Conhecemo-nos no comboio de Berna para Milão, a ver paisagens verdejantes e vaquinhas a pastar. Eu tinha tomado comprimidos para rir e para amar, viajava sozinha, queria lá saber de consequências. As consequências são overrated, queridos. Estava a pensar em sei lá o quê e a olhar pelas janelas, o tempo estava cinzento, o que é normal, porque era fim de inverno e íamos atravessar os Alpes, ora por vales maravilhosos, ora por encostas escarpadas, ora por túneis infinitos. O Andrew aproximou-se de mim e perguntou-me de que me ria tanto. Respondi-lhe que não sabia, que estava "totally high." Ele riu-se e disse “me too”, e rimo-nos de uma maneira que eu talvez nunca tivesse rido antes, e que acho que nunca mais voltei a rir. Possivelmente, foi amor.
No outono seguinte, eu e o Andrew - juntos, namorados e muito apaixonados desde aquele primeiro dia a bordo do Eurocity da Tren Italia - decidimos alugar uma autocaravana e fazer toda a linha de costa de Portugal, desde Caminha até Vila Real de Santo António. Íamos andando, vagueando à deriva, de norte para sul - “por causa da gravidade”, dizia o Andrew, “que ajuda a descer e poupamos gasóleo” -, ficando quando o sítio pedia; ficando mais um pouco quando o sítio pedia muito.
A primeira paragem longa foi na Nazaré. Antes disso, era dormir, acordar e zarpar. Na Nazaré ficámos três noites. Vimos as ondas grandes, gigantes, e gente muito arrojada a meter-se em cima delas. Naquela altura, ainda não era normal e mediático como é hoje. Só muito poucos, e muito loucos, se aventuravam por ali adentro. Andava um tipo com um jet-ski para ajudar no que dava, mas não era atividade para turistas do surf, como entretanto se tornou. O Andrew, australiano como poucos, não só fazia surf como era um apaixonado por todo o universo surfístico.
Foi na Ericeira, em Ribeira d’Ilhas, que a nossa vida a dois começou a mudar, mesmo antes de começar a sério. Por sorte, ou coincidência, ou azar, ou artimanha do Andrew, calhou passarmos por Ribeira d’Ilhas precisamente quando se disputava uma etapa do Mundial. Eu não fazia ideia, não dava atenção a esse calendário. Nem ao do surf, nem a qualquer outro, na verdade. Nesse tempo, conseguia antecipar que vinha aí o Natal porque, de repente, todas as cidades se enchiam de luzinhas e neve falsa, mercados natalícios e toda a espécie de praga verde, vermelha e luminosa que, de algum modo, aludisse ao suposto espírito da época.
(A minha mãe faz anos no dia de Natal. Coitada. Ganha só metade das prendas que as pessoas normais ganham. Lembrei-me agora. Não vejo a minha mãe há mais de seis meses. “Faço anos no mesmo dia que Jesus”, dizia ela a brincar, para se consolar, e ria-se - mas era um riso melancólico, resignado. E depois acrescentava, “assim, ao menos, o teu pai nunca se esquece do meu aniversário”, e ria-se de novo, mas com um brilho magoado nos olhos, de quem sofre e sofreu. Nunca lhe perguntei porquê. Não sei por que não me dou melhor com a minha mãe. Devia telefonar-lhe, saber como está. Mandar-lhe um beijo, dizer-lhe que sinto saudades.)
“Teresa! Maria Teresa!” Eu e o Andrew estávamos sentados na areia, numa pequena elevação que nos permitia ver as baterias sem estarmos constantemente a ser interrompidos por gente a passar de um lado para o outro e a tirar fotografias e a fazer poses com a mãozinha a fazer o hang-loose. “Minha querida Teresa, há quanto tempo!” Um tipo giríssimo aproximou-se de nós e abraçou-me como se me conhecesse. “Teresa, não te lembras de mim?” “O meu nome é Luísa”, respondi. O rapaz ficou sem reação, atónito, bloqueado, de olhos muito abertos, there’s a glitch in the matrix. Pediu desculpa, ficou muito embaraçado, fez-se vermelho. Quando, por fim, falou, disse “a sério? Eu ia jurar que…”, e lá foi ele. E eu e o Andrew rimo-nos a gozar com ele, assim que virou costas. Teresa, Maria Teresa, estava certo. Eu inventei aquilo de ser Luísa porque - sei lá porquê, porque estava em altas, porque tinha fumado demasiadas coisas, porque não me lembrava daquele rapaz. Por qualquer coisa ou todas essas coisas juntas, não faço ideia. A minha cabeça não é o que era. Agora tem muitos mais buracos por dentro.
Nessa noite, num bar da Ericeira, esbarrei de novo com esse rapaz que nos encontrou no areal de Ribeira d’Ilhas e que me reconheceu. Ao ver-me, sorriu envergonhado e acenou. E eu não tive coragem para manter a mentira. Caminhei até ao pé dele e disse-lhe que, à tarde, esteva a brincar: não era nada Luísa, era mesmo Maria Teresa, mas que a cara dele não me era familiar, não me dizia nada. Não me lembrava dele. Perguntei-lhe onde nos tínhamos conhecido, porque não lhe tinha fixado o nome. “Teresa…” Ele disse o meu nome e depois parou, boquiaberto. O Andrew, que percebia português, mas às fatias e aos solavancos, parecia impaciente e a tentar perceber. O rapaz lá prosseguiu, quase a gaguejar, “Teresa, nós namorámos durante quase um ano, no liceu”. Tomás.
Partimos para sul na manhã seguinte. O encontro com o Tomás tinha-me abalado - mas o que me deixou desconcertada foi mesmo o facto de não o ter identificado, de não me lembrar dele, do seu rosto, da voz, nada. Não tinha passado tanto tempo assim, talvez uns oito ou dez anos desde que nos víramos pela última vez. Nada justificava a minha total amnésia, a minha absoluta ausência de reconhecimento. (“Tomás?! Não pode ser”, disse-lhe naquela noite, e fugi dali, corri para fora do bar, corri pelas ruas estreitas e empedradas da vila até ficar de frente para o mar sobre umas rochas muito furiosas, e o Andrew foi atrás de mim, ia gritando “Teresa, Teresa”, daquela maneira que os anglófonos têm de dizer “Teresa”, que é estranha, quase patética.)
A viagem, a partir desse dia, foi muito diferente do que fora até então. Passámos do espírito de comunhão e camaradagem, de partilha e proximidade, para o isolamento e a desconfiança. Eu não tinha vontade de dizer nada ao Andrew; ele, por seu lado, parecia ter muitas coisas para me perguntar, mas não o fazia. Possivelmente, não sabia por onde começar. Ou talvez tivesse receio de me melindrar. Em todo o caso, ficava claro que se sentia posto de parte de toda aquela situação, como se eu estivesse a esconder-lhe coisas.
Certa noite, três, talvez quatro dias mais tarde, estávamos perto de Lagos, fomos até uma pequena praia na foz de um rio sem importância nenhuma. Era um sítio muito bonito, onde paravam muitos caravanistas. Decidimos ficar. Há vários dias que falávamos um com o outro apenas o essencial. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar retomar a relação do ponto onde a tínhamos inusitadamente interrompido, graças a um encontro tão imprevisível quanto traumático.
Nessa noite, na praia, alguém acendeu uma grande fogueira. As pessoas foram-se juntando e fez-se uma festa espontânea. Houve música, houve danças, claro, houve até quem dissesse poesia - eu disse um poema de Al Berto e outro de Allen Ginsberg. O Andrew, que é tímido, mas que se revela um verdadeiro centro da festa quando toma os comprimidos certos com a dose correta de whisky, recitou de cor e no original “Be Kind”, de Bukowski. A sua performance foi magistral: com gestos, com emoção, com fervor no olhar, uma interpretação exímia, irrepreensível. Só que, por alguma razão, senti-me atingida pelo poema. Ou pela escolha daquele poema - logo aquele, porquê aquele - naquele momento. Chorei.
Subi para a caravana e, discretamente, arrumei as minhas coisas na mochila e na mala de viagem. O Andrew continuou no areal. Bebia pelo gargalo e continuava a recitar de cor, “there’s a breathlesse hush on the freeway tonight”, Ferlinghetti agora, e as pessoas em redor deliravam, brindavam-no com bravo!, com beautiful!, com grande!, com genius!, e eu a enfiar roupa interior suja nas bolsas de fora de uma mala de couro. Saí e fui a pé até ao primeiro sítio onde me senti segura para pernoitar: uma paragem de autocarro com paredes de tijolo. Era pequena e cheirava mal, mas tinha um teto, abrigava-me. O Andrew não veio mais atrás de mim.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.