Histórias de Amor Moderno: “Quando contei ao João Gabriel que ia jantar com as pessoas do curso, a situação piorou. Ficou ciumento”

“Nunca me senti tão viva, tão livre e tão alegre de estar num síto como durante esse verão”. Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Romance e ciúmes num conto de "Histórias de Amor Moderno" na Máxima Foto: "The Summer I Turned Pretty"
20 de setembro de 2025 às 08:03 Maria Olívia Sebastião

Sempre gostei da escola, sempre fui boa aluna. O entusiasmo que senti no meu primeiro dia de faculdade foi uma versão exponenciada, muito mais forte, da expectativa e da alegria que eu sentia no primeiro dia de aulas de cada novo ano letivo. Agora, seria diferente. Não iria encontrar caras conhecidas, não saberia os detalhes das dinâmicas dos grupos e das amizades, não fazia ideia de quem seriam os professores nem de como funcionariam as aulas. Tudo seria novo, ainda mais novo do que em cada primeiro dia de todos os outros anos.

Preparei-me o melhor que pude. As roupas, foram escolhidas com muito critério: que refletissem o meu espírito e a minha personalidade, aquilo com que me identifico, ao mesmo tempo que sublinhassem as minhas qualidades e atributos, mas sem cair no exagero. É importante não ser ostensiva. E é fundamental causar uma boa primeira impressão, porque só se causa uma primeira impressão uma vez. E eu queria que a minha entrada na faculdade marcasse o meu lugar sem que me olhassem como se fosse estranha, vaidosa ou exuberante.

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Toda a primeira semana daquela minha nova vida se enchia de surpresa e novidade. A envolver tudo isso, a luz e o cheiro do outono a invadirem a cidade, as primeiras folhas castanhas e secas, caídas no chão, à solta ou em pilhas, assinalando o fim de um ciclo e anunciando o princípio de outro. E aquela sensação adorável de trazer no corpo as peças de roupa que, depois de meio ano guardadas no armário, voltam à vida e tudo cheira a lavado e a familiar. Em breve, veríamos nas esquinas e cruzamentos os primeiros vendedores de castanhas. Na mochila, guardava as leituras aconselhadas pelos professores, livros novos a cheirar a fresco.

As minhas últimas férias de verão antes de ir para a faculdade tiveram um nome: João Gabriel. Na verdade, são dois nomes, mas pertencem à mesma pessoa. O João Gabriel foi o meu amor de verão. Conhecemo-nos na Ericeira, num pequeno bar alternativo que ficava junto a uma pequena capelinha, perto das muralhas que dão para o mar. Não me recordo do nome do bar, mas lembro-me bem de que a música que passava era ótima, a melhor escolha de entre o que se ouvia naquele tempo - rock alternativo, punk-rock, ska, um pouco de nu-metal, os restos do grunge que sobrava.

O João Gabriel andava de mota e fazia bodyboard. Preenchia os requisitos do estereótipo do jovem radical da Ericeira da época: cabelos compridos e descolorados do sal e do sol, calções e chinelos daqueles muito largos, uma sweater oversized de marca de surf com capuz, uns óculos Arnette permanentemente sobre o nariz queimado do sol, durante o dia, e invariavelmente pousados acima da testa, depois de anoitecer.

O João Gabriel e o seu grupo frequentavam o tal barzinho, onde bebiam cerveja, fumavam cigarros, contavam piadas e falavam de ondas, usando uma terminologia que mais parecia dialeto - o swell, o onshore e o offshore, o slick, o wax e o drop-knee; enfim, todo um universo de vocábulos que eu nunca tinha ouvido na vida, mas com que passei a conviver de perto e cujos significados, em alguns casos, acabei por ficar a conhecer. Hoje em dia, sei apenas que o wax era afinal cera e nada mais.

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Aproximei-me do João Gabriel numa noite em que estava com amigas e ele com amigos. Nós queríamos fumar, mas nenhuma fumava verdadeiramente, era só quando saíamos à noite, claro, pelo que não tínhamos cigarros. Eu vi-o, achei-o giro. Pedi-lhe um cigarro, ele disse-me que não fumava, embora estivesse precisamente a fumar. Perguntei-lhe se algum dos amigos dele tinha, ele disse que não, que ali ninguém fumava. Estavam todos a fumar. Agradeci-lhe, derrotada, e virei-lhe as costas. Senti-me um pouco envergonhada e as minhas amigas riam-se, meio surpreendidas, meio gozonas. E depois ouvi “ó fumadora, estava só a brincar”, e lá estava ele, sorridente, com um sorriso tão alinhado e tão branco que eu lhe disse “nem devias fumar, vais estragar esse sorrisinho lindo”. E foi assim que começou.

Passámos todo o verão colados um ao outro. A vida tem sido generosa comigo, são muitos os momentos que guardo com carinho, muitas as horas de felicidade, de prazer e de joie de vivre. Mas nunca me senti tão viva, tão livre e tão alegre de estar num síto num certo momento como durante esse verão. As viagens de mota, meio loucas, sem plano, as idas à praia durante o dia, os acampamentos na praia com todo o grupo, as fogueiras, o sol, a maresia - a eternidade encapsulada numa aventura de paixão e pores do sol, com a pele a cheirar de sal. E sexo, claro. O primeiro da minha vida.

Os meus primeiros dias de faculdade e a chegada do outono trouxeram-me alegria, mas a segunda e terceira semanas de aulas despertaram-me uma estranha melancolia. Tinha saudades do João Gabriel. Embora falássemos por telefone todos os dias e mandássemos mensagens um ao outro a toda a hora, eu sentia falta dele por perto e daquela aventura de verão. Os meus sentimentos misturavam-se. A novidade, a escola e o outono davam-me motivação; a falta do verão e as saudades do João Gabriel tornavam-me apagada, mais silenciosa do que era habitual, pensativa, distraída.

Foi então que, finalmente e com duas semanas de atraso, começaram as aulas de Lógica. Toda a gente do curso pronunciava aquele nome com solenidade, com respeito, “lógica”, diziam, com voz grave, e abriam os olhos. Levei alguma tempo a perceber porquê, mas estranhei, antes de mais, que a minha turma, habitualmente composta por 40 ou 50 pessoas, quando não menos, nas aulas das outras cadeiras, de repente se transformasse numa multidão de mais de 100 pessoas quando tínhamos Lógica. “Se achas que é muita gente, espera pelo segundo semestre - o anfiteatro não chega”, advertiram-me.

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Lógica era tão difícil que havia alunos a assistir que já tinham feito todas as outras cadeiras do curso - estavam ali presos por aquela, a maldita, a grande: “Lógica”. Eram quase tantos os alunos do segundo ano quanto do primeiro nas aulas; do terceiro, eram um pouco menos, tal como do quarto. Mas, todos juntos, éramos mesmo muitos.

Era durante as aulas de Lógica - ou antes ou a seguir - que os mais velhos conviviam connosco, os caloiros. E foi durante esses convívios pré ou pós-aula que fomos informados, convidados e convocados para o primeiro jantar de curso. Iria realizar-se na quinta-feira da semana seguinte, num tasco no Bairro Alto. Os meus colegas receberam a notícia com entusiasmo. Eu, porém, sentia-me debilitada emocional e sentimentalmente. Disse que sim, mas mais para não fazer a desfeita do que por sentir qualquer tipo de excitação.

Quando contei ao João Gabriel que ia ao jantar com o resto das pessoas do curso, a situação piorou. Ficou ciumento. Disse que tinha a certeza de que eu ia conhecer outras pessoas e que ele se sentia deixado para trás, sozinho. Lembrei-lhe que ele passava a vida no bar junto à capelinha, onde paravam dezenas e dezenas de raparigas giras de todas as origens e proveniências, e que eu nunca lhe tinha cobrado por isso, nem sequer manifestado qualquer ciúme. “Mas podias tê-lo feito”, respondeu-me. “Além disso, é diferente, eu estou com pessoas que tu conheces; tu vais estar num meio completamente desconhecido.”

Desvalorizei o argumento para minimizar a discussão, mas reconheço que, apesar de tudo, havia no seu raciocínio uma certa lógica - ah-ah!, a lógica. Sempre ela a dar-me cabo do sossego. Agora, à distância que a idade permite, consigo perfeitamente compreender o que ele sentiu: medo. O medo de me perder para um mundo que ele desconhecia, populado por pessoas inteligentes e cultivadas, com ambições completamente diferentes das dele - se é que as tinha, para além de viver naquela realidade de “verão interminável”, constantemente em busca de ondas e de festa (mas tendo de aceitar trabalhos mal pagos ao balcão de bares e de restaurantes, porque não tinha estudos e a sua realidade se resumia àquele modo de vida na Ericeira) - e semelhantes às minhas.

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O Tomás sentou-se ao meu lado no jantar. O Tomás estava no terceiro ano. Contou-me que tinha decidido deixar Lógica para quando entrasse na reta final do curso, mas que nunca tinha chumbado na cadeira. Simplesmente, não a fazia. Naquele ano, sim, sentia-se preparado e maduro o suficiente. “No primeiro ano, chegamos aqui cheios de sonhos e ilusões, mas nem sabemos o quanto custa estudar a sério”, dizia ele. “E Lógica precisa que estudes a sério.”

O argumento fazia todo o sentido. Achei-os inteligentes. Ao argumento e ao Tomás. O Tomás, que não eram precisamente bonito ou giro como os rapazes que eu costumava achar giros, tinha um estilo muito particular. Vestia-se maioritariamente de preto ou cinzento, usava camisas, usava cinto, usava botas e casacos compridos, sobretudos ou gabardinas. Sabia vestir-se, não era só um miúdo a usar roupas de marca. Notava-se que tinha gosto, que sabia escolher e combinar as peças, montando uma personagem perfeita para aquele ambiente académico.

Quando liguei ao João Gabriel, acho que ele percebeu de imediato tudo o que se estava a passar. No fim de semana anterior, era suposto ter ido ter com ele à Ericeira. Não fui. Inventei uma desculpa. Agora, estava de novo a arranjar desculpa para não ir. Ele prontificou-se a ir ter comigo a Lisboa, disse que não lhe custava nada, que precisava de me ver. Tentei esquivar-me, evitar. Não resultou. Disse que preferia não o ver durante algum tempo. Menti-lhe. Disse que era a nossa separação física que me estava a custar e que dificilmente conseguiria concentrar-me nos estudos com a nossa relação assim, num impasse e à distância. “Tens de me dizer isso na cara. Se mo disseres na cara, eu acredito. Olhos nos olhos.”

Dias mais tarde, depois de um imenso e profundo silêncio de ambas as partes, o João Gabriel mandou-me mensagem. Quando a recebi estava com o Tomás. Em casa do Tomás. No quarto dele. Perguntou-me quem era, eu disse que logo via, que agora não queria perder tempo com isso. Ele pressionou-me, achava estranho que eu não lhe desse uma resposta e que evitasse ver a mensagem. Perguntei-lhe se ele queria ler a mensagem. Irritou-se, disse-me que nunca o faria - mas que o deixava intrigado aquela minha relutância em abrir a mensagem e em dizer-lhe de quem se tratava.

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“É o ex-namorado?”, perguntou, por fim. E eu dei comigo a pensar se era já ex-namorado, se não seria o ainda meu namorado. E então uma vaga de amor e de ternura e de saudades do João Gabriel percorreu-me o corpo e, como se me enchesse o coração e o estômago, mostrou-me a verdade: eu ainda gostava. As circunstâncias abalaram esse meu amor, as novidades, o facto de estar longe. Mas o amor continuava cá.

Sem pensar, vesti-me à pressa, saí porta fora. Disse apenas “depois falamos, depois eu explico tudo”, e o Tomás, atónito, sem expressão, ficou a olhar para mim. Ele não estava a perceber nada e não queria acreditar que eu o fosse mesmo deixar sozinho e nu, ali sobre a cama.

Desci as escadas a correr e, assim que cheguei à rua, peguei no telefone e abri a mensagem. “És uma mentirosa. Não voltes a contactar-me. És uma traidora. És desleal e, ainda por cima, és cobarde. Não tiveste coragem de me contar a verdade, cara a cara. Espero que sejas feliz. Que tenhas um boa vida, mas longe de mim. Adeus."

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