O anúncio dizia "Casa típica alentejana, 2 quartos, 2 salas, 87m2 de área coberta + simpático quintal/jardim com boa exposição solar". Também dizia que era em segunda mão, "em bom estado", ou seja, que precisava de uma pequena intervenção, coisinhas aqui e ali, já sabemos como são os reclames das agências imobiliárias. Acrescentava ainda tratar-se de "um pequeno paraíso", "ideal para transformar numa casa de férias ou num refúgio para momentos de lazer". Eu e o Júlio apreciamos sobremaneira os momentos de lazer e gostamos muito de sossego. "Grande oportunidade, redução de 12%", concretizava o anúncio, puxando o preço para uns irresistíveis oitenta e poucos mil euros. "Júlio, pega na mota, temos de ir ao Alentejo ver uma casa."
Fizemo-nos à estrada na chopper. Qualquer oportunidade é boa para ouvir aquele ronco profundo. Viajar nela, sentir o vento no rosto, faz-nos sentir mais vivos, permite-nos desfrutar do momento ao mesmo tempo que contemplamos. Não é preciso conversar, não apetece mais nada que não seja imergir no pensamento enquanto os olhos absorvem a paisagem e os ouvidos serenam com a melodia mecânica e contínua do motor - rouca como a garganta velha mas afinada de um barítono octogenário.
A casa fica nos arredores de Beja, numa pacata localidade onde as principais atividades e parte substancial das atenções se concentram na indústria do vinho. Não conhecíamos a vila, só de nome, por causa da fama que os vinhos têm, naturalmente, mas pareceu-nos ser um sítio encantador.
O sossego. Nós estamos habituados à calmaria, à ausência de azáfama, não somos criaturas de cidade grande. Mas esta paz daqui é diferente. É como se houvesse um silêncio por dentro das coisas, de todas as coisas, desde as partículas que compõem esse manto infinito e desafogado que é o céu de um azul imaculado até às ervas teimosas e rebeldes que despontam nas bermas das ruas antigas. Os bichos do campo fazem um barulho harmonioso e despreocupado, como se respeitassem a tendência e a vocação da terra para o silêncio. Só os latidos dos cães, espalhados por quintais aleatórios, atrás de vedações de rede, interrompem a harmonia geral do lugar, mas mesmo esses parecem fazê-lo somente para sinalizar a existência daquele sítio com todas as suas coisas. Ladram ao calhas, como se nos dessem beliscões sonoros só para dizer "estamos aqui, isto existe mesmo, este sítio é real."
A casa não é grande. Uma salinha logo à entrada e depois um corredor, os quartos, e outra sala ao fundo, pegada à cozinha. A casa-de-banho, como em qualquer casa alentejana antiga, fica à saída para o quintal. E foi aí, junto a essa porta, que senti vontade de ficar. O terraço que se estendia para as traseiras, de frente para o sol, com os seus muros altos e plantas dignas de um deserto, fez-me desejar aquele sítio. Imaginei-me entre cadeiras e espreguiçadeiras, com bancos em redor de uma mesa de jardim, um churrasco ao fundo, canteiros com flores e outros com ervas aromáticas, um baloiço pendurado nos ramos antigos e robustos da oliveira bicentenária ou talvez ainda mais velha. "Júlio, eu quero a casa. Vamos comprar."
A nossa vida, desde que nos casámos, foi vivida junto ao mar. Temos casa na Praia de Faro, foi lá que criámos os filhos. Pelo caminho, fomos alimentando a paixão pelo campismo.
Os nossos amigos nunca perceberam o nosso fascínio pelo campismo, o desejo de passar temporadas longas num parque, na autocaravana, que hoje mais parece uma pequena moradia, cheia de comodidades, da televisão ao ar condicionado. E eu compreendo que não nos compreendam. Afinal de contas, temos a casa junto ao mar, praticamente diante da porta. Só que o campismo é diferente. Apesar do conforto que fomos, com o tempo, acrescentando à caravana, prevalece uma sensação de independência, de liberdade, de regresso às origens. A caravana é a nossa toca, o refúgio, o abrigo. Tudo em redor é composto de elementos naturais. Dá-nos a ilusão de estar num lugar selvagem onde somos crianças livres que deambulam de frente para o sol, inspirando o ar puro dos pinhais e a maresia, e que ao fim do dia recolhem ao seu pequeno porto-seguro.
Quem não nos compreendia a paixão pelo campismo, terá ficado ainda mais espantado com a notícia da nova casa. No meio do nada, num desterro alentejano, ainda por cima longe do mar - qual seria o nosso interesse? A verdade é que também não sabemos explicar. E isto é uma coisa muito nossa, eu e o Júlio sempre convivemos muito bem com aquilo que não conseguimos explicar ou que simplesmente não tem explicação. Gostar sempre foi, para nós, argumento mais do que suficiente para ir, para levar, para ter, para guardar. E é apenas disso que se trata: gostámos da casa, daquele sítio, do ambiente em redor. Entendo que possa soar estranho que alguém procure um refúgio quando tem casa à beira-mar, que alguém se recolha no interior do Alentejo quando tem uma caravana no parque de campismo de Ferragudo. Mas é verdade que nos descansa ter aqui este cantinho, para onde fugimos com frequência.
Vamos, os dois, a caminho dos setenta. São muitos anos. Já vivemos muito, passeámos um pouco, conhecemos gente boa e má, vimos paisagens, saboreámos bons pratos, provámos bons vinhos. Os filhos cresceram e partiram, fizeram-se à vida. E nós fomos ficando, mais velhos e mais sós, um com o outro, um dia de cada vez. Durante o processo, foi-se apoderando de nós uma estranha inquietação. É como se faltasse sempre qualquer coisa, algo por cumprir. Nenhum sítio é perfeito e não conseguimos parar por muito tempo num só local. Estamos numa fase em que o amor que temos um pelo outro se alimenta da companhia, de estar lado a lado a desfrutar dos anos de qualidade que nos restam, e sentimos que essa reserva de tempo se vai gastando. E isso desperta em nós uma vontade insaciável de procurar.
Nesta casa, encontrámos uma nova forma de sossego e de contemplação. Acrescentou-nos um bocadinho mais de universo. Ainda é pouco, e sentimos frequentemente falta de outra vida - de outras vidas. Tudo aqui é parado, o que é decididamente bom, mas também pode tornar-se enfastiante. E lá vem a inquietação. Não dispomos de tanto tempo assim para nos darmos ao luxo de o gastarmos com o tédio. Então, é aqui que nos refugiamos dos sítios onde criámos memórias para, passado algum tempo - às vezes semanas, outras vezes meses -, fugirmos do próprio refúgio e procurarmos outro mundo qualquer. O Júlio pega na mota e lá vamos nós, a ouvir aquele ronco delicioso. Mas é sempre bom ter um "pequeno paraíso, um refúgio para momentos de lazer" onde voltar.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.