A Sofia queria um cão. Não estou a dar ênfase suficiente: ela queria mesmo, mesmo muito um cão. E quando a Sofia mete uma destas ideias na cabeça, só há um desfecho possível: tem de se encontrar maneira de lhe fazer a vontade, caso contrário, gera-se o caos. Aliás, não há caso contrário possível. A alternativa não existe. E mesmo que existisse, nunca conseguiríamos dar por ela, de tal forma somos submergidos e afogados na enxurrada diária e constante de "mas podíamos ter um cão", "vi um no site do canil que podíamos resgatar", "há uma ninhada nova de poodles aqui perto e a bom preço", "as condições arranjam-se", "o tempo arranja-se", e que termina, já um pouco para lá do ponto de exaustão, com o inevitável "não sei porque dizes isso, eu toda a vida tive cães".
O "isso" que eu digo e a que ela se refere é o seguinte: Sofia, tu não sabes educar um cão, não tens consciência da carga de trabalhos, das responsabilidades e da disciplina a que obriga. E se o digo é precisamente por saber que ela toda a vida teve cães e por eu próprio ter conhecido alguns deles, e ter lidado de perto com a maneira displicente, irresponsável e inconsciente como ela educava os seus cães. Quando digo "educava", estou a pegar no verbo educar lato sensu. Em bom rigor, poderia dizer que "evitava, durante alguns anos, que morressem", ou "criava, dando-lhes comida e água, mas nem sempre nas quantidades que precisavam". Sofia e os cães é uma equação destinada ao erro. Infelizmente, esse erro comporta em si o sofrimento ou, no mínimo, o profundo desconforto do animal.
"Mas porque é que estás sempre a dizer isso?", "eu não sou uma criança", "também posso aprender mais sobre cães", blablablá etcetera, etcetera, etcetera, até que por fim "eu toda a vida tive cães". Todos os dias, sem exceção durante uma semana, durante duas, três, durante um mês, durante dois, e uma pessoa vai-se aproximando cada vez mais do limiar do abismo, vai-se sentindo cada vez mais puxada por ele, mais compelida a saltar, a aceitar o destino, a fechar os olhos e dizer "opá, se prometeres que te calas com isso", mas não dá, não pode ser, seria irresponsável, é um cão, é uma vida, e somos também nós e a nossa vida em comum. E lá vem ela, "mas as condições arranjam-se" e, de novo, vinte ou trinta minutos mais tarde, o fatal "eu toda a vida tive cães, não sejas injusto comigo!"
E então o desespero fala mais alto, o abismo desencadeia o seu mecanismo de sucção e aqui vamos nós, "onde é que fica a porcaria da ninhada de poodles? Onde é que mora esse criador?" Pega-se nas chaves do carro, "é em Mem-Martins", abre-se a porta de casa, carteira no bolso, chaves, telefone, "espera, David, espera, eu vou contigo, não vais sozinho, eu quero escolher", faltam os óculos de sol - uma pessoa barafusta, resmunga, pragueja baixinho, em surdina, "a porra dos óculos de sol, tenho de voltar lá dentro", já a porta estava trancada. Mas vamos a isto. O tempo arranja-se, as condições arranjam-se, mete-se a chave novamente à porta, os óculos de sol arranjam-se, "vamos embora, Sofia".
E de hoje não passa. A casa vai ficar imunda, toda mijada, os cantos, os sofás e os cortinados, tudo. Não deu tempo para prevenir nada, obviamente. Estou a seguir os meus impulsos, uma pessoa está sob pressão e tem de avançar, não há volta a dar. Em minha defesa, posso alegar que tenho sido vítima de tortura. Pior do que a tortura do sono é a tortura do argumento circular e repetitivo. Se a Sofia teimasse com uma parede havia de fazê-la cair, mais cedo ou mais tarde.
"Vou-lhe chamar Fluffy." Sofia proclama ao mundo o nome, "Fluffy-Fluffy-Fluffy", enquanto ergue no ar, qual pequeno Simba, o seu novo capricho de carne e osso. E pêlo. "Gostas de Fluffy?", pergunta, e eu sinto que não tenho atrás de mim um universo suficientemente longo e amplo para revirar os olhos tanto quanto eu desejaria. "Gosto muito, sempre quis ter um - mas estava a guardar para quando tivéssemos um filho." Ela ri-se, acha que estou a brincar, a dizer-lhe uma piada para se rir, e então força uma gargalhadinha pequenina. "Oh, o Fluffy é o nosso filho", diz a sorrir e a levantar no ar o pobre poodle que, coitado, não sabe onde o destino o foi meter. Nos confins das traseiras da minha cabeça, sinto os meus glóbulos oculares a darem cambalhotas de 720 graus.
Eu amo a Sofia. Ainda hoje, mesmo apesar de tudo o que nos tem custado a vida desde a triste e trágica aventura com o Fluffy nas nossas vidas. Só que chegámos a um ponto de interrogação, a uma bifurcação, a um impasse.
"Temos de dar banho ao cão. Vi um spa canino fabuloso." Tento explicar-lhe que o cachorro tem só quatro meses, ainda nem levou todas as vacinas. Dar-lhe banho não é, nem por sombras, uma prioridade. "Os cães precisam de tomar banho", garante-me. E depois elucida-me, "nunca ouviste dizer que um porco é só tão porco quanto o seu dono?" Sinto o meu olhar semicerrar-se entre a confusão e a antecipação temerosa do que aí vem. "Com os cães é a mesma coisa. Não queres que pensem que somos porquinhos, pois não?" Não, claro que não.
Bichon Chic, diz o letreiro estilizado dentro da galeria comercial. "É aqui", diz a Sofia atravessando os corredores suburbanos do centro onde podemos encontrar lojas que vendem tudo aquilo que todas as outras lojas de todos os outros centros comerciais vendem, brincos e pulseiras, malas e carteiras, lingerie, óculos, sapatilhas, roupa, chapéus. E depois há dois cabeleireiros. Um deles é para humanos, o outro é um spa para cães. Esse mesmo, o Bichon Chic. E é lá que entramos.
O homem de gestos, voz e sotaque muito afetados chega até nós de mangas arregaçadas e a sacudir o relógio volumoso e metálico que traz no pulso, "ai que coisa linda, coisa linda, linda, linda", e olha para o Fluffy muito embevecido com os seus olhos mascarados com lentes de contacto coloridas, muito verdes, por trás de uns óculos de massa muito na moda. "É o Fluffy", diz a Sofia, e ri-se, visivelmente satisfeita, orgulhosa do seu pequeno poodle. "Que idade tem?", "vinte e sete", diz ela, ele ri-se muito, atira a cabeça para trás, abres os braços, dobra as mãos como se tivesse umas asinhas e depois bate as palmas para encerrar a risada, "ahahah o Fluffy, sua tonta - que idade tem o cachorro?" Ela fica corada, é do embaraço. Eu preferia não estar ali. "Quatro meses e doze dias", diz por fim. Sérgio, o cabeleireiro de cães, fundador e proprietário do Bichon Chic, especialista em estética canídea e bem-estar animal no geral, diz que "se calhar, ele ainda é pequenino" e franze um bocadinho o nariz sobre o sorriso forçado, como quem diz "amiga, não se precipite, temos tempo".
A Sofia, obstinada como é, diz que acha que não. Sérgio sabe que ela não tem razão, mas não quer comprar discussões. Entre discutir-e-perder e anuir-e-ganhar cento e vinte euros limpinhos - "é serviço completo, amiga, banho, tosquia, massagem, unhas, glândulas, orelhas, é tudo, tudo, tudo" -, opta pela segunda.
Três horas e cinquenta minutos depois, vamos recolher o Fluffy. Parece agora um pequeno peluche, não sei sequer se o podemos pôr no chão. Talvez seja mais indicado depositá-lo sobre um móvel da sala e educá-lo para que fique quieto, em exposição. Sofia acha que está lindo, eu faço humhumhum sem me comprometer, sem dizer nada, sem me expressar verdadeiramente, aceitando o que o destino reservou para mim - sou uma pessoa humilde, sei que cometi erros na vida, aceito a minha penitência. "Quando é que acha que devemos voltar?", pergunta Sofia a Sérgio. "Talvez dois meses, mês e meio", diz Sérgio, enquanto passa uma vez mais a escova sobre a franja - repito: sobre a franja, a fran-ja - de Fluffy. "Vemo-nos daqui a quinze dias", diz Sofia, e Sérgio abre o sorriso e o coração, vá de borrifar o pobre cão com mais perfume, uma, duas, três, quatro vezes.
"O cão não pode levar este perfume todo, não pode estar sempre a tomar banho, isto dá cabo do bicho, além de que, passadas duas semanas, fica a cheirar horrivelmente." Tentei explicar à Sofia que o cão precisava de tomar banho como os cães tomam banho. Ao ar livre, de preferência na praia, nadando e enchendo-se de sal e areia, "são esfoliantes, tiram a sujidade e o pêlo morto, ao mesmo tempo que fornecem matérias protetoras". Com o champô e os perfumes, o cão, ao fim de quinze dias, está a produzir quantidades industriais de sebo para se proteger. Cheira demasiado mal. "É precisamente por isso que precisamos de ir ao Bichon Chic a cada duas semanas, David", responde-me. Desisto.
Ou passamos a educar o cão em conjunto e ouves o que eu digo, Sofia, ou então ficas com o Fluffy e eu vou-me embora. Não consigo mais. Não suporto o cheiro do cão. Não suporto que o trates como um bibelot. Detesto que todas as noites venha meter-se na nossa cama. Detesto que ocupe o nosso espaço. Que nos separe na hora mais íntima. Não fazemos amor há mais de um mês, Sofia. Assim, não aguento mais. Porque é que não podíamos ter um cão? Pois, por isto mesmo. Porque acaba connosco. Porque não estás preparada para isso. Manda mensagem quando tiveres tomado uma decisão. Quando tiveres crescido e compreendido. Amo-te.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.