Este não é o meu maior segredo, é muito mais do que isso. É a confissão de toda a minha vida. É a revelação de uma existência condicionada, o relato de um trajeto que eu desviei do destino desde o começo. Eu sou uma pessoa que nunca fui. A persona que concebi para exibir em público e a personalidade que lenta e pacientemente fui construindo - camada após camada, gesto a gesto, um trejeito de cada vez, subtraindo milímetros vagarosos a cada dia - não são eu. A combinação das duas, minha magnum opus, é o fruto da anulação de mim próprio.
A minha mulher morreu há pouco tempo. Faz hoje, dia em que escrevo este desabafo, dois meses. A morte da minha mulher, dolorosa e triste, foi a minha libertação. É já demasiado tarde para eu mudar o que vivi e recomeçar para o que não pude viver, mas ainda vou a tempo de, pelo menos, partilhar a minha história. A minha Helena que me perdoe. Eu fui-lhe dedicado, fui-lhe até devoto, mas agora que partiu, chegou a hora de eu acertar contas comigo mesmo.
Lembro-me de como os domingos em família me afligiam quando vivia na minha terra, na Beira Alta. A missa matinal, o almoço rotineiro, a mesa farta, a casa cheia. Lá dentro, na cozinha, as mulheres da família cuidavam de tudo. Na sala, os homens embedavam-se com vagar e sem maneiras. As graçolas brejeiras, os apontamentos néscios, o humor e o linguajar próprios das casernas e uma nuvem de fumo a formar-se enquanto os cinzeiros se iam enchendo. E eu no meio do grupo, rindo-me forçadamente e a contragosto, acenando, concordando por não ter outro remédio. Ser homem era assim mesmo. Eu é que era diferente.
"Então, António, quando é que encontras rapariga?" A pergunta podia tardar, mas nunca falhava. E, por norma, nem sequer tardava. "Este não vai lá", dizia o tio, riam-se os primos, e o meu pai franzia o rosto, "que conversa vem a ser essa?", e eu ria-me também como se tivesse tudo muita graça. E eles, olhando uns para os outros, tocando os cotovelos e rindo alto, "parece que ele gosta mais de ir à missa", "se calhar quer ser sacristão". Todo um desfile de baixaria chocarreira sobre a mesa de domingo.
Conheci a Helena depois de ter terminado o curso e ter voltado à terra. Ela, nascida e criada na Guarda, fora dar aulas para a minha vila. Éramos os dois professores primários, ambos solteiros. Eu começava a ficar desesperado e ela principiava a deixar de ser nova - era só quatro anos mais velha do que eu, mas, na época, uma mulher a aproximar-se dos trinta e ainda solteira estava, em princípio, votada a uma vida de solidão. Foi a conveniência, muito mais do que o amor, o que nos aproximou. Da primeira vez que estivemos juntos como dois adultos que se desejam, ela perguntou-me como preferia fazer. Respondi-lhe com franqueza que nunca tinha feito. Eu, um homem de 25 anos, ainda era virgem. Helena não se espantou. Na família, ninguém sabia dessa minha condição, mas tenho a certeza de que muitos desconfiavam que assim fosse. "Nunca foste às meninas a Ciudad-Rodrigo, António?", metiam-se comigo. Eu não confirmava nem desmentia.
No dia da minha primeira vez, quando contemplávamos em silêncio a tristeza daquela noite, a Helena perguntou-me se eu a desejava. "Acho que sim", disse-lhe. O meu sorriso, forçado e triste, denunciou-me. O problema não era Helena, era eu. Não a desejei a ela porque nunca desejei mulher alguma. Estar com ela ou com qualquer outra ser-me-ia igualmente desagradável. Helena percebeu. Baixou o olhar. Não havia na sua expressão mágoa, abatimento ou melancolia. Parecia simplesmente conformada. "Talvez devêssemos casar e sair daqui."
Casámos e, no ano seguinte, fomos viver para uma terrinha perto da capital, não muito longe do mar, onde ambos começámos a dar aulas. Nunca mais fizemos amor. Aceitámos o destino de sermos, um do outro, não mais do que companheiros, como se fôssemos sócios de uma empresa nossa que nos permitia ser socialmente aceites. Eu sem ela seria ostracizado; ela sem mim seria um trapo humano. Como disse, foi a conveniência que nos uniu.
A profissão e o casamento permitiam-nos uma vida social perfeitamente tranquila e sem grandes ondas. Éramos os professores, os Soares, participávamos em tertúlias esporádicas com a intelectualidade local, necessariamente reduzida e provinciana. Mas funcionava. Para mim era suficiente. Para a Helena também. O único preço a pagar era a frustração do corpo: nem ela nem eu nos satisfazíamos. Eu porque não gostava de mulheres e a Helena porque, por causa disso, não tinha homem. Mas nunca regateámos o preço.
Os problemas começaram quando, a cada visita à minha terra, nos almoços de domingo, a conversa voltava inevitavelmente à mesa: então e os filhos? "Já são casados há dois anos, não há maneira de haver bebés?" Eu ria-me, como sempre me ri, encolhia os ombros com desconforto, "talvez não seja a vontade de Deus", e havia sempre um tio ou um primo, "conta lá, António, tu gostas mais de ir à missa". E todos se riam, exceto o meu pai, que logo exibia o cenho contrariado, "mas que conversa vem a ser essa, que é lá isso?", e acendia mais um cigarro para adensar a nuvem da sala de jantar.
Fizemos um filho. Digo-o da maneira mais fria que conheço, pois foi assim que o germinámos: de propósito, sem amor, por conveniência. É um filho que amo profundamente, possivelmente o melhor que tenho na vida e a única razão para sentir satisfação e orgulho pelo que vivi. Contudo, dar-lhe origem não me deu o mais mínimo prazer. Como máquinas, tentávamos acertar no dia preciso que a tabelinha ditava. Não foi fácil conceber. Vários meses de múltiplas tentativas frustradas mais tarde, chegou a boa-nova: "António, estou grávida", disse-me Helena e, pela primeira vez, senti por ela qualquer coisa remotamente parecida com amor.
A criança nasceu, a família acalmou o instinto persecutório. No entanto, e apesar de satisfeito o quesito que me era imposto, não pareciam satisfeitos. "Então, faltaste à missa, António?" E eu, com o bebé ao colo, debaixo daquela nuvem de fumo eterna, ri-me como sempre me ria, encolhendo os ombros em sinal de desconforto. E a vida continuava. Foi continuando sempre.
Reprimir-me constantemente foi-me tornando amargo. A insatisfação e a frustração transformaram-se em ressentimento, que, por sua vez, se tornou fel, que me deixou azedo. Eu e a Helena, cada um com a sua mágoa e eu ainda com o meu segredo, dedicámo-nos cada vez mais à Igreja. Era tudo o que tínhamos, além do nosso filho e da profissão, de que eu gostava cada vez menos - já não suportava aqueles miúdos tolos, e os pais, e as mães, e as opiniões, e a maneira como os homens olhavam para mim, como se eu tivesse defeito, como se eu fosse frágil. Estranhavam-me, ao mesmo tempo que pareciam achar levemente divertido que eu fosse assim e que fizesse aqueles gestos.
Enfim, a minha vida já vai longa. Se houve alegrias pelo caminho? Naturalmente que as houve. Tive um filho bondoso e brilhante. Esse filho deu-me dois netos e uma neta, e estes ainda hoje me dão alegrias. Fiz o meu caminho na profissão. Podia ter sido melhor no que fiz, porque o fui fazendo com paixão decrescente, mas fui, na pior das hipóteses, competente. Essa é, no fundo a palavra que sumariza a minha vida: competência. Fiz o que tinha a fazer. Respeitei a família, paguei as minhas contas, não envergonhei os meus pais.
De resto, os momentos de contentamento são inevitáveis numa existência comprida, por mais triste que ela seja. Mas tenho pena que tudo tenha sido assim. Tenho pena de ter nascido num tempo em que ser-se diferente era proibido. E de, por isso, ter sido compelido a conter-me, a subtrair-me, a anular-me. Fui sempre silencioso e discreto, inconfesso por causa dos outros, primeiro por receio dos do meu sangue, depois por respeito à minha mulher. Agora que uns se foram e a minha querida Helena - que eu nunca amei como se deve amar uma esposa, mas que, de certa forma, acabei por amar - também partiu, resta-me assumir que a minha vida foi estreita e contorcida, curvada sobre si mesma. Só porque eu nunca senti desejo por mulheres.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.