Kiko is Hot: "Não é como se tivesse a escolha de não falar. A minha existência é política."
Nos últimos 15 anos, o criador de conteúdos deu o corpo às balas nas redes sociais para dizer “basta!” ao preconceito, de punho cerrado e braço no ar, gesto pelo qual se tornou conhecido entre aqueles que o acompanham. A outra mão está pousada na anca, porque a atitude é tudo na vida.
Um miúdo tímido, sentado no seu quarto, mostra-se à frente de uma câmara. Com um corte de cabelo emo e os olhos pintados de preto, dá-se a conhecer ao mundo de coração aberto para tentar descobrir quem é. Abóboda, 2010. Francisco Soares sentia-se sozinho na terra onde cresceu. Não conhecia ninguém como ele na escola, não havia referências para essa diferença nos media. Foi rejeitando todas as caixas em que tentaram pô-lo, mesmo sabendo que entregar-se às normas poderia tê-lo escudado do bullying. Com uma bravura humilde, escolheu um nome para o seu canal de YouTube: Kiko is Hot. Mas não era assim que se sentia por dentro. “Foi aquilo a que se chama fake it till you make it”, conta em entrevista à Máxima. Resistia às críticas com uma força que não sabe de onde veio, a única certeza que tinha era que partilhar os seus vídeos era aquilo que o fazia feliz. Hoje, aos 31 anos, Kiko is Hot assume a alcunha com orgulho, afirmando-a como formadora da sua identidade. Recorda esse adolescente com carinho: uma parte dele, a mais pura e sonhadora, ainda vive dentro de si. Vimo-lo crescer.
Do YouTube para o Instagram e, mais recentemente, no TikTok, foi agregando uma comunidade devota, que vai somando discípulos a cada dia que passa. Criador de conteúdos, DJ, ativista, produtor e locutor de rádio na Cidade FM, na qual estreou Terapia de Segunda, um trocadilho com duplo sentido. Todas as segundas-feiras conta com um convidado para que, juntos, possam tentar ajudar os ouvintes a navegar todo o tipo de dilemas existenciais. Contudo, ninguém ali é especialista. “Daí ser de segunda [categoria]”, explica, a rir. A gargalhada é inconfundível, contagiante, a mesma com que o ouvimos rir de si mesmo nos seus vídeos, por meio dos quais partilha, entre outros retalhos do quotidiano, mensagens de trolls que recebe diariamente. O segredo é não se levar a sério, Kiko mostra-lhes a outra face. “Tento quebrar o ciclo do ódio e respondo com um elogio”, explica. É assim que leva a vida: cedo compreendeu que o amor é a arma mais poderosa do mundo.
Estás a entrar oficialmente no mainstream?
Estive todo este tempo a preparar-me para isso. É muito importante que alguém como eu esteja no mainstream. Significa que as coisas estão a evoluir, que estamos a mudar mentalidades.
Quando começaste no YouTube, tinhas alguma ideia de que podias chegar a este sítio?
Nunca. Percebi muito cedo que tanto a minha existência como a plataforma que estava a criar eram muito maiores do que eu. À minha volta, não havia pessoas como eu. Houve muita gente que quis garantir que eu sabia disso, lançando-me ofensas. Mas houve outras pessoas que olharam para essa diferença como uma inspiração. Se alguém como eu vingasse, nós não tínhamos de nos submeter a uma suposta normalidade.
Como eras em criança?
Muito inseguro. Mas nunca sucumbi à onda de ódio que recebi no início. Era uma pessoa muito tímida.
Como é que um miúdo tímido e inseguro escolhe um nome como Kiko is Hot?
Sabes aquela expressão fake it till you make it? Acho que foi um bocado isso. Foi a construção da minha armadura.
Hoje usas este nome com orgulho?
Sem dúvida. Este nome é a minha vida. A certa altura misturou-se com quem eu sou na realidade.
Há alguma fronteira entre o Kiko is Hot e o Francisco?
Não diria que há uma fronteira, mas na internet, é como se fosse uma versão caricaturada de mim próprio. Aquilo que transparece é a verdade, mas há quem pegue naqueles segundos que vê soltos nas redes sociais e crie uma imagem formatada. Quem eu sou realmente é isso, mas muito mais.
Como é que os teus pais reagiram ao canal de YouTube?
A minha mãe reagiu muito bem, distanciando-se um pouco. Avisou-me das represálias que podia sofrer, mas nunca limitou a minha criatividade ou a minha forma de me expressar.
Sentias que podias ser tu próprio em casa?
Saí de casa cedo, aos 18 anos, mas enquanto vivi com a minha mãe nunca senti que tinha de me esconder, nem de fingir que não gostava de homens. Sempre foi bastante aberta em relação a isso.
E o teu pai?
Como bom homem da geração dele, não tinha a capacidade de falar daquilo que sentia e das coisas que o deixavam desconfortável, então fechou-se muito, desde cedo. Fez questão que eu soubesse, através de comentários infelizes, que não me apoiava, não gostava da forma como me vestia e me apresentava, tornando-se, assim, no meu primeiro bully.
Trazendo essa bagagem de casa, de onde é que vem a força para enfrentares o mundo assumindo quem és?
Tive o privilégio de descobrir muito cedo aquilo que vim cá fazer. Tudo o resto tomou um segundo plano. Sabia que era feliz a gravar os meus vídeos no quarto. Quando as pessoas começaram a comentar, senti que estava a criar uma comunidade, isso encheu-me de orgulho.
Ajudou-te a sentires-te menos sozinho?
Sem dúvida, principalmente quando comecei. Mesmo agora, quando sou mais vulnerável, ou quando falo das minhas questões de saúde mental nunca escondo que tenho episódios depressivos, recebo muitos comentários de pessoas que se identificam com a minha experiência.
Nunca tiveste uma relação amorosa. Porque achas que isso não aconteceu?
Venho de um sítio onde não pude, durante muito tempo, mostrar vulnerabilidade. Tive de me proteger, de construir uma carapaça muito rija. Ando a aprender a tirar alguns tijolos desses muros para deixar as pessoas entrarem no meu espaço. Mas é um processo que demora o seu tempo. A terapia tem-me ajudado.
É um paradoxo para quem te ouve, porque, nas redes sociais, tens uma capacidade fora do comum para seres vulnerável.
Na internet, as pessoas veem-me, mas são só números para mim, porque estou sozinho no quarto a falar. Continua a haver alguma distância. Alguém estar dentro do meu espaço pessoal é uma coisa diferente. Porém, cada vez mais tenho a certeza de que, quanto mais vulnerável sou, mais pessoas ganham carinho por mim.
A vulnerabilidade é vencedora.
Andamos tão preocupados em construir uma imagem de perfeição nas redes sociais, no entanto, os meus vídeos com mais visualizações são aqueles em que estou na cama a rir de coisas parvas, descabelado.
No podcast Plágio, Mariana Bossy pergunta, sobre ti, “é homem ou mulher?”, e a Mafalda Creative responde que não sabe. Tu partilhaste-o, a rir,e dizes qualquer coisa como “sinceramente também não sei”. Quando é que aprendeste que rires-te de ti próprio era o melhor remédio?
Não me levo demasiado a sério. A vida é melhor se for levada com leveza.No caso da Mafalda, ela foi tão honesta, notou-se perfeitamente que não queria ofender. Não vejo maldade nisso e achei tanta piada à cara dela. Se te rires de ti próprio, tiras o poder de qualquer insulto.
Há pessoas que te mandam comentários de ódio e tu respondes com um elogio.
Adoro fazer isso. A maior parte das pessoas que destilam ódio anseiam por ser vistas. São pessoas que, se calhar, não conhecem outra coisa. Não sou o Dalai Lama, calma. Mas faço um esforço, porque sei que aquilo não é sobre mim. A pessoa manda-me um parágrafo sobre o quão ridículo sou, a dizer que eu não devia existir, mas não me conhece.
É claramente sobre essa pessoa. Deve estar a precisar de amor. Tento quebrar o ciclo do ódio e responder com uma coisa positiva. E ela aí vai sentir-se tão estúpida, porque estava à espera que eu discutisse e eu estou a dizer-lhe que o seu cabelo é lindo. Vai pensar: agora estou a sentir-me um bocado mal. Ainda bem que estás a sentir-te mal, porque aquilo que fizeste é péssimo.
Há pouco tempo disseste que te era indiferente que te chamassem homem ou mulher.
Há uma construção de género enorme na sociedade. Tento negar isso, não negando, obviamente, a biologia nem o sexo com que nasci. Não é isso que pretendo, nem pretendo fazer nenhuma alteração, não me considero trans. É uma coisa que tento navegar à minha maneira, porque eu próprio estou a conhecer-me. Não quero que me metam numa caixa, nunca fui feliz em nenhuma. Antigamente, diziam: “Se queres trabalhar com marcas, não podes ser político, não podes defender causas.” Isso nunca me fez sentido. Defendi as minhas causas e agora também trabalho com marcas.
Trilhaste um caminho que é teu e que não existia.
Exato.
Consideras-te livre?
Tenho a sorte de não ter uma obrigação contratual com uma empresa, um trabalho das oito às seis. No entanto, não sei se sou completamente livre, acho que nunca somos. Vivemos numa sociedade que tem regras, tenho impostos para pagar. Mas em termos de aquilo que sou e da forma como penso, sinto que tenho muito poucos filtros.
Tens usado as redes sociais para seres uma voz para os que não a têm. De onde vem essa vontade?
Gostava de ter tido isso quando era pequeno. Que houvesse pessoas a falar abertamente sobre as questões por que eu estava a passar. Não é bem como se tivesse a escolha de não falar. A minha existência é política.
Estás a conquistar mais espaço nos meios de comunicação tradicionais. Sabes porquê?
Há dois motivos. A velocidade a que chego às pessoas é mais rápida. E isso devo muito ao TikTok. E depois, acho que há uma abertura que não havia na altura em que comecei. As pessoas julgam menos a aparência. Já sabemos melhor que todas as existências são válidas.Está a ser bastante terapêutico para mim. Houve uns miúdos com um estilo meio do rap que hoje vieram pedir-me para tirar uma foto. Eu não tinha isto no secundário. Rapazes héteros, no secundário, eram os meus piores bullies. Sinto-me sortudo por estar vivo numa altura em que a coisa deu a volta.
Sentes o amor das pessoas?
As pessoas dizem-me coisas incríveis e eu fico mesmo tocado. Mas sinto que ainda estou a batalhar com o meu impostor. Ainda não consigo aceitar elogios, porque se calhar ainda tenho coisas para resolver dentro de mim.
Se pudesses viajar no tempo, o que dirias ao Kiko de 16 anos?
Dava-lhe um abraço, porque era disso que ele precisava na altura. E dizia-lhe que ele era válido, que ninguém o deixasse sentir o contrário.
Entrevista originalmente publicada na edição de aniversário da Máxima, novembro de 2025.
Créditos:
Realização de Maria Nobre.
Fotografia de João Fernandes.
Maquilhagem de Maria Cruz.
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