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Histórias de Amor Moderno: “Por vício ou por um estranho instinto, sempre que nos afastávamos, pegava de imediato no telefone”

“Tentei desbravar e descobrir mais acerca daquela pessoa estranha que me mandara mensagens a meio da madrugada, supostamente deitada ao lado do meu namorado.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

"The Other Woman"
"The Other Woman" Foto: IMDB
13 de setembro de 2025 às 08:01 Maria Olívia Sebastião

Eu dantes ia dormir sem desligar as notificações de mensagem do Instagram. Há pequenas coisas que podem mudar a vida. No meu caso, foi a vida que me levou a mudar uma série de pequenas coisas. Uma delas foi essa mesmo, passei a dormir só depois de ter desligado tudo. Houve até uma altura, logo após o sucedido, em que eu deixava o telefone em modo voo antes de me deitar.

Ainda não eram quatro da madrugada quando ouvi o toquezinho da mensagem e um ligeiro vibrar na mesa de cabeceira. Acordei, mas não muito. Ensonada, deitei a mão ao telefone. Peguei-lhe mal, escorregou-me, caiu com estrondo e enfiou-se debaixo da cama. Inspirei com exaspero, expirei com frustração. Hesitei entre voltar ao sono, esquecendo a mensagem e o telefone, ou levantar-me da cama, ajoelhar-me no chão, enfiar a cabeça debaixo do estrado e procurar, de olhos semiecerrados e possivelmente ramelosos, às apalpadelas, ao calhas, o maldito aparelho. Optei pela primeira, fecha os olhos Maria do Carmo, isso passa, amanhã logo vês, e firmei as pálpebras com força.

Mais me valia ter bebido um café duplo para adormecer: quanto mais forçava os olhos a fechar, mais a minha pulsação aumentava. As pernas começavam a mexer-se sozinhas, ao colchão parecia terem-lhe crecsido picos, nenhuma posição me servia. Maria do Carmo, Maria do Carmo, tu assim nunca mais dormes, amiga, levanta-te e vai buscar a porcaria do telefone.

Tal como estava pré-definido, levantei-me primeiro, em seguida ajoelhei-me, depois enfiei a cabeça debaixo da cama, não via nada, estiquei o braço para a mesa de cabeceira em busca do telefone para ligar a lanterna e conseguir procurar… o telefone, pois, que tonta, o telefone está ali em baixo, vai ter de ser às escuras, e lá me pus a apalpar o chão, um chinelo, uma nuvem baixa de cotão, uma meia - uma meia? Olha, afinal meteu-se aqui - e, por fim, de braço muito esticado, toquei-lhe, encontrei-o, lá estava ele, o telefone.

“Maria, tu não me conheces, mas eu encontrei o teu perfil no Instagram do Lourenço”, dizia a primeira mensagem. Um arrepio percorreu-me a espinha. Tolheu-se-me o estômago. O Lourenço era o tipo com quem tinha começado a sair pouco tempo antes, talvez nas três ou quatro semanas que antecederam aquela mensagem.

Enquanto olhava, sem expressão, para o fundo branco e brilhante do ecrã do telefone, percebi que a outra pessoa estava online. De vez em quando, começavam a escrever do outro lado, mas depois a pessoa arrependia-se e a mensagem nunca chegava. Talvez a apagassem. Talvez esperassem que eu respondesse alguma coisa. Só que eu só pensava no que é que podia estar a passar-se. Conhecia o Lourenço havia nem um mês. Divertíamo-nos, jantávamos em sítios giros, saíamos para beber uns copos. Apresentei-o a amigos e amigas minhas, tudo corria bem. Sentia-me apaixonada. No que é que eu me estava a meter?

Por fim, decidi-me a responder: “Quem é você e o que é que quer?” Do lado de lá, uma resposta enigmática. “A minha história é demasiado longa, não cabe numa mensagem.” Achei que estivessem a gozar comigo. “Tente uma versão abreviada”, respondi. “Ok”, disse a pessoa do lado de lá, “estou deitada ao lado do Lourenço neste preciso momento, enquanto falamos”.

Não respondi mais. Tentei desbravar e descobrir mais acerca daquela pessoa estranha que me mandara mensagens a meio da madrugada, supostamente deitada ao lado do meu mais-ou-menos namorado, ou qualquer coisa parecida. Mas não descobri nada, o perfil era vazio, como se fosse falso ou recém-criado. Tinha uma foto que não mostrava nada, uma vista de comum, provavelmente de uma janela qualquer para uma rua igual a todas as outras, com árvores e nenhum detalhe específico, reconhecível, identificável, distintivo. Não havia uma imagem sua. Não seguia outras pessoas, além de mim. Ficava claro que criara o perfil somente para me poder seguir e contactar comigo. O nome era tão enigmático como patético: meu_desamor1994.

Saí com o Lourenço no dia seguinte. Não toquei no assunto das mensagens enigmáticas, mas detive-me a observá-lo com uma atenção especial. Sempre que eu estava por perto, o seu comportamento era perfeitamente normal. Era atento, conversador, parecia concentrado em mim e em nós, no que estávamos ali a fazer, naquele momento. Era só quando me afastava, ou ele se afastava de mim, que alguma coisa parecia mudar. Por vício ou por um estranho instinto, sempre que nos afastávamos, pegava de imediato no telefone. Achei curioso, mas não lhe disse nada. Seria prematuro abordar o tema sem saber nada sobre ele.

Passámos essa noite juntos, em minha casa. E, quando estávamos juntos, era realmente divertido. Não há muitos homens como o Lourenço, com uma inteligência suave. Gosto de descrevê-la assim, por oposição àquelas inteligências que são ostensivas, que se impõem, que se tornam, de certa forma, opressivas. A inteligência do Lourenço não era assim. Comportava-se como uma boa companheira, pronta a revelar-se sempre que necessária, mas, de resto, era como um cão de assistência - servia para me auxiliar e conduzir, sempre levando em conta a minha necessidade e nunca a sua vontade espontânea. Enfim, estou a complicar. O Lourenço tinha o comportamento de um homem gentil, apenas isso. E não usava o privilégio da inteligência de maneira exibicionista.

A outra pessoa misteriosa não voltara a mandar mensagem. Por alguma razão indecifrável, dei por mim a ansiar por qualquer sinal de vida de meu_desamor1994. Por que razão me tinha contactado? Com que objetivo? Conheceria mesmo o Lourenço, estaria de facto com ele, naquele momento em que me mandara as mensagens? Caramba, devia ter-lhe pedido provas, devia ter-lhe dito “ai sim? Então mostra, manda pic”. Qualquer coisa. A verdade é que, naquele momento, não consegui pensar como deve ser. E até se compreende que não tenha conseguido.

Foi no encontro seguinte com o Lourenço que decidi contactar novamente meu_desamor1994. Estávamos numa pizzaria no Parque das Nações e tudo decorria com grande normalidade - o que, no nosso caso, significava com entusiasmo, alegria, prazer em estar ali, um com o outro. Quando tive de ir ao WC, notei que, de imediato, ele tirou o telefone do bolso. Não dei demasiada atenção. Porém, quando me preparava para regressar à mesa e ao meu lugar, notei que o Lourenço escrevia com fervor, enquanto fazia carinhas para o ecrã, expressões de quem está a encarnar uma personagem: sorria, fazia trejeitos com a boca, até gestos com a mão, como se falasse com alguém.

Cheguei de mansinho perto dele e perguntei-lhe “com quem estás a falar?” Ficou atrapalhado, guardou o telefone, “não estou a falar ahahah, eu sou mesmo assim, meio tolo”. Eu não disse nada. Mantive-me de pé, sorridente, como quem espera. “Estava a responder a uma mensagem”, justificou-se, “a sério, eu sou memso assim, entusiasmo-me quando escrevo, transformo-me na personagem que dialoga”, continuou, antes de fechar com a sua habitual nota de brilharete, “sou como um Eu lírico dos textos que envio”. Sentei-me.

Aceitei a explicação dele. Aceitei, mas, entenda-se, não a engoli totalmente. Achei-a meramente plausível. Sim, é possível que alguém se entusiasme enquanto escreve, tudo bem. Acho credível. Acontece que, no caso do Lourenço, ou, melhor dizendo, no nosso caso, com tudo o que a conjuntura englobava - o vício instintivo de pegar no telefone sempre que me afastava; as misteriosas mensagens da meu_desamor1994 -, aquele teatrinho dele diante do ecrã do telefone tornava tudo um bocadinho mais suspeito do que desejaríamos.

Nessa noite, não ficámos juntos. Ele queria, mas eu preferi seguir para minha casa. Deixei-o à porta do prédio dele, estava visivelmente desapontado, quase zangado com aquele desfecho precoce e infrutífero para aquilo que ele decerto antecipava vir a ser uma esgotante noite de sexo e copos, como de costume. Pois, dessa vez não ia dar.

Cheguei a casa, instalei-me confortavelmente e peguei no telefone: “Conta-me tudo, preciso de saber.” Enviar. A mensagem foi lida momentos depois. Contudo, não havia resposta. Insisti. “Então? Hoje não tens nada para dizer?” Novamente, a mensagem foi lida, mas não recebi resposta. Ao fim de algum tempo, talvez meia-hora, enviei uma última mensagem, “olha, vai-te lixar, não estou para ser gozada. Vou-te bloquear”. “Espera, não! Amanhã explico”. A resposta chegou em segundos. “Explica agora.”

Aguardei alguns minutos. E, enfim, alguém começou a escrever do outro lado. “Estou em casa dele, ele está no quarto, eu vim à casa de banho só para te escrever.” Eu não respondia. Nisto, nova mensagem: “Podemos falar amanhã?” “Sim, por favor.” “Mas preferia que fosse cara a cara. Podemos combinar?” Não vou negar: senti medo.

Eram cinco da tarde e eu estava na esplanada da Mexicana, sentada, tentando descobrir uma ruiva de estatura média, com calças de ganga, um top verde e uns Vans pretos. Mesmo tratando-se de uma ruiva, não é tão fácil quanto possam pensar. Foi ela que me descobriu. “Maria do Carmo?” Voltei-me na cadeira, “sim, olá”, “olá, sou a Luísa”.

Conversámos. Eu ouvi mais do que conversei. A Luísa contou-me o que sabia. Não sei se contou tudo ou apenas o que lhe pareceu conveniente. Falou-me da noiva do Lourenço - “o quê? Mas há uma terceira mulher?”, ao que Luísa respondeu “tecnicamente, tu és a terceira mulher; eu sou a segunda, a Elsa é a primeira”. Ela não sabia se era possível que houvesse mais, mas não descartava possibilidade. Achámos ambas que seria difícil, já três era um autêntico tratado de gestão de recursos, agenda e até orçamento, que o Lourenço, com os seus modos gentis, gostava de se mostrar generoso connosco.

A Luísa descobrira que ele tinha noiva algumas semanas antes de me ter mandado mensagem, mas não se desmanchou. Pelo contrário, fez-se de distraída e desentendida e foi recolhendo informação. Foi então que descobriu que eu e ele andávamos enrolados e decidiu contactar-me. Entretanto, acabou por também falar com a Elsa e contou-lhe tudo o que sabia.

Pediu-me, tal como fez com Elsa, que não abrisse o jogo e que mantivéssemos todas a fachada. Tínhamos de ensinar uma lição séria, severa e pedagógica ao Lourenço. E foi isso, precisamente, que fizemos. Mas essa é uma outra história, que não cabe aqui, sob a etiqueta de “história de amor”. Foi desde então que eu, por experiência e precaução, passei a desligar as notificações do Instagram antes de me deitar.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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