"O ativismo de fachada das redes sociais acaba por ser só uma quantidade de likes que não se traduz em nada"
Tânia Ganho escreve sobre as suas inquietações. Numa manhã de Verão, na Livraria Buchholz, falou do “poder redentor da literatura”, do ativismo de sofá e de como a violência vive no quarto ao lado. Na vida usa o sentido de humor como arma, no trabalho é disciplinada. Há horas para escrever e outras para a tradução.
Tânia Ganho aborda temas de violência e a importância da literatura na reflexão social
Foto: Luís Carvalhal06 de agosto de 2025 às 12:39 Maria João Veloso
Quer Apneia, quer Lobos, denunciam histórias de violência. Porque aborda estas temáticas?
São temas que me inquietam, enquanto mulher e cidadã. Tenho vontade de usar a literatura para falar de preocupações que merecem a minha reflexão e o debate público. Tenho esperança de que a literatura sirva para pôr as pessoas a ler e a conversar sobre?estes problemas, que são muito graves na sociedade e precisam de ser corrigidos.
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As histórias de Apneia e Lobos podiam ser decalcadas da vida real.
Parti de histórias reais para os dois livros. Quando se puxa um fio, vêm outros atrás. No caso do Apneia li umas notícias sobre raptos parentais. Com a abertura à imigração, acontecem casamentos mistos e começou a aparecer esta situação. Quando os casamentos mistos acabam o que acontece às crianças de dupla nacionalidade? Se um dos progenitores sai do país e volta ao país de origem, vão viver com quem? Este é o ponto de partida de várias histórias jurídicas. O Apneia saiu em 2020 e continuo a receber mensagens de pessoas que dizem: "esta é a minha história" ou “isto foi a minha vida quando era mais novo”, com os pais envolvidos num litígio profundo.
No caso de Lobos também parti de histórias reais, de dark web e pedocriminalidade. É uma realidade que existe em massa. Quando nos interessamos por estas coisas, é difícil ver o mundo com o mesmo olhar. Há pessoas más, que provocam estragos brutais na vida dos outros, nomeadamente na vida de crianças. Estes temas interessam-me.
E o papel da literatura nesta podridão?
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As histórias que conto nestes dois livros podem acontecer na casa ao lado ou na nossa casa. Gosto de mostrar que o mal não é uma entidade distante. O mal está no seio das famílias. No livro Lobos faço um paralelo com a guerra.
Ninguém fala do Sudão, mas há milhares de crianças a morrer à fome, há milhões de deslocados. O mundo está cheio destas histórias. A literatura pode ser só entretenimento, mas a meu ver é mais interessante ler histórias que me façam refletir sobre as coisas pesadas da vida. Para dar valor ao dia a dia, comezinho e banal. No Apneia digo que “a banalidade é uma coisa subestimada.” Acredito no poder redentor da literatura. Quer o Apneia, quer o Lobos, têm um lado redentor. Para que se não saia de cada experiência de leitura com a impressão que é tudo mau. Há coisas boas e temos que lutar por elas.
Hoje fala-se muito de empatia. Como se trata da falta de solidariedade que existe mais para com o outro?
Temos de começar por nós. Com o ritmo acelerado e as redes sociais é fácil escrever sem refletir. Tudo se comenta com uma tremenda falta de empatia. Esta história deste casal de amantes apanhado num concerto, é a vida privada das pessoas, mas toda a gente foi rápida a fazer juízos de valor.
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A forma como educamos os filhos ou como lidamos com colegas de trabalho passa pela empatia. A literatura é um exercício de empatia. Devia seguir-se o exemplo do que acontece nas escolas dinamarquesas: a literatura ser um meio para ensinar os alunos a serem mais empáticos mostrando-lhes histórias que os obrigam a porem-se na pele do outro. Na pele de quem é vítima de abusos, de quem vive em circunstâncias menos favorecidas, de mulheres e de crianças. Das pessoas que passam por situações de violência extrema. A literatura está cheia de histórias com ritmo, que podem ser trabalhadas nas escolas com o público mais jovem. De uma maneira subtil - sem ser panfletária – aprende-se como é estar na pele do outro. Devemos estimular também os jovens a fazer voluntariado. É uma experiência maravilhosa e gratificante.
A violência, a pedofilia, a violação, o bullying cibernético são temas com as quais vive ao longo da escrita. Como se continua a viver alegremente?
O sentido de humor é crucial. Foi um exemplo que o meu pai me deixou. Era médico e tinha que lidar com histórias tristíssimas e usava o sentido de humor como forma de estar na vida. Via graça em tudo. Fazia trocadilhos linguísticos. Era uma pessoa divertida. Deixou-me essa lição de vida. Quando me sinto mais em baixo lembro-me do meu pai e tento ver o sentido de humor nas coisas. Se pensar: isto é péssimo, mas vai passar. Se não passar já, pelo menos vamos ver o que há ali de positivo. Saber ver o lado caricato das coisas. Sabermos rir de nós próprios. Não falo de pessoas com depressões profundas. Aí não há humor que valha.
O que queria dizer era: sair da imersão literária e ir viver…
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Vivo mergulhada nas histórias. Arranjamos estratégias para com elas conviver. É isso que exploro no livro Lobos. Há pessoas que têm profissões terríveis e lidam com atrocidades diariamente. Como continuam com as suas vidas? Não se consegue fechar a porta definitivamente e pôr estas histórias de parte.
Elas estão dentro de nós. Mas, abstraímo-nos e fazemos outras coisas. No livro, a protagonista passa por isso. É como se estivesse dentro de um labirinto e, em vez de tentar sair, assume que é ali que vive e arranja maneiras de conviver com aquele espaço. Vive sem ser desesperada à procura da saída. Aprender a viver no momento e a apreciar a vida. Seja a beber um copo de vinho ou a tomar uma boa refeição. Seja a conviver com a família.
Um psiquiatra pergunta a uma das personagens de Lobos se ela dorme bem. A Tânia dorme bem?
Comprei um livro que se chama Não Dormir, de Marie Darrieussecq. As insónias fazem parte da minha vida. Às vezes durmo bem, mas há alturas em que não durmo. Fico às voltas com estas histórias. Nos festivais literários as pessoas contam-me as suas vidas e eu absorvo muito do que me contam. À noite já sei que terei uma insónia. Não é uma coisa má. Embora o sono se torne mais importante com a idade.
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Tânia Ganho aborda temas como violência e solidariedade na literatura
Foto: Luís Carvalhal
E aceita a insónia?
Entrego-me à insónia. Acendo a luz até me dar o sono. Ou escrevo até me dar o sono. Se for alguma história que me não me está a deixar desligar, faço isso e geralmente resulta. Incluí o desporto na minha vida, que me ajuda a dormir. Vou ao ginásio e vou nadar. Se o corpo estiver cansado é uma ajuda para descansar.
Em Lobos aborda a doença de Alzheimer. Reviver este processo é uma espécie de catarse?
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É uma catarse. Mas é importante falar-se de Alzheimer e das demências. A esperança de vida hoje é maior. Graças à ciência o nosso corpo dura mais tempo, mas o cérebro ainda não consegue acompanhar. Há mais famílias a lidar com a demência e a sociedade não está preparada para isso. Sobretudo logisticamente. As famílias vivem dispersas pelo mundo. Quem vai cuidar de nós e dos nossos? Isso inquieta-me. Vejo poucas medidas, há pouco lares. Há famílias destroçadas por não terem capacidade para pôr os familiares em lares e não há capacidade para cuidar deles a tempo inteiro. Têm que trabalhar para pagar empréstimos e os lares são caríssimos. É um problema social grave e deve ser abordado.
Os lares são mal vistos, mas no livro a doente é bem tratada…
Sim, é tratada com muito carinho. Às vezes a pessoa, se fica em casa de um familiar, está mais sozinha e até pode cair. Um bom lar não são apenas as instalações, são as pessoas. O meu pai teve as melhores cuidadoras, para quem tenho uma dívida de gratidão. É nisso que se tem de apostar, pessoas com espírito de missão.
Não é qualquer um que tem aptidão para lidar com pessoas que não são autónomas. Não sabem ir à casa de banho, precisam que lhes deem banho ou que lhes segurem na mão. São pessoas que se exprimem através de um gesto mais violento, porque já não sabem expressar-se. Os governos deviam pensar nas pessoas velhas. Vamos todos lá chegar. É preciso acabar com o estigma dos lares e tem de haver boa fiscalização. Devia acabar-se com os tabus de não se falar da morte e da velhice. É para lá que caminhamos. Significa que estamos vivos e vamos ser velhos. Chegar a velho não é uma condenação.
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Diz-se desiludida com a política e que gosta de ler pessoas dos vários quadrantes. O que aprende com eles?
Aprendo sobre o que está por fazer. As lacunas. As lacunas são eloquentes, são gritantes. Falámos dos lares e a população cada vez mais envelhecida. Temos de garantir o bem-estar dos mais velhos, mas temos de garantir também condições para que os jovens possam ter filhos em idade útil. Hoje há mais pessoas a ter filhos aos 40 anos. O problema da habitação é tremendo. As rendas são incomportáveis. Temos de resolver o problema em tempo útil. Criar redes de apoio para que as famílias possam trabalhar sabendo que os filhos estão bem entregues. O teletrabalho resultou durante a pandemia, não há motivo para deixar de resultar. As empresas devem tratar os trabalhadores como adultos. As pessoas felizes fazem um trabalho bem feito, mais do que as pessoas contrariadas. Nos últimos tempos temo-nos esquecido do espírito de comunidade. As aldeias funcionavam assim. A sociedade está a mostrar-nos que estamos isolados. Vivemos mais tristes e sós. Os problemas de saúde mental estão a aumentar e são graves. Não podemos continuar numa rota de autodestruição.
É fácil conciliar a escrita com o trabalho de tradução?
Tenho um bloco de horas dedicado à tradução e outro bloco dedicado à escrita. Sou organizada. Quem trabalha como independente só tem a solução de ser disciplinado. De outra forma não se consegue pagar as contas. Um trabalhador freelancer nunca sabe como vai ser o mês seguinte.
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Quando estou a escrever não penso em mais nada, mas quando estou a traduzir às vezes tenho de parar para escrever, porque a escrita infiltra-se na tradução. No meio de um parágrafo há um clique que me lembra uma das personagens, ou um tema do livro em que estou a trabalhar, e paro. Mas no processo de escrita não penso em mais nada. É um momento só meu e das personagens.
A tradução é uma arte. Onde começa e acaba a liberdade literária?
Para uma frase simples conseguimos encontrar várias traduções. Essa é a beleza da linguagem, podermos escolher uma palavra em detrimento de outra. Aprendo muitíssimo fazendo esse exercício. Às vezes é difícil perceber os limites da liberdade. Tento sempre respeitar a voz original. Se o tom é coloquial, escrevo nesse estilo. O respeito e a liberdade andam de mãos dadas. Mas é um trabalho criativo e prazeroso.
Traduz, na maioria, mulheres?
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Sim, mas também traduzi autores como Amor Towles ou o David Logde. Traduzi o Mishima, com quem aprendi muitíssimo sobre o Japão.
Traduzi A Anomalia, de Le Tellier, que é divertido. Atualmente traduzo muitas mulheres que abordam os meus temas de eleição: a violência, a desigualdade, as vidas íntimas da esfera doméstica, que me interessam bastante. É um ato político falar da esfera doméstica. Há um fio condutor nas minhas traduções. As editoras já me propõem traduções que sabem que vou gostar. O David Enia fui eu que propus. Notas para um naufrágio é um livro comovente. Tem sido um privilégio.
Álvaro de Campos é a sua grande inspiração. Porquê?
Álvaro de Campos é, de facto, um dos meus poetas preferidos. Na obra dele estão lá todas as emoções: a depressão, a loucura, a euforia. Tem aquele cansaço existencial. É um poeta que devia ser dado no ensino secundário. Através dos seus poemas um adolescente pode divertir-se ou identificar-se com o cansaço existencial, com o desanimo e a loucura. É uma obra que está ligada à minha infância.
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O trabalho de linguagem que (Fernando) Pessoa fez na criação dos heterónimos é muito criativo, mas em Álvaro de Campos é especialmente brilhante.
Tenho uma edição velhinha – que “roubei” ao meu pai – com anotações nas margens.
Há livros que se repetem?
Estou a usar uma das máximas de Como um romance, de Daniel Pennac, em que ele defende: o leitor tem o direito de não acabar um livro. Na juventude temos dificuldade de abandonar um livro. Quando o tempo se torna finito perde-se esse pudor e abandonamos livros. Não há tempo para tudo, mas haverá sempre tempo para reler.
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Os diários de Virginia Woolf ou os livros de Marguerite Duras são de releitura obrigatória. A Uma Barragem contra o Pacífico ou O Amante já lá voltei várias vezes. Como um Romance, do Daniel Penac, também já li várias vezes, e há sempre qualquer coisa que me faz sorrir. Aos livros de Doris Lessing ou Jenny Diski, também lá regresso.
Li Henry Miller aos 15 anos e quando reli aos 40 vi coisas completamente diferentes. Na altura sublinhei no Sexus passagens em que fala sobre o trabalho artístico. Aquilo tocou-me. Hoje vou procurar outras coisas.
Na escrita obedece a rituais? Não. Escrevo em silêncio total. Não consigo escrever com pessoas à volta, barulho, ruídos repetitivos. Preciso mesmo de silêncio. Afastar-me ou recolher-me é o ritual.
As suas personagens buscam uma redenção no silêncio…
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Precisamos de regressar ao silêncio, o ruído está em todo o lado. Até nos parques de estacionamento há música. O ruído de fundo constante não nos permite pensar, ouvirmo-nos a nós próprios. Ando a namorar um livro que se chama História do silêncio. Quero saber mais sobre o silêncio. Tenho uma prateleira na minha estante com livros sobre o silêncio.
O meu Pai Voava é um livro de memórias. Diz que gosta de ler passagens do livro. Não é doloroso?
Não. Foi um livro escrito com amor. Parece uma coisa xaroposa, mas é um livro genuíno. Com trabalho linguístico e literário, mas sem censura. O único filtro foi o respeito pela memória do meu pai e respeito pela família, em especial pela minha mãe. E volto ao livro. Está na minha secretária porque a imagem da capa é o meu pai. É uma imagem que me dá ânimo, pelo simbolismo de parecer que está a voar. Na verdade, estava a atirar-se de uma prancha de 10 metros. Quando releio uma frase, penso: era isto que queria dizer. É assim que quero que ele seja lembrado e é importante pra mim. Há algo de íntimo, meu e profundo que me faz sentir que ele está vivo e perto de mim.
Gostava que me desse a sua opinião sobre o ativismo de sofá…
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Tenho a sensação de que é tudo superficial. Mesmo quando as pessoas estão genuinamente a defender uma causa. Quando começamos a fazer perguntas há ali um desconhecimento grande, isso incomoda-me. Prefiro fazer menos ativismo, mas interessar-me mais pelas coisas. Quando faço ativismo é um ato que não se vê, mas que faz algo, na prática. Custa-me o ativismo de fachada. Porque se fala da Palestina e não se fala do Sudão? Há histórias que são escolhidas e isso custa-me.
É importante desconstruir um bocadinho. As pessoas que façam ativismo se isso as faz sentir bem, mas não pode ser só isso, não pode ser um ativismo de fachada, de sofá e de redes sociais. Tem de algo ser mais profundo. Acaba por ser só uma quantidade de likes que não se traduz em nada.
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