Histórias de Amor Moderno: “‘Nos telefones, prolongamos as conversas, mas de outra maneira’”

“‘Ninguém tem de me conhecer. Nem a mim nem a nenhum de nós. Cada um é o seu próprio segredo.’” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB Mean Girls
11 de outubro de 2024 às 23:07 Maria Olívia Sebastião

Não se contam segredos à frente das outras pessoas. Era uma regra simples que havia em casa. Contar segredos em público, sussurrar ao ouvido diante dos outros, comunicar com uma só pessoa omitindo os demais presentes daquela conversa, essa era uma das formas mais inaceitáveis de má-criação segundo as leis da minha mãe. Não sei como era na casa dos outros da minha idade, criaturas da minha infância, mas na minha era assim. Um segredinho, fosse a quem fosse, dava direito a reprimenda das grandes e, em certas condições, significava descompostura pela certa. Então se fosse com as minhas primas ou com a minha irmã, a gravidade da situação galgava de nível. 

Hoje em dia, na escola, eu vejo-os, mas não os via até há pouco tempo. Isto é, eu via-os, só que não os entendia. Eu via-os nos corredores ou nos bancos, lá fora. Sozinhos ou em grupos, às vezes eram só dois amigos ou duas amigas. Mas na maior parte das vezes isto acontecia quando o grupo era alargado. Havia conversas em voz alta, claro que havia. E risadas e expressões de surpresa, caretas de escândalo, olhares tristes, sorrisos sintonizados e cúmplices. Contudo, havia uma comunicação que me escapava. 

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Nesses grupos de miúdos, e mesmo quando todos pareciam comunicar diretamente uns com os outros, as suas conversas, gargalhadas e esgares eram constantemente interrompidos pelas idas compulsivas aos telefones. De xis em xis segundos, cada qual com a sua cadência, lá estavam eles a conversar e a fazer caretas com o próprio telefone. Aos poucos, fui prestando mais atenção, mas não conseguia verdadeiramente decifrar o que se passava com aqueles miúdos, que constantemente interrompiam a fluidez da conversa no grupo para observar qualquer outra abstração que o seu objeto pessoal de comunicação lhe oferecesse. Como se o telemóvel se tornasse extensão da sua capacidade de emitir e receber mensagens. O que é que poderia haver naquela pequena janela de tão mais interessante do que aquilo que se passava cá fora, junto dos outros, no mundo real, no presente, no que de facto acontece e se pode ver, ouvir e apalpar em tempo real, aqui e agora? 

Nas turmas a quem dou aulas existem, naturalmente, alguns miúdos com quem tenho maior afinidade. É bom e saudável que existam estes alunos, espécie de pórticos de acesso e de observação para uma realidade que nos é tantas vezes estranha. Ser-se professor implica adiar ao máximo o generational gap que nos fará eventualmente dizer "estes miúdos de agora". Os miúdos de agora são os miúdos de sempre. Só mudam os tempos e as tecnologias, os hábitos e as modas, mas os miúdos de agora não são mais espertos nem mais estúpidos, mais egoístas ou mais atrevidos do que os miúdos de outrora. 

Eu já fui uma dessas miúdas de quem alguns professores diziam "estes miúdos de agora". E não quero cumprir esse mesmo papel de não compreender o que são os miúdos de agora. Quero estar com eles, ao lado deles. Simplesmente, chega-se a um ponto em que se torna difícil entender todas as novas regras e os novos vocábulos, os novos circuitos e os novos hábitos. Tudo é natural. E tudo é saudável, desde que não deixemos que a evolução nos coloque em fações inimigas de uma batalha que não existe - andamos aqui todos juntos, eles a caminho de uma vida ainda sonhada, eu a cumprir aquela que, não tendo eu propriamente sonhado, me traz a paz de espírito e a satisfação possíveis. Os tais miúdos que são pórticos têm uma importância fundamental para a manutenção deste equilíbrio: eles são a minha ligação direta, a minha janela para o tempo infanto-juvenil de agora. 

"Júlia, como é que vocês conseguem estar a conversar uns com os outros e constantemente a olhar para os smartphones?" Sou muito ingénua. Na minha ideia, eles alheavam-se das conversas para se porem a ver outros assuntos e publicações nas redes sociais. A Júlia, aluna que não sendo brilhante pode ter um futuro muito agradável pela frente, assim não se estrague nem tome demasiadas más decisões - não é muito estudiosa, mas tem um português limpíssimo e uma capacidade de observação claramente acima da média, o que lhe permite contar histórias que mais ninguém conta -, tratou de me explicar no que é que consistia, afinal, aquela estranha rotina de, a meio de conversas, estar constantemente a pegar no telefone e a escrever e a sorrir e a ler, tudo enquanto aparentemente falavam uns com os outros.  

"Nos telefones, prolongamos as conversas, mas de outra maneira." Que outra maneira é essa? "Desenvolvemos certos assuntos em privado", explicou-me. "Falamos só com quem queremos. Às vezes, até com pessoas que não estão presentes." Portanto, uma conversa aqui, em tempo real, neste universo, tem ramificações paralelas, outras dimensões onde se isolam apenas parte do grupo, ou se estabelecem comunicações com elementos externos ao grupo presente. É como se existissem em vários momentos e contextos ao mesmo tempo. E, necessariamente, como se cada um fosse várias pessoas ou entidades em simultâneo, ou, pelo menos, se tivesse nuances visíveis que fossem diferentes de dimensão para dimensão. Porque nunca estamos a ver tudo de todos. Na verdade, nunca estamos a ver tudo de nenhum deles. Há sempre um lado omisso, quando não mesmo obscuro. "Stôra, ninguém tem de me conhecer. Nem a mim nem a nenhum de nós. Cada um é o seu próprio segredo." 

A frase da Júlia fez-me mossa. De repente, miúdos do secundário fazem-me perceber que levamos vidas secretas em público. Não somos nada daquilo que mostramos. O outro nunca é exatamente aquilo que eu vejo. Além desta, diante de mim, há outras dimensões - quantas? - que eu desconheço. E, nessas dimensões, que contornos tem esta pessoa? De que se reveste? Como se manifesta? Que comportamentos apresenta? A compreensão de cada um ficará sempre aquém das dimensões secretas do seu interlocutor, do seu amigo, das pessoas do seu grupo. Do seu inimigo. Do seu companheiro. 

Andamos, portanto, aos segredinhos à frente de toda a gente. A minha mãe, fosse ela viva, arranjava maneira de repreender cada um pelo comportamento inadequado. Comentei em casa com o meu marido. A descoberta, metade revelação, metade chamada de atenção, fez-me sentir necessidade de partilhar com alguém próximo aquilo que acabara de aprender: as pessoas fazem e dizem coisas nas nossas costas enquanto estão à nossa frente. O António estava distraído a olhar para o telefone. Não terá ouvido uma palavra do que eu disse. Quando insisti, "não ouves o que te digo, António?", respondeu-me só "sim, claro, querida, exatamente". Estava só a confirmar uma coisa qualquer, justificou-se ele, num dos vários grupos de amigos que tem numa das plataformas de mensagens instantâneas. 

E eu passei então a prestar-lhe mais atenção. E a mim. Comecei a questionar-me sobre aquilo que eu própria faço enquanto comunico com o António. Será que comunico com ele? Tenho sérias dúvidas. Suspeito que nos mantemos ligados por uma espécie de linha sonora constituída por ruídos familiares que emitimos dirigidos ao outro. Mas é uma consequência de partilharmos o mesmo espaço, isto é, parte da mesma vida. Há coisas que temos em comum. Todavia, na intimidade de cada um passamos o tempo a conversar com outros. Deixamo-nos mutuamente de parte. A nossa companhia é reciprocamente conveniente, estável, cómoda. Mas não é verdadeira. Quantas vezes falamos sozinhos quando dirigimos a voz a quem temos ao lado? Quantas vezes desligamos os ouvidos enquanto a pessoa que nos acompanha na vida tenta falar connosco? Pior: o que é que fazemos lá por trás, em segredo, partilhando os nossos pensamentos com quem está do outro lado do telefone? 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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