Bulimia e depressão. O caso de Vanessa Fernandes "é só a ponta do iceberg"
Aos 36 anos, Vanessa Fernandes assumiu ter sofrido de bulimia e depressão, e que o auge do seu problema de compulsão alimentar culminou com a conquista da medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, nos quais participou já doente e com a missão de "sofrer, sofrer, sofrer". Trouxe a prata e a urgência de se curar de uma doença que só hoje, num testemunho emotivo, revelou.

Agosto de 2008, Pequim, China. Vanessa Fernandes, na altura com 22 anos, torna-se na primeira atleta portuguesa a conseguir uma medalha olímpica nos Jogos Olímpicos de Pequim, ao terminar a prova de triatlo em segundo lugar, conquistando a prata. Apesar da vitória, era o rosto do cansaço e da exaustão. As suas imagens correram o mundo e Portugal orgulhou-se desta conquista, celebrando-a com ela. Mas só a atleta portuguesa sabe aquilo que passou para cortar aquela meta, e que agora revela, em parte, ao londo de mais de 15 minutos de entrevista, no documentário da Betclic desenvolvido por Lígia Gonçalves e Miguel Saraiva. Um testemunho emocionante, duro, que nos faz refletir sobre os padrões de sucesso da sociedade, com enfoque nos desportos de alta competição, e nos efeitos que estes têm na saúde mental.
Durante a entrevista, Vanessa Fernandes, campeã do mundo em 2007, assume vários momentos difíceis ao longo dos dias e horas que antecederam a competição, dizendo que foi graças à mãe que não colapsou duas horas antes da prova, e que sentiu liberdade e alívio quando finalmente se entregou à verdade da sua agonia. "Eu só queria libertar-me". Seguiram-se sete anos afastada deste desporto e das competições.

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, aponta o caso da triatleta como "a ponta do iceberg" para algo maior, mais expressivo e mais enraizado na nossa vivência em comunidade. "Isto não é só sobre a Vanessa Fernandes, é sobre o desporto de alta competição no geral, e isto não é só sobre o desporto, é sobre a nossa sociedade. Uma sociedade de apelo aos resultados, à perfeição, à superação permanente."

Para a psicóloga, o caso da Vanessa mostra que a atleta "se fundiu" com a atividade desportiva a dado momento, entregando o corpo ao sacrifício extremo. "Quando nós colamos a nossa identidade a uma parte do nosso corpo, ou a uma atividade que desempenhamos, em algum momento vamos começando a acreditar que [só] somos aquilo. ‘Eu sou uma boa aluna, eu sou uma atleta de excelência’. A partir daí, entra-se numa espiral de uma certa dependência de que vale tudo para, no fundo, nos mantermos enquanto pessoas" esclarece Filipa Jardim da Silva. "Se a minha identidade depende daquele desempenho, internamente o meu cérebro entra na armadilha de que vale tudo. ‘Se eu não sou aquilo, eu deixo de existir, se eu deixo de existir eu vou colapsar'. E nós estamos altamente programados com um mecanismo de sobrevivência. E se em algum momento, no nosso esquema mental, isto entra numa lógica de: ‘se eu não ganho medalhas, e se não pratico este desporto, eu simplesmente deixo de existir, então o meu cérebro interpreta aquilo como sendo o perigo máximo’. Portanto, vale tudo para que isso não aconteça."

Este vale tudo levou Vanessa Fernandes a acreditar que tinha de, nas suas palavras, "sofrer, sofrer, sofrer", o que a levou a querer "diluir-se" no resultado. A um dado momento, no seu testemunho, assume que entrou num modo automático durante a prova. "Entras num espectáculo (….) Entras no modo perfeito de uma máquina de competição" e fala numa sensação de raiva, de como se sentiu pressionada dentro da própria prova. "Eu estou-vos a mostrar como é que é, e ainda me estão a ensinar como é que se faz?"
Muitas vezes, esta pressão começa subtilmente anos e anos antes, quando os pais ainda estão só à procura de um desporto que os filhos possam realizar nas horas livres. "Há pais bem intencionados que colocam os filhos em atividades para que se divirtam ou desenvolvam determinadas qualidades. Mas também temos pais e treinadores, e grupos desportivos, que quando aceitam uma criança ou a recrutam precocemente, o foco imediato é saber se tem ADN de campeã, se realmente se destaca, e muitas vezes quando isso naturalmente não acontece, há essa pressão: ‘Bem, pais vamos pô-lo a treinar mais horas, porque assim não está a dar’", explicando que no caso da Vanessa Fernandes há um pai ligado ao desporto, "também ele com uma história de superação, que também ele já tem um contacto com o sacrifício físico e mental que baliza tudo isto para fora da média."

Para a psicóloga, é importante ter noção de que estes padrões se repetem, sem querer, de pais para filhos. "Às vezes, pelas histórias de vida e dos nossos percursos, desenvolvemos uma capacidade extraordinária em determinada área, mas é importante não perdermos de vista que essa não é a média, e que essa não é a capacidade mais habitual. E não é porque "eu" desenvolvi uma capacidade de resistência ao sofrimento e ao sacrifício físico e mental acima da média que tenho que esperar que os meus filhos ou alunos também o façam. Por exemplo, temos quadros de honra, mas não temos quadros de falhas recuperadas, que destaquem os alunos que superaram dificuldades."
Por isso, toca num outro ponto fundamental, que é o de louvarmos a vitória e nunca a derrota. "Não se premeia a falha, não se premeia o erro, premeia-se a excelência à primeira. Alimenta-se a noção de que o resultado vale mais do que o processo. A nota excelente, não importa se o aluno aprendeu as competências. O mesmo se aplica ao desporto: quando alguém ganha uma medalha e se destacou, talvez não importe tanto como é que se chegou lá. É essa subtração do processo, e da dimensão humana, que nos leva a incorrer em tantos riscos."
Sobre o facto de a atleta ter assumido um problema de compulsão alimentar no seguimento da sua carreira, aponta uma possível causa: "Naturalmente, os distúrbios de comportamento alimentar tendem a surgir em cenários de muita pressão em relação ao peso ou à imagem corporal. Se estamos a viver um dia a dia desequilibrado, isso vai ter um impacto no nosso sistema fisiológico e no sistema hormonal e químico do corpo. Precisamos de um conjunto de nutrientes para ter esse equilíbrio químico, mas também precisamos de um conjunto de nutrientes psicológicos." A psicóloga fala de necessidades antagónicas como "o prazer e a tolerância à dor ou desconforto; o autoelogio e a autocrítica; de produzir algo com valor ou também de não fazer absolutamente nada sem culpa.Quando no nosso dia a dia não nos colocamos em situações potenciadoras de abastecer estas capacidades, vamos necessariamente criar desequilíbrio. Esse desequilíbrio é uma ponte para a doença. É uma questão de tempo."


A psicóloga volta às noções de desempenho e de sucesso suplantadas nas gerações de hoje. "A questão do desempenho, de um modo geral, está muito presente, ainda na barriga das mulheres. Hoje em dia começamos a ver que na gravidez há uma preocupação por vezes exacerbada pelas medidas: quanto mede o bebé, quanto pesa, em que percentil está, para garantirmos que não está aquém de outros bebés e para garantir que não nasce com algum défice. Depois de o bebé nascer, damos continuidade a esse "comparómetro" e à pressão para o desempenho. ‘Quantas horas de sono é que este bebé dorme? Porque quanto mais cedo ele dormir muitas horas, é um bebé melhor, e os pais também são melhores’. E isto é só um exemplo. Nós temos esta pressão já na primeira infância. É interessante percebermos que muitos pais, adultos, educadores, pediatras, sem querer, com boas intenções, entram nesta pressão para o desempenho e para a excelência" esclarece, referindo que essa alegria e satisfação, que são legítimas para as conquistas, "requerem que recuemos um passo e perceber porque é que fico tão feliz quando o meu filho de dois anos consegue identificar as letras do abecedário. O que é que há dentro de mim que me faz valorizar estas coisas? Quem me ensinou a sentir orgulho nesse tipo de superação?" questiona.
É ai, quando nos começamos a interrogar, que percebemos que temos de, conscientemente, equilibrar esta ideia da superação e do desempenho pelo respeito pela individualidade e pelo momento presente. "Ter a consciência de perceber que a nossa vida não é um contra-relógio e de que não a queremos colocar em comparómetro com a vida dos outros. É aqui que precisamos de recuar e perceber que isso não é tudo nas nossas vidas nem resume os nossos bebés, nem lhe faz melhor a ele nem aos outros. Ao mesmo tempo, usufruindo dessa conquista. Por isso é que é tão importante fazer esse movimento de autoobservação, autointerrogação e autodiálogo para perceber que sem darmos conta já caímos na armadilha da questão do desempenho. Toda a gente está incluída nisto. A nossa sociedade premeia a excelência, os resultados e o desempenho. E nas creches e na escola, uma vez mais, a baliza [do sucesso] é de quem vai na linha da frente."
Por fim, a psicóloga deixa um apelo. "É importante abastecer a noção de sociedade – nos pais, nos professores, nos treinadores. É essencial que tenham formação em desenvolvimento humano, tenham formação em saúde física, mas também psicológica para conseguirem respeitar os limites de cada criança e de cada jovem" e que "por vezes, genuinamente, enquanto treinadores ou pais, estamos realmente a acreditar que estamos a fazer o melhor (...) Não é preciso uma "fita métrica", é preciso perceber que para sermos seres com saúde física e mental, precisamos de algum equilíbrio desequilibrado, mas ao fim do dia ou da semana temos que estar bem. Por isso, quando olhamos para uma jovem e percebemos que só treina e descansa, não socializa, não estuda e não tem energia física nem mental para fazer outro tipo de atividades, percebemos inevitavelmente que há um desequilíbrio e que vai ter consequências."
