
Ilumina-se a natureza humana, cada um com as suas coisinhas, e regressa-se à aldeia e ao tempo em que tínhamos tempo e não precisávamos de saber tudo.
Como todos os peninsulares, estava esta escriba freelancer nas suas prosas quando o mundo se fechou de repente, mais uma vez. Desta vez não era pandemia, só meio dia de apagão de eletricidade, mas alastrou muito mais depressa na histeria colectiva e paralisou as nossas vidas de trabalho, cada vez mais aceleradas e intensas - e absurdas também por essas mesmas razões. As poucas mensagens que recebi logo foram de cuidado e de amor – nestes momentos que ensaiam o precipício é que reparamos quem lá está para nós. Mas também recebi as reações imediatas emocionais: medo, ansiedade, pânico, irritação. Como se estivessemos todos cansados das partidas que o planeta, o mundo, a vida, (como chamar-lhe?) nos anda a pregar, nos últimos anos. E atirámos tudo isso para cima de uma simples falta de luz. Como uma metáfora.

A verdade é que ficamos todos muito mais nós quando as coisas se complicam. Ou, melhor dito, não conseguimos evitar a nossa própria natureza perante um pequeno caos. Nem quero imaginar como seria se fosse um grande caos. Mas eu não senti uma lasca de apreensão sequer, o que me deixou num misto de preocupação, estaria a perder a capacidade de me emocionar? Mas não, eu continuo a emocionar-me com tudo, de filmes parvos às canções do 25 de abril. Senti orgulho, senti-me crescida e auto-suficiente e agradecida à minha natural serenidade zen que não dispara em sobrevivência, se não encontrar uma razão. Foi só repensar uma tarde: se não posso escrever, nem pesquisar na internet, posso aproveitar a luz do dia e a elasticidade do tempo que, de repente, ganharam uma escala mais humana. Precisamos menos das máquinas do que julgamos.
Somos todos mais medricas do que parecemos. Por isso, saltaram logo as teorias da conspiração, como pipocas, o aiaiai que o ditador russo está a avisar a Europa, um ciberataque, pessoal, e tudo a correr aos infantários para ir buscar as crianças. Percebe-se, corremos para os nossos, ainda mais os mais frágeis. Mas foi só uma falta de eletricidade! O meu pai ligou-me calmamente a dizer que ia buscar a minha mãe que saíra do metro cinco minutos antes do apagão, para se encontrar com uma amiga e almoçar. A minha mãe tem quase 84 anos, ele tem 85, mas mantêm intacta uma graça de adolescentes que espero herdar. À noite, quando voltámos a ter telemóvel, rimo-nos juntas das horas em que ela e a amiga estiveram sentadas nas escadas do El Corte Inglés a observar tudo a enlouquecer à sua frente. Descreveu-me as pessoas a saírem esbaforidas do supermercado, cheias de compras (soubémos hoje que não as pagaram, aproveitando os terminais de multibanco não estarem activos, que bonito! E é a freguesia de um supermercado fino!), a arrastarem garrafões de água e muito papel higiénico: "Será que tinham medo de não ter onde limpar o rabo?", disparou logo a minha mãe. E chorámos a rir.
Bom, na pandemia, até eu esfreguei as maçãs com desinfectante antes de as guardar no frigorífico, mas nas duas ou três tempestades que dão logo alertas laranjas e imaginamos sirenes por todo o lado, fico impassível. Só me assusto com os terramotos, e mesmo assim não muito, mas esses podem acabar com as nossas vidas em minutos. Mas jamais me imagino a correr para seja onde for, a varrer os víveres que devem dar para todos ou a atropelar egoisticamente quem está a trabalhar para nos proteger a todos. Da mesma maneira em que nunca se atafulha uma urgência a menos que se esteja mesmo desesperada.

Mas a maioria vê a vida, e os outros, através do buraco do seu umbigo. Eu, filha dos meus pais, limito-me a levantar o sobrolho e a contemplar o espetáculo do mundo. Mas também teve pequenos milagres. No meu pequeno e velho bairro no coração de Lisboa, as poucas velhotas que não foram corridas pela especulação imobiliária, correram a bater à janela umas das outras, houve quem lhes perguntasse se tinham já almoço ou se precisavam de alguma coisa. Os vizinhos portugueses, de todas as idades, começaram a falar de uma janela para a outra, como na Lisboa bairrista de antes, conversas cruzadas que nos recebiam com um sorriso caso espreitássemos pela janela. Estávamos de novo na aldeia, onde nunca nos sentimos sozinhos, e soube tão bem.
A praia e os jardins encheram-se de piqueniques e jogos de cartas, amigos e minis geladas. Até os estrangeiros que mal dizem bom dia, ao cair do dia convidaram os seus nacionais para celebrar o silêncio analógico. Abriram as janelas para a noite morna entrar, encheram a sua casa pequena de convivas e fizeram a festa até à meia-noite. Só na minha rua foram duas, de alemães e de franceses. Até tive uma pequena inveja boa: Se for para o mundo acabar, é para estar a beber um bom copo com quem se gosta e as portadas em par.
Eu fiz o que aprendi a fazer melhor nos últimos anos: tirar prazer da minha autosuficência. Atirei-me às plantas que precisam de vaso novo e maior, às camisolas de inverno que estão há tempo para subir às prateleiras de cima e aos tantos livros adiados e atropelados pelas pequenas urgências diárias: as do trabalho e as dos programas culturais, aquela chamada de um amigo que precisa de rir ou de chorar e pára tudo! Passei o meu dia com o meu novo livro da Miranda July - que vai dar desaguar numa crónica da Máxima, pois claro! - enrolada nos meus gatos e nos meus pensamentos. Mais vale a fantasia.

Nos anos 80, em Portugal, a eletricidade falhava de vez em quando, ou ia abaixo e acendíamos umas velas. Na boa e na maior. Tudo bem que era criança, tem mais magia nessa altura, mas lembro-me de ser divertido viver um serão diferente, num tremeluzir de velas, chama e sombras, aquela meia-luz boa para reunir toda a gente e partilhar o silêncio da intimidade ou a conversa boa e natural, não havia mais o que fazer. E sabe tão bem. Deu-me saudades daqueles tempos em que éramos mais chegados uns aos outros e raras eram as notícias que nos tiravam do sério, e seria impensável não partilhar o pouco que se tem em caso de necessidade. A tal sardinha para todos. Mais, quase não precisávamos de máquinas para ser felizes. Os meus pais tiveram a companhia de um rádio velhinho a pilhas todo o dia e bastou-lhes encostarem o ouvido ao seu som já roufenho para saberem tudo sobre o mundo.
