Histórias de Amor Moderno: “Fechei os olhos, agarrei-lhe na mão e confiei nele. Dessa vez fui eu que disse ‘vamos’.”

“O maior problema de sair da cidade é desaparecer do radar. Deixamos de ver e de ser vistos. Deixamos de fazer parte de uma certa elite.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Pexels
01 de fevereiro de 2025 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Deve ter sido em setembro, num desses jantares em que nos juntávamos com amigos e amigos de amigos, na sua maioria casais. Acredito que tenha sido em setembro, porque todos tínhamos histórias das férias para partilhar, com detalhes e dicas sobre sítios onde ficar, lugares a visitar e restaurantes de paragem obrigatória. E recordo-me claramente dessas conversas porque todos, entre as fotografias que mostravam - muitas delas já previamente publicadas nos respetivos instagrams -, afirmavam o mesmo desejo: "É tão melhor estar fora daqui, estamos fartos da cidade, temos de largar Lisboa e ir para o campo."

Esse serão foi passado em casa da Catarina e do Afonso, uma penthouse magnífica numa zona alta da cidade, com um terraço que lhes oferece uma vista deslumbrante sobre Lisboa, até ao rio e mais além. Como ainda fazia bom tempo, ficámos todos lá fora, no terraço, fez-se peixe na grelha e umas entradas de frutos do mar. Abrimos vinhos de muita qualidade, cada um trazia uma garrafa para mostrar a sua mais recente descoberta, qual garimpeiro enólogo. E foi neste ambiente de amizade e de convívio que todos fomos revelando, uma vez mais, as nossas insatisfações com a vida burguesa da cidade, as suas rotinas nefastas, os seus excessos e o seu tempo contado, mais as obras intermináveis. E o ruído, ruído de todo o tipo.

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Enquanto a conversa se desenrolava, dei por mim a pensar em como já tínhamos falado disto noutras ocasiões. Talvez agora sentíssemos mais cansaço. Alguns elementos do grupo já tinham filhos, o que agravava a inquiteção e o dilema entre a cidade e o campo. Contudo, e por mais fotos que mostrassem uns aos outros provando como são bonitas as localidades no Alto Alentejo, e grandes e férteis as propriedadas na Cova da Beira, e paradisíacas as vistas da Costa Vicentina, e castiças e sossegadas as aldeias caiadas de branco no Baixo Alentejo, ninguém daquele grupo deu alguma vez sinal de verdadeiramente querer deixar a cidade e mudar de vida, de recomeçar no campo. Tudo parecia uma encenação infantil, crianças dizendo umas às outras o que queriam ser quando fossem grandes, com muita convicção mas sem qualquer intenção.

Fui observando o João, meu marido. Notei que também ele observava toda a gente e pareceu-me que ia concluindo o mesmo que eu: que todos falavam, mas ninguém verdadeiramente desejava essa tal mudança, esse anunciado desapego, essa transição de um mundo repleto de urbanidade, de eventos, de encontros, enfim, de vida numa cidade onde as coisas acontecem, para uma nova realidade, muito bonita quando enquadrada como num postal, mas que certamente não parecia ter para eles verdadeiro apelo. Eu estava junto ao parapeito do terraço e olhei para o João. Ele olhou para mim e sorrimos os dois.

No caminho para casa, ia o João a conduzir, eu puxei o assunto. "Já reparaste em como os nossos amigos estão sempre a lamentar-se da vida que têm? Achas que estão a falar a sério quando dizem que querem sair de Lisboa?" Conversámos sobre isso. Concordámos que aquela lenga-lenga entre amigos se tinha transformado, de certo modo, numa tradição, num ritual, ou pelo menos num hábito. Na verdade, nunca ninguém mexia uma palha nessa direção, não passavam de ideias voláteis e frágeis como bolas de sabão.

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"Estes serões com estas conversas lembram-me aquele monólogo, naquele filme, o My Dinner With Andre, quando o protagonista fala de uma teoria de conspiração." O João não fazia ideia de que filme era esse, tive de lhe explicar. A parte que me interessava, uma conversa em que o protagonista fala de toda a gente dizer que quer sair de Nova Iorque, sem que ninguém alguma vez saia, de facto, lembrava-me exatamente o jantar em que participáramos momentos antes. O João, meio distraído e não muito convencido, lá disse "talvez, talvez".

"Escape before it’s too late", citei o protagonista do filme. "Hum?", respondeu o João, confuso. "Temos de fugir daqui, antes que seja tarde demais", disse eu ao meu marido. Ele franziu o rosto - não como quem recusa, mas antes como alguém que parece começar a perceber.

Quando o João chegou a casa e disse "ok, vamos lá pensar nisso a sério", não tinham passado muitas semanas desde a epifania daquele jantar. Concordámos que, no fundo, o que nos prendia à cidade era mais fictício do que real. Ele escreve livros infantis, além de outras pequenas histórias; eu, jornalista, também não estou necessariamente obrigada a permanecer à minha secretária, existem outras possibilidades. O João tanto escrevia em Lisboa como podia escrever num lugar remoto, desde que tivesse acesso ao telefone e à Internet; eu, caso não pudesse exercer a profissão, podia tentar outras funções relacionadas com comunicação e usar a minha experiência. "Tudo se arranja", disse ele. Eu senti um arrepio na barriga. Por um lado, fiquei entusiasmada; por outro, tive receio.

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O maior problema de sair da cidade é desaparecer do radar. Deixamos de ver e de ser vistos. Deixamos de fazer parte de uma certa elite que influencia e decide coisas, que permite acesso, que põe em contacto, que abre portas e mostra caminhos. Os jantares com aqueles amigos, para além da amizade e da diversão, eram também exercícios de uma certa diplomacia. As conversas que começam com "o que tens feito" podem parecer meramente circunstanciais, mas acabam por funcionar como ferramentas de mapeamento do outro. "O que fazes." E são úteis.

Começámos a fazer listas de prós e contras para pesarmos racionalmente o que havia de bom e de mau tanto em ficar como em partir. Ter filhos? A cidade permitia certas coisas, o campo tinha outras para oferecer. Não havia um melhor-e-pior claro. "Contudo, preferia educar um filho fora do ambiente da cidade", disse o João. "E quem é que te disse que eu quero ter filhos?", respondi eu. Ele ficou estático, sem saber o que dizer. Eu sorri, "estava a brincar, amor". Falámos de ter cães, "super positivo". Concordámos que ter cães fora da cidade seria maravilhoso. Poder passeá-los à solta, ter espaço e tempo para eles, o luxo de podermos ter mais do que um - mais do que dois ou mesmo três! Ter cães era definitivamente um dos prós.

Imaginámos pessoas com ambições mais modestas e espíritos genuínos, efabulámos sobre a vida simples, com horários desafogados e um dia-a-dia mais limpo de obstáculos. Em menos de nada, estávamos a consultar sites com propriedades à venda. "Uma moradia", "sim, mas tem de ter terreno", "sim, e de preferência jardim ou pomar", "uma casa para recuperar ao nosso gosto" - as exigências surgiam, multiplicavam-se, empilhavam-se umas sobre as outras, mas sempre com grande entusiasmo, com paixão. Sentimos que era mesmo aquilo que queríamos. Olhei para o João, olhos nos olhos, e perguntei-lhe "vamos a isto?" "Vamos", respondeu.

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Encontrámos o que procurávamos numa vila perdida no meio do Alentejo. Um sítio pacato, pouco explorado, ainda sem grande procura turística. Um lugar rico em produção agrícola, sobretudo de vinhos, com grande potencial para prosperar. Concluímos que ali seria um sítio seguro para investir. Se gostássemos e corresse bem, ficaríamos felizes; caso contrário, mudaríamos o plano e não ficaríamos a perder, uma vez que a valorização seria inevitável.

A casa era antiga e estranha. Precisava de alguma intervenção. Tinha uma planta um pouco anárquica. Explicou o agente imobiliário que se tratava de uma moradia que vinha sendo acrescentada desde que fora construída, e à qual foram juntando anexos. Daí a planta desordenada, um pouco ilógica. "Gostas?", perguntou-me o João. Eu não sabia o que responder. "Confia em mim: vai ficar espetacular." Na cabeça deste lunático que eu amo, o projeto já ganhara forma e tudo fazia sentido. Fechei os olhos, agarrei-lhe na mão e confiei nele. Dessa vez fui eu que disse "vamos". E fomos.

E aqui estou, hoje, à espera que cheguem os velhos amigos da cidade, para se misturarem com os conhecimentos que fizemos na nova vizinhança. Não têm muito em comum, uns e outros, à exceção de serem pessoas nas nossas vidas. Decidimos fazer este almoço - que há de durar o dia inteiro, já sei - para assinalar a inauguração da casa, agora que ela está pronta, finalmente. O João trabalhou muito para que tudo estivesse pronto a tempo desta nossa reunião, em que juntamos o passado e o presente. E eu só não o ajudei mais porque trago aqui dentro da barriga o futuro. Afinal, vamos mesmo educar uma criança no campo. É um menino e vai chamar-se Frederico.

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Cães é que ainda só temos um, mas acredito que o número poderá aumentar em breve. E é assim a nossa vida de agora, fora da cidade. Olhamos com mais atenção para o que mais importa, perdemos menos tempo com o acessório, com o supérfluo. Sobretudo, olhamos muito um para o outro. Prestamos atenção ao que nos rodeia e a quem temos ao nosso lado. E percebemos, nessa maneira simples de contemplar o que existe na nossa vida e o que fazemos, a sorte incomparável de termos o que é essencial. 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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