"A partir do momento em que o meu corpo começou a mudar, ensinaram-me a fazer dieta."
“Não se nasce mulher, torna-se”, uma experiência singular/universal, comunitária/solitária, silenciosa/gritante. Se o nosso corpo falasse, contaria histórias que são tanto nossas quanto de outras mulheres, emaranhadas numa sociedade na qual crescemos para ser livres, mas quase sempre com um guião. Ahhh, mas ele fala, e se fala! Pergunte à mulher que está ao seu lado, pergunte à Ana ou à Matilde, cada uma (sobre)vivendo na sua forma, na sua vida, no seu corpo.

"Desde os 12,13 anos, ou seja, a partir do momento em que o meu corpo começou a mudar, a crescer, que a minha relação com ele mudou completamente. Primeiro, através do olhar dos outros – de familiares que comentavam, de estranhos na rua, sobretudo homens, que olhavam para mim de outra forma – depois, através do meu próprio olhar. Passei a não gostar do que via, não me identificava com aquela nova forma, mais cheia, com maminhas. Estávamos nos anos 90, altura em que pessoas absolutamente normais eram consideradas gordas.
A partir do momento em que o meu corpo começou a mudar, ensinaram-me a fazer dieta. Sempre gostei de comer, e devia ter 14 anos quando me explicaram como emagrecer. Não fazia parte da cultura ser-se saudável e equilibrado. As pessoas eram elogiadas por emagrecer, não por fazerem exercício físico. Nessa altura, eu passava algum tempo sozinha em casa: a minha mãe tinha muito trabalho e o meu pai raramente estava, por isso comia muitas vezes sem regras. A minha mãe fazia dieta 300 dias por ano e, quando não fazia, jantava batatas fritas de forma compulsiva. Cresci num ambiente de bastante tensão entre os meus pais, ora porque estavam juntos e se davam muito mal, ora porque a minha mãe estava sozinha e ficava nervosa então descarregava em mim. Achava que eu era adulta, partilhava comigo responsabilidades e problemas que não eram meus, insultava-me quando eu cometia erros normais, esperava de mim comportamentos impossíveis para uma criança/adolescente. Chegava a ficar sem me falar durante vários dias. Diziam-me – o meu pai e vários familiares – que não podia continuar a comer daquela maneira para não ficar gorda, que era uma pena já que era tão ‘engraçada’. O meu valor estava diretamente ligado à minha aparência. Como se não fosse ninguém, se não fosse bonita e magra.

A partir do momento em que as dietas entraram na minha vida, a comida passou a ser o meu escape. Escondia comida, tentava vomitar, ficava doente por ter comido demais, passava dias sem comer para ‘compensar’, faltava às aulas. Mas como, apesar de tudo, era boa aluna, ninguém ligava muito. Faltei a festas de anos, encontros de amigos, exames, ninguém reparou. Hoje, sei que estes episódios de compulsão estão sobretudo ligados à ansiedade que me foi diagnosticada, mas a verdade é que, sem surpresas, a pesquisa é muito limitada nesta área. São momentos de grande tensão – negativa, mas que também pode ser positiva – em que é necessário um escape à realidade. Emocionalmente, a fase mais complicada dos episódios de binge eating é o dia seguinte, porque, dependendo da gravidade do episódio, ficava completamente paralisada, com sentimentos de culpa e derrota difíceis de gerir. Nas fases mais complicadas, passava dias sem comer, a comer apenas sopa, a beber apenas água, senti-me mal várias vezes. Experimentei várias dietas, claro, comprava roupa dois tamanhos abaixo porque era a roupa que ‘deveria’ estar a vestir, pesava-me todos os dias.
Achava que este era um problema fútil, a ‘mania das dietas’, mas a certa altura pensei que não podia ser só isso, não era uma coisa superficial. Crescemos com esta ideia de que é uma questão de moda ou vaidade quando são problemas muito mais profundos, mas tinha quase 30 anos quando percebi isso. Tive consultas com médicos que me receitaram medicamentos fortíssimos, depois de conversas de dez minutos. Nos últimos sete anos, experimentei 15 medicamentos e combinações diferentes. Houve uma altura em que tomava oito comprimidos por dia. Fiz psicoterapia.
É preciso que a nossa forma de olhar para a beleza mude porque a beleza não está apenas na magreza – há espaço para pessoas de todos os tamanhos no Instagram, nos média, nas revistas, mas olho para as últimas semanas de Moda, para o Cinema, entre outros, e constato que as modelos e atrizes continuam esqueléticas. O conceito de body positivity não parece ter sobrevivido ao Ozempic. E só as mulheres podem fazer essa mudança, parece-me. Acho chocante aquilo que continuamos dispostas a fazer para ser magras e se algum dia tiver uma filha, vou fazer tudo para que não passe pelo mesmo."

Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.

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