As Mais Lidas