Após alguns anos de um saudável apetite por corpos de vários tamanhos, a Moda parece ter regressado aos seus antigos e esguios padrões de Beleza. Mas será que, desta vez, as mulheres vão aceitá-los sem abrir a boca?
Foto: Getty Images 16 de janeiro de 2025 às 07:00 Rosário Mello e Castro
Poucos designers foram capazes de provocar reações tão viscerais ao seu trabalho quanto Alexander McQueen, o jovem britânico que foi tão brilhante a mostrar a mais pura Beleza nas passerelles como a evidenciar as fragilidades e contradições da indústria. Uma das suas grandes qualidades era provar que a Moda pode ir muito além da roupa – e quando isso acontece, quando vai além do superficial, ela é sobre o corpo humano. Embora McQueen tenha exagerado as formas femininas em muitas das suas peças, foi preciso esperar até 2018 para vermos a primeira modelo curvy a desfilar para a marca (nessa altura, já após a morte do criador e sob a orientação de Sarah Burton). Tratava-se de Betsy Teske que, na verdade, vestia um 38 europeu, e foi notícia em todo o mundo. Doze anos antes de Alexander McQueen, já John Galliano e Jean Paul Gaultier haviam usado modelos plus size nos respetivos desfiles, ora com efeito choque, ora de forma pontual. Em 2024, em pleno século XXI e depois de várias estações de crescimento do movimento body positivity, as semanas de Moda regressaram ao passado.
Quem cresceu nos anos 90, como eu, habituou-se aos ideais de Beleza focados na magreza de Kate Moss ou Gia Carangi, a coolness do grunge aliada a um estilo sem esforço, a ideia de que um corpo sem gordura era também um corpo sem defeitos. E quem é que não sonha com a perfeição? Física, mas não só – em casa, no trabalho, esta parece ser uma armadilha social em que as mulheres caem uma e outra vez, perpetuando o mito de geração em geração, como se a magreza fosse um valioso símbolo de sucesso reservado a um grupo restrito. Na verdade, como explica o filósofo Umberto Eco em A História da Beleza (2004), sabemos que os conceitos de Beleza mudam consoante as épocas, as formas de Arte e outras áreas de influência que os dominam. Numa era em que a imagem é rainha, é fácil de perceber quem manda.
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Para Luís Pereira, diretor de casting da ModaLisboa e fundador e diretor da agência de comunicação Showpress, a magreza não só voltou em força às passerelles como nunca as deixou verdadeiramente. "Ao contrário da diversidade na cor da pele, que se transformou completamente nos castings, a questão da magreza mantém-se pouco ou nada alterada". Numa indústria nacional pequena e com poucos criadores, os samples da roupa continuam a ser do mesmo tamanho, o 36, o que implica a escolha de modelos que o consigam vestir. O mesmo acontece lá fora, onde estes samples, como vimos, chegam a ter medidas bastante mais pequenas. Ainda assim, diz Luís Pereira, "mais facilmente vemos mulheres mais velhas e até mais baixas nas passerelles do que de diferentes tamanhos", remata. Os cabelos brancos tornaram-se mais banais do que uma prega de gordura.
As passerelles parecem, assim, refletir o emagrecimento coletivo proporcionado por medicamentos como o Ozempic e semelhantes, que, em países como os Estados Unidos da América e o Brasil, se estão a tornar prática comum. Basta pensar que o presidente da Câmara do Rio de Janeiro prometeu recentemente fazer uma versão genérica, caso ganhe as próximas eleições. Ou que uma das irmãs Kardashian se prepara para lançar uma versão não sujeita a receita médica.
No que toca à magreza, há muito que se aguarda um ajuste de contas – com a Moda, claro, mas também com Hollywood, com a publicidade, com as Artes. Podemos continuar a adorar Kate Moss, a sua beleza quase infantil e perdida, os seus olhos de Peter Pan, mas também podemos – e devemos – encontrar Beleza noutras silhuetas. Mas como, se não as conseguimos ver? Em Nova Iorque, Londres, Milão e Paris, o desencantamento pelas curvas foi evidente. Num estudo publicado pela Vogue Business, em que se analisam todas as coleções que fizeram parte destas quatro principais fashion weeks, as conclusões são de um embaraçoso retrocesso. Em 208 desfiles, dos quais fizeram parte 8763 looks, apenas 4,3% foram de tamanho médio (36-42) e 94,9% estiveram entre os tamanhos 30-34. O mesmo estudo garante ainda que o número de modelos de tamanho médio cresceu algumas décimas, mas apenas porque várias marcas usaram modelos masculinos, tipicamente maiores, para vestir peças femininas, uma forma de desafiar convenções de género, mas, pelos vistos, de manter outras.
Lisa Armstrong, responsável pela secção de Moda do jornal britânico The Telegraph, chocada com a situação, lançou a ideia de que talvez as mulheres devessem boicotar as marcas que não desenham para os seus corpos. Um repto que, levado à letra, deixaria a grande maioria das etiquetas de luxo sem clientes. No mesmo artigo, publicado no rescaldo das últimas semanas de Moda internacionais, a jornalista denuncia a obsessão dos designers e stylists pelos extremos, e acrescenta ainda que "algumas marcas só funcionam quando trabalham em areias movediças – uma forma de dominar o próximo ciclo de notícias sem gastar muito dinheiro", diz. E afirma, sem rodeios: "Honestamente, já tive muitas conversas – normalmente com homens que trabalham nesta indústria – que acham que ‘insistir no [problema] do tamanho’ nas passerelles é um tema ‘enfadonho’ e ‘mundano’."
A persistência de certos parâmetros de Beleza tem implicações, claro, sobretudo nas mulheres. David Valverde, médico especializado em Medicina Estética, faz um diagnóstico semelhante, mas nota algumas mudanças positivas. Em entrevista, assegura-nos de que, por um lado, cada vez são mais as mulheres que chegam ao consultório com a ideia de que é importante aceitarem-se como são, que o universo dos filtros e das redes sociais não é real, que existe um meio termo na Beleza e que também este pode ser universal. "As pessoas já têm essa noção", garante. Por outro lado, conta, "continuam a existir muitas mulheres com problemas graves de autoestima, às vezes sofrem até de bullying nas suas vidas pessoais, que estão em relações abusivas e que nem se apercebem disso, mulheres que querem mudar o rosto ou o corpo por influências externas." Naturalmente, a atenção dos médicos deve ser redobrada nestes casos. "É importante definir limites e olhar com atenção para cada pessoa, identificar relações com o corpo menos saudáveis ou que podem ser melhoradas e perceber quando existem problemas mais sérios de saúde mental." Depois de tudo pesado na balança, diz ainda o médico, "é essencial que exista um equilíbrio que seja possível de manter e que seja viável". David Valverde alerta, por isso, para os perigos das promessas milagrosas de opções como o já mencionado Ozempic, que garante reduções de peso sem grandes regras nem consequências e conta que muitas pessoas já chegam ao consultório a pedi-lo, apesar de ser um medicamento para diabéticos. "O importante", assinala, "é que as mulheres tenham mais poder de escolha sobre os seus corpos", resume, e que tomem decisões informadas e independentes.
Num universo criativo viciado no exagero a qualquer preço, o plus size tornou-se uma espécie de requisito mínimo a cumprir por uma ou duas modelos que parecem sair fora do baralho da apresentação de uma coleção. Já os tamanhos médios – que, na verdade, representam a maioria das mulheres – são praticamente inexistentes. Uma das exceções é a holandesa Jill Kortleve, que se estreou na Alexander McQueen (claro!), e que em 2020 foi a primeira modelo em dez anos a desfilar para a Chanel vestindo mais do que o tamanho 36. Quando a vimos nos Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no desfile da Max Mara da coleção Resort 2023, a sua diferença de tamanho para as restantes modelos foi-nos tão evidente quanto desconfortável. Na verdade, Jill Kortleve veste o 38-40 e tem uma beleza universal e sexy, um rosto difícil de esquecer, um andar marcante e poderoso, a lembrar a geração mais atlética que incluía Linda Evangelista, Christy Turlington, Cindy Crawford e Naomi Campbell. Mas, se o grupo das icónicas supermodelos era composto por quatro mulheres de corpos e personalidades fortes, Jill Kortleve, uma das modelos mais requisitadas de 2024, nunca nos pareceu tão sozinha entre os seus pares.
Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.